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“Em 1907 fomos incumbido pelo diretor Dr. Oswaldo Gonçalves Cruz, de executar a campanha antipalúdica nos serviços de construção da Estrada de Ferro Central do Brasil, na região norte do Estado de Minas Gerais. Tivemos informações da existência ali do hematófago, denominado barbeiro pelos naturais da zona, que habita os domicílios humanos, atacando o homem à noite, depois de apagadas as luzes, ocultando-se, durante o dia, nas frestas das paredes, nas coberturas das casas, em todos os esconderijos, enfim, onde possa haver guarida.” (CHAGAS, 1909, p. 159, grifo do autor). Assim inicia-se o texto científico, redigido em português e alemão,  com que Carlos Chagas (1878-1934) apresentou suas descobertas a respeito de uma nova doença tropical humana por ele detectada, no início do século XX, no Estado de Minas Gerais.

O médico sanitarista Carlos Chagas identificou o protozoário causador da enfermidade que até aquele momento permanecia desconhecida, nomeando-o Trypanosoma cruzi, em homenagem ao também cientista Oswaldo Cruz, com quem trabalhou no Instituto de Manguinhos e na Diretoria Geral de Saúde Pública. “A descrição que fez da enfermidade acabou por distingui-lo: um mesmo pesquisador, no espaço de poucos meses, apresentou a causa de uma doença, sua forma de transmissão, os sintomas e a epidemiologia, fato único na história da medicina” (BRASIL, 2013, p. 156).

Um dos mais respeitados cientistas brasileiros, Carlos Chagas foi duas vezes indicado ao Prêmio Nobel de Medicina, em 1913 e 1921, em virtude das suas pesquisas a respeito da doença que leva seu sobrenome. O acervo do cientista, custodiado pela Casa de Oswaldo Cruz (COC) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),  foi registrado como Memória do Mundo, em 2008, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Doença de Chagas: formas de transmissão, distribuição geográfica e combate

 

A doença de Chagas é uma enfermidade de transmissão vetorial, podendo ocorrer também por meio de transfusões de sangue, de mãe para filho durante a gestação,  doação de órgãos e contaminação alimentar. Na transmissão vetorial, alguns insetos se infectam ao sugar o sangue de animais contaminados e passam a carregar o parasita. No Brasil, o mais conhecido leva o nome popular de barbeiro e habita frestas nas paredes de casas feitas de adobe. Ao picar a pele de um indivíduo, o barbeiro contaminado deposita fezes infectadas com o Trypanosoma cruzi. A picada provoca coceira e o protozoário acaba sendo levado pelo orifício até a corrente sanguínea. Algumas das primeiras manifestações da enfermidade são febre, mal estar e inflamação nos gânglios que ocorrem aproximadamente duas semanas depois da exposição. O indivíduo infectado pode desenvolver graves problemas cardíacos ou intestinais, inclusive anos após os primeiros sintomas.

De acordo com Vinhaes e Dias (2000, p. 8), a doença de Chagas incide em  vastas porções do continente americano, com seus vetores tendo sido localizados do “sul dos Estados Unidos à Argentina”. Na América Latina tornou-se endêmica, ocorrendo em 21 países, afetando entre 6 e 8 milhões de indivíduos e resultando em um média de 14 mil óbitos anuais (SANTOS et al., 2020, p. 1). No Brasil, há registros de ocorrências em praticamente todo o território, sendo que sua predominância em áreas rurais vem sendo estendida para áreas urbano-rurais, pelo menos desde os anos 1970, devido aos movimentos migratórios internos (VINHAES; DIAS, 2000). A possibilidade de transferência da doença para o meio urbano no Brasil  pode ser exemplificada no Informe no. 058 da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Saúde, produzido em 1988 e classificado como confidencial,  a respeito da circulação dos insetos  vetores da doença no Distrito Federal. Os níveis crescentes de urbanização e mobilidade das populações acabou por espalhar a doença na Europa e em países africanos, no mediterrâneo oriental e no pacífico ocidental. Nesses países, a transmissão ocorre principalmente por meio de transfusões de sangue, via placentária e transplante de órgãos (WORLD CHAGAS DISEASE DAY, 2020).

A enfermidade acomete de maneira desigual as populações dos diversos países onde ocorre, afetando sobretudo as mais empobrecidas localizadas nas zonas tropicais e subtropicais. Essa  associação da doença de Chagas com a pobreza e a exclusão contribui para estigmatizar os infectados, reduzindo inclusive suas oportunidades de emprego (WORLD CHAGAS DISEASE DAY, 2020). Considerando-se que a infecção ocorre normalmente nos primeiros anos de vida e que a doença ainda não tem cura, o indivíduo que consegue sobreviver as suas primeiras manifestações irá conviver com a enfermidade pelo resto dos seus dias. As complicações cardíacas são um dos principais efeitos da doença de Chagas e as que trazem os maiores comprometimentos  à inserção laboral uma vez que os empregadores temem a baixa produtividade e mesmo a morte súbita do empregado infectado (WORLD CHAGAS DISEASE DAY, 2020).

 Segundo Vinhaes e Dias (2000, p. 8), “o controle da transmissão vetorial da doença de Chagas no país, institucionalizado em 1950 pelo Serviço Nacional de Malária, foi sistematizado e estruturado na forma de programa de alcance nacional apenas a partir de 1975”. A redução dos vetores dentro dos domicílios com pulverização de inseticidas aliada a melhorias na qualidade das habitações e educação comunitária têm produzido impactos positivos na diminuição das taxas de infestação, segundo a Organização Mundial de Saúde (2017, p. 43).

Em documento produzido para orientar as deliberações da 70ª. Assembleia Mundial da Saúde, a Organização Mundial da Saúde classifica a doença de Chagas como “uma das principais doenças humanas transmitidas por vetores” (2017, p. 1). A enfermidade continua a ser pesquisada mais de cem anos depois da sua identificação pelo médico Carlos Chagas e, em 14 de abril de 2020, comemorou-se, pela primeira vez, o Dia Mundial da Doença de Chagas, instituído pela Organização Mundial de Saúde com o objetivo de atrair a tenção mundial para aquela que é considerada a doença tropical mais negligenciada (WORLD CHAGAS DISEASE DAY, 2020).

 

Documentos (em ordem)

BR_RJANRIO_PH_0_FOT_06190_d0003de0007: Exemplar de barbeiro (Triatoma megista) capturado no lugar denominado Córrego do Barro, subúrbio da cidade de Divinópolis, Minas Gerais. 5 de janeiro de 1934. Fundo Correio da Manhã.

BR_RJANRIO_PH_0_FOT_06190_d0001de0007: Residência de indivíduos portadores da doença de Chagas. À direita, Dr. Mário Augusto de Figueiredo, Chefe do Posto de Higiene do município de Raul Soares, Minas Gerais. [s.l.], 22 de março de 1934. Fundo Correio da Manhã.

BR_RJANRIO_PH_0_FOT_06190_d0002de0007: Portadora da doença de Chagas, residente no bairro de Cemitério Novo, subúrbio de Divinópolis, Minas Gerais. 5 de janeiro de 1934. Fundo Correio da Manhã.

BR_RJANRIO_PH_0_FOT_05870_008: Esquema da distribuição de casos da doença de Chagas no Brasil, segundo trabalho apresentado pelo Dr. Emanoel Dias ao XVIII Congresso Internacional de Geografia. Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1956. Fundo Correio da Manhã.

BR_DFANBSB_IS_INF_ECE_0026_d0001de0001: Informe no. 058/88/DSI/MS, da Divisão de Segurança e Informações do Ministério, a respeito das doenças de maior incidência no Brasil. [Brasília], 9 de setembro de 1988. Fundo Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Saúde.

BR_RJANRIO_EH_0_FOT_EVE_14417_d0002de0012: Reportagem a respeito do  Congresso Internacional sobre Doença de Chagas, na Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 17 de julho de 1979. Fundo Agência Nacional.

BR_RJANRIO_PH_0_FOT_06190_d0007de0007: Grupo de indivíduos portadores da doença de Chagas. [s.l.], 22 de março de 1934. Fundo Correio da Manhã.

 

Referências

BRASIL. ARQUIVO NACIONAL. Arquivos do Brasil: Memória do Mundo. Curadoria de Denise de Morais Bastos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2013. (Publicações Avulsas; 93).

 

CHAGAS, Carlos. Nova tripanozomiaze humana: estudos sobre a morfolojia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n. gen., n. sp., ajente etiolojico de nova entidade morbida do homem. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 159-218 e anexos, 1909. DOI: https://doi.org/10.1590/S0074-02761909000200008. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0074-02761909000200008. Acesso em: 15 dez. 2020.

 

ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD. Respuesta mundial para el control de vectores 2017-2030: documento de contexto para informar las deliberaciones de la Asamblea Mundial de la Salud em su 70a. reunión (versión 5.4). 2017. Disponível em: https://www.who.int/malaria/areas/vector_control/Draft-WHO-GVCR-2017-2030-esp.pdf . Acesso em: 22 dez. 2020.

 

SANTOS, Emily F. et al. Acute Chagas disease in Brazil from 2001 to 2018: a nationwide spatiotemporal analysis. PLOS Neglected Tropical Diseases, São Francisco, Califórnia, v. 14, n. 8, p. 1-16, 2020. DOI: . https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0008445.  Disponível em: https://journals.plos.org/plosntds/article?id=10.1371/journal.pntd.0008445. Acesso em: 23 dez. 2020.

 

VINHAES, Márcio C.; DIAS, João Carlos Pinto. Doença de Chagas no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 16, p. 7-12, 2000. Supl. 2. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2000000800002. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v16s2/3480.pdf. Acesso em: 15 dez. 2020.

 

WORLD CHAGAS DISEASE DAY: bringing a forgotten disease to the fore or global attention. World Health Organization, Genebra, 14 abr. 2020. Disponível em: World Chagas Disease Day: bringing a forgotten disease to the fore of global attention . Acesso em: 21 dez. 2020.

 

 

 

 

 

 

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