Em meio aos documentos do fundo João Goulart, no Arquivo Nacional, encontramos um recorte de jornal guardado pela família do ex-presidente. Trata-se da primeira edição do "Jornal do País Nas Bancas" - publicado pela Editora Século Vinte -, que foi criado no momento de luta pelas Diretas Já e funcionou entre os anos de 1984 e 1986. Esse jornal saía aos domingos e reunia as vozes de um vários setores de esquerda, desde grupos mais moderados até outros mais radicais. A direção do semanário era de Neiva Moreira, que na época era Secretário de Comunicação do então governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola.
Além de Neiva Moreira, o jornal contava com Ivan Alves, militante do PCB, que era o editor; José Guimarães Neiva Moreira - jornalista e político -, membro fundador da Frente Parlamentar Nacionalista nos anos 1960; Herbert de Souza, ex-militante da Ação Popular (AP); Theotônio dos Santos e Ruy Mauro Marini, ex-militantes da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP), entre outros.
O objetivo do jornal era trazer notícias dos quatro cantos do Brasil, não se restringindo somente ao eixo Rio-São Paulo, sempre através do olhar da imprensa independente. Ao mesmo tempo, o editorial deixava claro que não almejavam buscar a neutralidade, mas sim atender aos anseios do povo brasileiro, zelando pelos "interesses nacionais e populares”, em prol da "conquista e preservação da democracia" e do "respeito aos direitos humanos e sociais".
Outro ponto importante de se destacar na linha editorial do "Jornal do País Nas Bancas" é a crítica ao Fundo Monetário Internacional (FMI), ao mesmo tempo em que tenta estabelecer uma conexão entre a sociedade brasileira e outros povos igualmente explorados da América Latina, África e Ásia, destacando a luta por democracia, liberdade e igualdade nesses países, contra a exploração imperialista estrangeira. Ao explorar os problemas nacionais, pretendia dar voz à questão indígena, ao movimento negro e a atores que estiveram amordaçados durante a ditadura como sindicatos, líderes comunitários, universidades.
A matéria apresenta o primeiro número lançado, em abril de 1984, momento de grande mobilização popular em favor de eleições diretas para presidente – o movimento Diretas Já. Nessa conjuntura, o jornal buscava o enfrentamento não só contra a ditadura militar em si, mas especialmente na disputa pela memória sobre o evento. E foi justamente esta a intenção de seu número de estreia: relembrar as tramas e os antecedentes do golpe, caracterizar incontestavelmente os responsáveis como golpistas e não revolucionários, além de trazer "fatos e testemunhos" que mostrassem o que ocorreu, segundo palavras do próprio jornal, para explicar didaticamente, aos que "não viveram esses episódios" e aos que "deles não tiveram plena consciência", como se deu o golpe militar de 1964.
Logo, em seu primeiro número, de abril de 1984, traz na capa em grande destaque a imensa manifestação realizada em prol da Emenda Dante de Oliveira, que reuniu mais de um milhão de pessoas na cidade do Rio de Janeiro exigindo o retorno do voto direto para presidente da República, algo não permitido durante a ditadura. Em seguida, o jornal dá ênfase à disputa pela memória sobre a ditadura, com a imputação de culpa aos golpistas e a busca por respostas sobre o porquê da ausência de uma resistência ao rompimento democrático de 1964. Afinal, por que o golpe deu certo?
A reportagem intitulada "Os papéis da CIA" detalha a documentação presente na Biblioteca Lindon Johnson, afirmando que agentes da CIA estavam "envolvidos na conspiração golpista" com informações privilegiadas da marcha do golpe desde o início de 1963, portanto, um ano antes de deflagração do mesmo. Em seguida o jornal faz um resumo do que chamou de "Os últimos dias", desde o Comício da Central do Brasil - em 13 de março de 1964 - até o evento no Automóvel Clube, quando Goulart compareceu em apoio aos sargentos, o que foi considerado pela alta cúpula militar um incentivo à quebra da disciplina nas Forças Armadas, sendo o estopim para o golpe. As reportagens destacam o tempo todo o evento como golpe, afirmação relevante na disputa pela memória do fato, e confirma o 1º de abril – popularmente conhecido como dia da mentira – como o da deflagração do movimento e não o 31 de março, conforme é defendido pelos militares.
Em uma página inteira, há declarações do Brigadeiro Francisco Teixeira, detalhando os acontecimentos que antecederam o golpe. Segundo Teixeira, a anistia dada pelo presidente aos marinheiros, dias antes, foi decisiva para a marcha golpista dentro das Forças Armadas. Sobre uma possível resistência, afirma que "sozinho, eu não poderia fazer nada". Enfatiza a organização dos golpistas e o apoio norte-americano à conspiração. Em seguida, Neiva Moreira é quem traz sua versão sobre os fatos. Em seu depoimento, afirma que tinha "condições concretas para liquidar a conspiração golpista". Na época, Moreira era Secretário-Geral da Frente Parlamentar Nacionalista. É interessante que o jornal traz falas de Moreira e Teixeira que se convergem: ambos realçam que Jango era contra ações que terminassem em derramamento de sangue. Moreira afirma que os golpistas que saíram de Minas Gerais para a deflagração do golpe poderiam ter sido bombardeados, mas que o presidente havia sido contrário a tal decisão temendo o início de uma guerra civil.
Tais análises e depoimentos tomam cerca de metade do jornal, que em seguida começa a destacar os responsáveis pelo golpe. É dada ênfase ao livro "1964, a conquista do Estado", de René Dreifuss. E assim detalha a participação do IBAD, do IPES e de um amplo grupo formado por empresários nacionais e internacionais e por militares, que se reuniram a fim de trabalhar criminosamente pela derrubada do presidente. Além do livro citado acima, o Jornal do País Nas Bancas também destaca o filme Jango, de Silvio Tendler, que à época tinha sido recentemente lançado e atingia boa audiência. Era uma forma de retomar a memória em torno do ex-presidente, já falecido, fortalecendo ainda mais a luta pela redemocratização e pelo retorno das eleições diretas.
Outra reportagem que merece destaque no jornal é a entrevista com algumas senhoras participantes da importante "Marcha da Família, com Deus, pela liberdade", que haviam apoiado o golpe. O tom é de desencanto e pedidos em prol do retorno da possibilidade de votar para presidente. Dona Julieta Nunes Pereira reclama que o Brasil estava "entregue a grupos estrangeiros". Já dona Alice de Sousa Amaral afirma ao jornal que a situação em 1984 era de "muita corrupção e incompetência" e que o país estava "pior do que naquela época”.
Este recorte de jornal que estamos analisando, guardado pela família de Jango, traz ainda uma entrevista com o general César Montagna de Sousa defendendo o que chama de "Revolução Democrática de 1964", definindo o período iniciado como de "20 anos de acertos", a fim de mostrar que o general, ao contrário dos muitos desencantados, ainda insistia na narrativa de "salvação do país do comunismo", diferentemente do que mostrava todos os fatos e depoimentos trazidos nas páginas anteriores.
Assim, é importante perceber que o Jornal do País Nas Bancas trouxe, já em 1984, no apagar das luzes da ditadura, uma importante reflexão dos personagens da época sobre os vinte anos anteriores, buscando respostas, fazendo perguntas, mas principalmente destacando criteriosamente o cotidiano que antecedeu o golpe de Estado contra o presidente João Goulart. Começava-se a passar a ditadura a limpo. Era o início do acerto de contas com o passado, que até hoje ainda não se concluiu pela falta de Justiça - muito em razão da Lei da Anistia de 1979 - aos que sofreram direta ou indiretamente os efeitos da quebra da normalidade democrática e da expulsão de um presidente que havia sido eleito pelo voto popular.
Veja mais informações em: https://www.fundacaoastrojildo.org.br/o-jornal-do-pais-nas-bancas-e-as-batalhas-da-memoria-na-transicao-a-democracia-no-brasil/
Documento: Pode ser encontrado no Fundo João Goulart sob o código br_rjanrio_d7_0_dco_txt_0001_0021_d0001de0001