Volta Redonda: a CSN e o massacre de 1988
Viviane Gouvêa
Mestre em Ciência Política
Pesquisadora do Arquivo Nacional
A atual Constituição em vigor no território brasileiro, promulgada em 5 de outubro de 1988, assegura o direito de greve, “competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.” Também estabelece que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”. Expressão dos anseios de uma sociedade que vivera mais de vinte anos sob uma ditadura militar marcada por insidiosa violência ideológica e intensa repressão política que incluia desaparecimentos forçados e mortes suspeitas sob custódia oficial, a Constituição-cidadã, como ficou conhecida, estabeleceu por escrito uma amplitude de direitos individuais e políticos talvez inédita no Brasil.
Certamente não se esperava que um mês e 4 dias depois da sua promulgação, três operários em greve acabassem assassinados dentro de uma siderúrgica estatal por forças do exército, durante uma desastrosa invasão. Trinta anos depois, nenhum responsável foi preso ou sequer indiciado.
1.
A Companhia Siderúrgica Nacional [usina Presidente Vargas em 1957] criada em 1941 no governo Getúlio Vargas, iniciou operações em 1945, quando os primeiros setores da usina (fornos de coque e o setor de subprodutos) entraram em operação. A construção da usina [Construção da usina em 1942], que recebeu o nome de Usina Presidente Vargas, resultou de acordos de cooperação econômica entre Brasil e Estados Unidos, no contexto da entrada do Brasil na Segunda Guerra. Volta Redonda, onde se localiza o maior número de unidades do grande conglomerado que constitui a CSN, nasce como cidade operária visceralmente ligada a usina. Seu cotidiano foi marcado pela presença da siderúrgica ao longo da maior parte da sua existência, e ela foi responsável pela sua independência em relação ao município de Barra Mansa em 1954, pautando toda a sua vida social até os anos 1990.
Se esta conexão com uma empresa estatal pode ter minado a estruturação de um movimento sindical ligado as lutas mais amplas travadas por entidades no resto do país, por outro lado, “as características singulares de uma cidade-operária, onde a gestão da empresa e do espaço encontrava-se concentrada nas mãos de um mesmo agente, proporcionou outras formas de atuação para a entidade sindical. O fato de a companhia ter sido responsável pela moradia e a alimentação dos seus trabalhadores e pelos demais serviços públicos, [...] fez com que o sindicato desenvolvesse uma cultura de reivindicação mais abrangente. Associado aos demais movimentos sociais, o trabalho sindical estendia-se a áreas muito além das questões apenas econômicas ou trabalhistas.” (Pereira, Sérgio Martins ).
Ao longo das décadas de 1960 e 1970, movimentos sociais locais passaram por um processo de rearticulação, liderado pela Igreja, do qual o sindicato faria parte. Posteriormente, no contexto de abertura política, o chamado sindicalismo corporativo, enraizado na comunidade local e preso a uma relação com o Estado que o enfraquecia, acabaria por dar lugar a um sindicalismo de enfrentamento – o Novo Sindicalismo defendido pela CUT (Central Única dos Trabalhadores) na década de 1980.
A despeito de um histórico longo de sindicalismo corporativista, o SMVR (Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda) teve sua origem na entidade fundada por comunistas em 1946, o que ocasionou a primeira intervenção em sindicatos da região. A segunda, em 1964, evitou que o sindicato, ligado à CGT (Central Geral dos Trabalhadores, que apoiava Goulart), convocasse um movimento de apoio ao presidente legítimo.
Sua primeira greve de campanha salarial ocorreu em 1984 [Jornal do sindicato dos metalúrgicos, 1984] através da qual os operários exigiram equiparação salarial com os metalúrgicos da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista). Foi uma greve de ocupação [Panfleto do sindicato] que envolveu 22 mil funcionários.
2.
No fim dos anos 1980, a inflação atingia 100% ao mês, marca que hoje em dia parece inacreditável. Os salários não acompanhavam a inflação, e no horizonte já se delineava uma política voraz de privatizações de empresas públicas, que seria levada a cabo com mais intensidade por Collor de Melo e Henrique Cardoso. As greves eram constantes e, em especial no setor público, longas: em outubro de 1988, 17 dos 22 ministérios haviam ficado parados por 26 dias. A recuperação das perdas salariais provocadas pelo arrocho do Plano Bresser estava na pauta da maioria dos movimentos grevistas. Além disso, a nova Constituição previa o turno de seis horas, e esta acabou sendo uma das principais reivindicações do sindicato dos metalúrgicos de Barra Mansa e Volta Redonda, assim como a readmissão de ativistas demitidos em função de greves anteriores.
A malfadada greve de 1988 foi decidida por operários reunidos no pátio da SOM –Superintendência de Oficinas Mecânicas - em assembleia no dia 4 de novembro, e teve início no dia 7, quando os operários da CSN e da FEM (Fábrica de Estruturas Metálicas, subsidiária da CSN) cruzaram os braços [Relatório policial]. Mais uma vez o sindicato, cuja diretoria era composta majoritariamente por sindicalistas ligados a CUT (Central Única dos Trabalhadores), decidiu-se por uma greve de ocupação [Foto tirada em operação policial], realizada por cerca de 3 mil operários. O exército marcou presença desde o início [Grevistas e soldados em fotografia da vigilância policial], como ocorrera em outras ocasiões. Segundo a Comissão da Verdade de Volta Redonda, “em quase todas as greves da CSN-FEM, algumas por razões restritas à CSN outras por razões de grave geral, houve a invasão da Usina Presidente Vargas pelas forças do Exército sediadas no 22º BIMTZ, em Barra Mansa, para reprimir o movimento grevista, mas sob alegação de proteção dos equipamentos”. Em algumas greves anteriores, os grevistas haviam recuado e interrompido a greve. Em 1988, eles não recuaram. E o que ninguém esperava que acontecesse, em plena “Nova República,” aconteceu: as forças armadas investiram contra a multidão que reunia-se em ato no centro da cidade, invadiram a companhia e atiraram a esmo contra seus operários [Folheto do sindicato], ferindo 50 e matando três deles : Barroso, Walmir, William [Carlos Augusto Barroso, de 19 anos, Walmir Freitas Monteiro, 27 anos, e William Fernandes Leite, 22 anos][Fotografia do velório dos grevistas mortos]. Foi a mais desastrosa participação do exército em um movimento grevista [Relatório policial].
No mesmo dia em que a greve é deflagrada, a CSN solicita liminar de “manutenção de posse” ao Juiz da 3ª Vara Cível. Os sindicalistas citados na liminar (Juarez Antunes, Marcelo Felício e Isaque Fonseca) não tomam conhecimento da ordem e defendem a manutenção da ocupação. O Juiz Moisés Cohen solicita oficialmente força militar para cumprimento da decisão de “manutenção de posse”, o que acabou por dar suporte jurídico à intervenção de tropas do Exército. Concomitantemente, o presidente da CSN, Juvenal Osório, solicita a intervenção de tropas do 22º BIMtz.
A invasão da CSN foi levada a cabo por forças do Exército vindas do Batalhão de Petrópolis (1ª Brigada Motorizada do Exército), reforçadas por batalhões de choque da PM do Rio de Janeiro e da Companhia de Polícia do Exército, comandadas por um general que veio substituir as forças locais (batalhão de Barra Mansa) a mando do presidente da República José Sarney, que por sua vez atendia a pedidos diretos da direção da siderúrgica. Imaginava-se que o confronto seria violento, até porque o sindicato, às vésperas de uma eleição na qual uma das suas personalidades mais marcantes (Juarez Antunes) candidatava-se a prefeito pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista), havia se preparado com discursos explosivos e armadilhas montadas a partir de material existente na siderúrgica.
Os relatos [Relato do jornalista Ernesto Germano Parés] apontam que no centro da cidade, as forças especiais agrediram a população em geral de forma violenta e indiscriminada. A reação deu-se com as únicas armas que podiam encontrar: pedras arrancadas ao calçamento. Da mesma forma, os operários sitiados dentro da CSN reagiram a agressão das tropas armadas de fuzis e metralhadoras com o material que dispunham dentro da siderúrgica[material apreendido pelo exército]. Os relatórios do exército acusam o sindicato de atividades terroristas e subversivas, baseados na apreensão de canos, pedras, cal e tijolos, indicando que as forças armadas enfrentavam grevistas de uma empresa pública como se estes fossem inimigos organizados e armados com o mesmo calibre que eles.
A despeito da desocupação violenta levada a cabo pelo exército [exército ocupa CSN], a greve permaneceu até o dia 24 de novembro, quando os operários em assembleia decidiram aceitar a proposta da empresa (que cedera em quase todos os pontos) e voltar ao trabalho, mediante retirada das Forças Armadas. O Inquérito Policial Militar não apontou culpados, e a justiça militar não permitiu o depoimento de nenhum dos militares envolvidos à justiça comum. Todas as denúncias apresentadas pelo Ministério Público foram rejeitadas, e o general José Luís Lópes da Silva, comandante da invasão, foi indicado Ministro do Superior Tribunal Militar em 1999 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, afirmou em entrevista que a operação em Volta Redonda havia sido uma operação “bem-sucedida.”
3.
Meses depois da invasão, no feriado de 1º de maio de 1989, foi inaugurado um monumento de autoria de Oscar Niemayer em homenagem aos jovens assassinados na greve do ano anterior, em uma praça central de Volta Redonda. Uma bomba derrubou o monumento {monumento após a explosão] naquela mesma noite. Em uma entrevista publicada no Jornal do Brasil em março de 1999, o ex-capitão Dalton de Melo de Franco, que afirma ter recebido a ordem para coordenar o atentado (ordem esta que se negou a cumprir), diz que o exército considerou o monumento (erguido em uma praça anteriormente denominada general Edmundo Macedo Soares e rebatizada com o nome do sindicalista e prefeito de Volta Redonda Juarez Antunes, morto em fevereiro de 1989) uma afronta, devendo-se evitar a todo custo a criação de mártires operários. A investigação acerca do atentado, incluindo a utilização de explosivos cedidos por quadrilhas de bicheiros do Rio, e o apontamento dos principais culpados encontra-se no relatório da Comissão da Verdade de Volta Redonda.
Por sugestão do próprio arquiteto e decisão dos operários em assembleia, o monumento foi reerguido [Monumento reerguido] mas não foi restaurado, para que a afronta aos trabalhadores assassinados e também a toda a siderúrgica jamais fosse esquecida .
Em 1993, apesar de intensos protestos Brasil afora, a Companhia Siderúrgica Nacional foi privatizada.
Imagens:
Usina Presidente Vargas em 1957: BR_RJANRIO_PH_0_FOT_05895_042
Construção da usina em 1942: BR_ANRIO_FF_GF_1_0_5_10_21_02
Jornal do sindicato dos metalúrgico, 1984: Fundo Ernesto Germano Parés (não organizado)
Panfleto do sindicato: Fundo Ernesto Germano Parés (não organizado)
Relatório policial: BR_RJANRIO_J3_0_TXT_8
Foto tirada em operação policial: BR_RJANRIO_J3_0_FOT_003_002
Grevistas e policiais em fotografia da vigilância: BR_RJANRIO_FJ_0_FOT_001_002
Folheto do sindicato: Fundo Ernesto Germano Parés (não organizado)
Fotografia do velório dos grevistas mortos: Fundo Ernesto Germano Parés (não organizado)
Relatório policial: BR_RJANRIO_J3_0_TXT_8
Relato do jornalista Germano Ernesto Parés: Fundo Ernesto Germano Parés (não organizado)
Material apreendido pelo exército: BR_RJANRIO_J3_0_FOT_003_008
Exército ocupa CSN: BR_RJANRIO_J3_0_FOT_003_006
Monumento após a explosão: Fundo Ernesto Germano Parés (não organizado)
Monumento reerguido: Fundo Ernesto Germano Parés (não organizado)
Recomendações de leitura e bibliografia