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Viviane Gouvea

Cientista Política

Pesquisadora do Arquivo Nacional 

O primeiro ato institucional editado pela junta militar que chegou ao poder pelo golpe iniciado no último dia de março e concretizado em 1 de abril de 1964 estabelecia a realização de eleições indiretas, via Congresso Nacional, para presidente e vice-presidente da República. Marcada para dois dias após a publicação do ato, as eleições realizadas no Congresso Nacional apenas ratificaram o nome do marechal Humberto Castelo Branco. Alguns dos que votaram no marechal para presidente naquele dia, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek, acabariam cassados pela ditadura pouco tempo depois.  Assim, as eleições de 1960, que elegeram Jânio Quadros e João Goulart para presidente e vice, respectivamente, seriam as últimas eleições diretas para estes cargos realizadas no Brasil até 1989.

Através de atos institucionais e uma nova constituição os governos militares foram paulatinamente cerceando o direito de voto, não apenas ao interditá-lo para cargos do executivo como ao estabelecer o bipartidarismo e o voto vinculado. No entanto, e ao contrário da maioria das ditaduras que marcaram o século XX, os militares brasileiros optaram por um simulacro de democracia, ao permitir eleições para o Congresso (a despeito das já citadas limitações e da instituição do senador biônico em 1977) e a eleição periódica, mesmo que indireta, do presidente e seu vice. O Colégio Eleitoral foi criado pela constituição outorgada em 1967,  e era composto por membros do Congresso Nacional e por delegados indicados pelas assembleias legislativas dos estados, tendo por função escolher entre dois candidatos o presidente seguinte. O partido de oposição era o MDB (movimento Democrático Brasileiro) e o governo era representado pela ARENA (Aliança Renovadora Nacional).

Em 1979 o general João Batista Figueiredo torna-se o último presidente militar. Prometendo consolidar o movimento de abertura iniciado pelo seu antecessor Ernesto Geisel, Figueiredo acabaria célebre com a frase: [sobre a abertura] e se alguém for contra, eu prendo e arrebento... A anistia (embora sua redação não tenha agradado a muitos) é assinada em 1979, o bipartidarismo compulsório terminou no ano seguinte e em 1982 há eleições diretas para governador em todos os estados.

A partir da reorganização dos movimentos sociais na segunda metade dos anos 1970, em especial o movimento em prol da anistia,  e das eleições diretas para governador (a primeira desde a década de 1960) a ideia de restabelecer as eleições diretas para presidente antes do previsto pela legislação em vigor começou a ganhar força. Com o fim do bipartidarismo, a oposição ao regime se organizou em torno de 4 partidos: Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que começaram a se articular tendo em vista a sucessão de Figueiredo. Em 1983, o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT) apresentou uma emenda constitucional que restabeleceria, já para o pleito previsto para janeiro de 1985, eleições diretas para presidente, contrariando o cronograma do governo militar  Divergências dentro do PMDB (um setor minoritário desejava encampar integralmente a campanha pelas diretas como forma de pressionar políticos do PDS, o partido de apoio ao governo; o setor majoritário buscava aproximar-se de insatisfeitos entre os políticos da situação em busca de uma aliança que apresentasse um candidato “de conciliação” ao Colégio Eleitoral) possivelmente impediram que o movimento ganhasse corpo ainda em 1983, adiando seu crescimento para o ano seguinte.

Mesmo assim, ao longo de 1983 eventos esporádicos pediram o retorno das eleições diretas (em maio, após um debate com Ulysses Guimarães – PMDB/ SP – na Universidade de Goiás, os estudantes foram as ruas pedir Diretas-já). Mas foi em janeiro de 1984 que a campanha começou a ganhar corpo: Olinda (5 de janeiro, 15 mil pessoas), Curitiba (12 de janeiro, 30 mil pessoas), Porto Alegre (13 de janeiro, 3 mil pessoas), Salvador (20 de janeiro, 50 mil pessoas), São Paulo (25 de janeiro, 200 mil pessoas). Em São Paulo, uma vez que em 25 de janeiro também se comemora o aniversário da cidade, parte da cobertura jornalística apresentou o evento como apenas uma celebração pela data. Mas a  presença de  Franco Montoro, governador do estado de São Paulo (PMDB-SP), Leonel Brizola, governador do estado do Rio de Janeiro (PDT-RJ) Ulisses Guimarães, presidente do PMDB, e Luis Inácio da Silva, presidente do PT, no mesmo palco não deixam margem a dúvidas.

 O Brasil de meados da década de 1980 passava por uma grave crise econômica, que se evidenciava no vertiginoso crescimento da inflação; na profunda crise cambial; na queda significativa da variação do Produto Interno Bruto (PIB) nacional; e na perda de poder de compra dos cidadãos. Além da crise econômica, o governo militar atravessava seu período final em meio a uma crise de desgaste que se refletiu em uma crise interna, culminando com a retirada do presidente Figueiredo das articulações para a sucessão presidencial.

Enquanto o governo tentava conter o racha interno, a campanha verde e amarela varria o país, ganhando porta-vozes (Ulysses Guimarães, Fafá de Belém, Chico Buarque, Leonel Brizola, Milton Nascimento, Osmar Santos, Sócrates), símbolos e slogans, tornando-se uma campanha de proporções épicas: Rio de Janeiro (16 de fevereiro, 40 mil pessoas), Belo Horizonte (24 de fevereiro, 400 mil pessoas), Rio de Janeiro (21 de março, 200 mil pessoas), Natal (6 de abril, 50 mil pessoas), Rio de Janeiro (10 de abril, um milhão de pessoas), Goiânia (12 de abril, 300 mil pessoas), Porto Alegre (13 de abril, 200 mil pessoas), São Paulo (16 de abril, um milhão e meio de pessoas). Cada comício era uma festa, onde não faltavam cores, música e multidão. 

Para acabar com o colégio eleitoral e garantir as diretas, as oposições precisavam do apoio de dois terços dos votos dos congressistas à emenda Dante de Oliveira. O Partido Democrata Social (PDS), o partido do governo, possuía 235 votos, o suficiente para barrar uma emenda constitucional, e com este trunfo o governo Figueiredo ainda tentaria negociar com a oposição uma extensão do mandato até 1986, havendo então a escolha direta. Mas no início de março de 1984 o maior partido de oposição na época, o PMDB, decide não negociar a sucessão e sustentar a campanha em prol das eleições diretas, campanha esta lançada oficialmente pelo próprio partido no ano anterior.

O governo acompanhava a movimentação de perto. O Sistema de Informações funcionava a pleno vapor, e cada ato, cada pronunciamento e cada notícia eram cuidadosamente registrados e analisados. Medidas de segurança previstas na legislação criada ao longo dos anos de ditadura foram adotadas no período que antecedeu a votação da emenda: para tentar evitar que Brasília saísse do controle em função das manifestações pró-diretas a pressionar os parlamentares, o governo determinou a limitação do acesso à capital e a proibição de manifestações políticas dentro dos limites da cidade, mesmo em recintos fechados, além do controle direto acerca do que poderia ser divulgado pela imprensa ou não.

A votação, marcada para 25 de abril, contou com a presença de militantes, cidadãos, artistas que ocuparam as dependências do Congresso Nacional. A votação, embora emocionante, não surpreendeu: para que uma emenda constitucional seja aprovada, são necessários dois terços dos votos da Câmara dos Deputados, e a emenda Dante de Oliveira, apesar dos expressivos 298 votos, não chegou aos 320 necessários. Houve uma tentativa de dar continuidade a campanha, e alguns comícios foram realizados nas capitais, mas o movimento se esvaziou depois da votação.

A Diretas-já é, até hoje, uma das maiores campanhas de mobilização nacional já vista no Brasil. Iniciada por partidos políticos, transformou-se em um movimento popular que reuniu em suas fileiras sindicalistas, religiosos, militantes de diversos movimentos sociais, associações de classe, e muitos, muitos cidadãos esgotados com um regime que durava 20 anos. O Comitê Nacional Suprapartidário Pró-Diretas, que aglutinava a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central Geral dos Trabalhadores (CGT) organizou várias manifestações. Não devemos minimizar, contudo, o papel crucial desempenhado por alguns governadores que, buscando capitalizar a adesão do povo as eleições diretas, garantiram estrutura e divulgação maciça dos eventos. Por ter sido criado e estruturado por partidos oficiais, dos quais o maior deles (PMDB) temia ser associado a posicionamentos mais a esquerda, e apesar da impressionante mobilização de massas, toda a campanha – salvo poucos incidentes isolados - transcorreu em “paz verde e amarela,” sem que em nenhum momento houvesse conflitos nas ruas ou discordâncias entre os discursos nos palcos, que possuíam basicamente um único foco: eleições diretas para presidente ainda em 1985. Discursos “radicais” e falas demasiadamente agressivas (“revanchistas”) foram evitadas, em prol do “bem da nação.”

O movimento Diretas-já representou o retorno das massas populares ao cenário político. No entanto, com pautas limitadas, discursos domesticados e poucas iniciativas de usar o movimento como catalisador para outras lutas sociais, a derrota da emenda mais uma vez indicou que, como em outros momentos da história, o país se via a mercê de soluções negociadas e saídas conciliatórias, que impediam (ou ao menos, limitavam) que as raízes mais profundas do nosso autoritarismo político fossem debatidas.

Depois da derrota no Congresso, os partidos começaram a se rearticular, visando a eleição indireta que ocorreria em janeiro de 1985. Os pedessistas dissidentes formaram uma aliança com o PMDB, e desta aliança (a Frente Liberal) saiu a chapa Tancredo Neves-José Sarney, que recebeu o apoio de quase todos os partidos de oposição. Sarney (MA), apoiador histórico do regime militar, rompeu com o governo ao longo de uma disputa interna que envolveu os nomes de Paulo Maluf (que acabou vitorioso), Mário Andreazza, Aureliano Chaves e Marco Maciel – os dois últimos, líderes da ruptura que culminou na fundação do Partido da Frente Liberal. Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio Eleitoral em janeiro de 1985, derrotando Paulo Malf, mas jamais tomou posse: sofrendo de um tumor benigno, ele foi hospitalizado no dia anterior a sua posse, mas o presidente de 75 anos morreu em 21 de abril de 1985. Assim, o velho aliado dos governos militares acabou sendo o primeiro presidente civil brasileiro desde 1964: José Sarney.

Bibliografia recomendada

A documentação utilizada neste site pode ser encontrada no Sian. Listagem:

Constituição outorgada em 1967. BR_RJANRIO_DK_C67_CST_0001_d0001de0001.pdf

 BR_RJANRIO_EH_0_FIL_BHO_264. Vídeo produzido pela Agência Nacional mostrando a posse de João Batista Figueiredo como presidente da República e de Aureliano Chaves como vice-presidente. Brasil Hoje n° 264 (1979). Arquivo Nacional. Fundo Agência Nacional. 

 BR RJANRIO FT.0.0.26. Documentos do Movimento Feminino pela Anistia.

 BR_DFANBSB_N8_0_PSN_EST_0361 (4 links):  Constituição Federal. Proposta de Emendas. Brasília, 1983/84

 BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_84040398 (3 links): Comício pelas eleições diretas na praça da Sé, São Paulo – 25 de janeiro de 1984.

 BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_EEE_87019416: Comício do PT em Campinas pelas Diretas-já – 10 de agosto de 1987.

 BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_CCC_84010459: Campanha pró-diretas, Cinelândia-Rio de Janeiro, 21 de março de 1984.

 BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_84041038: Anexo em dossiê sobre aparecimento do partido revolucionario comunista. Maio de 1984.

 BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_84040398: Comício pelas eleições diretas na praça da Sé, São Paulo – 25 de janeiro de 1984.

RIOSBR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_84041610: Comunicação social e movimento pró-diretas. Brasília, 1984.

 BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_84041175: Prisões efetuadas na véspera da votação da emenda Dante de Oliveira. Abril de 1984.

 BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_CCC_84010937: campanha pró eleições diretas. Rio de Janeiro, junho de 1984.

 BR_AN_RIO_D7_0_FAM_TXT_0003_010: Recortes de jornal, “Comitês recebem visita de D. Yolanda (Costa e Silva) e Denise Goulart”, em que ambas decretam seu apoio a Tancredo Neves nas eleições presidenciais de 1984.

 BR_DFANBSB_N8_0_PSN_EST_0100: Coletânea de documentos sobre sucessão presidencial. Brasilia, 1984/ 85.

 

 

 

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