Cassação de militares: a ameaça vem de dentro
Cláudio Beserra de Vasconcelos.
Doutor em história pelo programa de pós-graduação em história social da UFRJ.
Professor da secretaria de educação do estado do Rio de Janeiro
Imediatamente após o golpe de 1964, os novos donos do poder passaram a se preocupar com a consolidação do novo regime e em reforçar os interesses dos grupos sociais a eles articulados. Para realizarem esse objetivo, iniciaram um processo repressivo de “limpeza” do sistema político que consistia na eliminação de todo e qualquer foco oposicionista, real ou apenas teórico, que pudesse representar um núcleo de contestação ao regime e ao projeto político-econômico a ser implantado. Segundo o projeto Brasil: Nunca Mais, um dos primeiros grupos a ser atingido por esse “saneamento” foram as próprias Forças Armadas.[1] Em números, dos 222 atingidos pelos três primeiros atos do Comando Supremo da Revolução, 128 (57,66%) eram militares. Entre 1964 e 1970, foram punidos 53 oficiais generais, 274 oficiais superiores, 111 oficiais intermediários, 113 oficiais subalternos e, pelo menos, 936 entre sargentos, suboficiais, cabos, marinheiros, soldados e taifeiros. Esses dados podem nos levar a concluir que as cassações de militares foram comparativamente menores do que as dos demais grupos de atingidos. De fato, foram, mas, como percebe Marcus Figueiredo, considerando o grupo de referência (funcionários públicos militares), a proporção de atingidos é mais significativa do que a de funcionários públicos civis,[2] o que demonstra o tamanho da preocupação que eles geravam. Mas, exatamente por que esses homens foram cassados? Que tipo de ameaça representavam para o novo regime?
A trajetória política dos oficiais generais e superiores cassados demonstra que, entre eles, havia uma série de confluências político-ideológicas, entre fins da década de 1940 e os primeiros anos da década de 1960. Há um passado comum de ativismo em entidades e movimentos, cuja constituição temporal e humana e as propostas políticas indicam uma similaridade ideológica, sobressaindo a defesa de uma política nacionalista de desenvolvimento e de soberania para o Brasil.
Essas associações e movimentos surgiram e tiveram atuação destacada em meio a um intenso debate sobre os rumos do país, no qual, basicamente, dois projetos antagônicos se colocaram. O ponto central de discordância era a questão da aceitação ou repúdio de uma política de desenvolvimento de tipo nacionalista para o Brasil. Como as Forças Armadas também tomaram parte desse debate, assim como os civis, acabaram divididas no que Antônio Carlos Peixoto classificou como “partidos militares”.[3]
As divergências entre os diferentes grupos militares ficaram mais acirradas e ganharam publicidade a partir do debate sobre o modelo de exploração do petróleo a ser adotado pelo país, mais especificamente, depois das conferências dos generais Juarez Távora e Júlio Caetano Horta Barbosa, em 1947, no Clube Militar.
Távora, nos dias 21 de abril, 19 de junho e 16 de setembro, argumentando a tese da inexistência de recursos e tecnologia suficientes à exploração e da necessidade de colaboração do Brasil com os Estados Unidos, pregou a associação entre o Brasil e o capital externo para a empreitada. Já Horta Barbosa, em 30 de julho e 6 de agosto, defendeu a exploração do petróleo sob regime de monopólio estatal, alegando que a parceria com o capital estrangeiro poderia levar à subordinação dos interesses nacionais na questão aos ditames das empresas internacionais.
A partir do debate em torno da forma de exploração do petróleo, a perspectiva nacionalista tornou-se um movimento político e ideológico de setores da sociedade. A luta cresceu e abrangeu partidos, sindicatos, associações, intelectuais, estudantes e militares, defendendo teses nacionalistas, em seus mais diversos matizes. Da aglutinação desses grupos surgiram associações e movimentos nacionalistas com forte atividade política até 1964. Entre elas, as que mais contaram com a participação de militares foram: o Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional (CEDPEN); a Liga da Emancipação Nacional (LEN); a chapa nacionalista que disputou as eleições para a diretoria do Clube Militar entre 1950 e 1952; a Associação Brasileira de Defesa dos Direitos do Homem (ABDDH); a Campanha contra o Acordo de Assistência Militar Brasil-EUA; o Movimento pela Paz e a Campanha pela Proibição das Armas Atômicas; e as associações culturais e eventos em solidariedade a povos amigos como a Guatemala, China, Cuba e o Paraguai.
Portadoras de uma identificação política e ideológica e uma ligação estrutural, elas funcionavam como centros intelectuais de formulação e divulgação das propostas nacionalistas. A tese estrutural comum era a autodeterminação política e econômica, não só para o Brasil, mas para todos os países latinos. Em torno dela, criticavam o modelo de desenvolvimento associado-dependente, a política de alinhamento automáticos aos EUA e defendiam as riquezas e interesses nacionais, uma política anti-imperialista, o estabelecimento de relações políticas e comerciais com todos os países, inclusive os do Leste europeu e Ásia, e a união latino-americana, às vezes de caráter revolucionário, contra o imperialismo.
Os militares eram figuras centrais em tais associações. Em cerca de 30, faziam parte das direções, formando o núcleo da corrente militar do movimento nacionalista. Alguns eram comunistas, mas o nacionalismo não pode ser associado automaticamente ao comunismo. Mesmo no AntiMil, setor composto por militantes do PCB inseridos nas Forças Armadas, a pauta estava assentada mais por uma política nacionalista e patriótica do que em seguir os ditames de Moscou.
Apesar de todo o esforço, da promoção de congressos, exposições e estudos, visando uma campanha de esclarecimento da opinião pública, o movimento nacionalista não conseguiu construir suportes tão bem estruturados quanto a Doutrina de Segurança Nacional, em desenvolvimento na Escola Superior de Guerra (ESG), baseada numa concepção econômica liberal e defensora de um projeto de uma sociedade de equilíbrio estático. A proposta nacionalista era incompatível com a sonhada pelos vencedores de 1964. Disto derivou a decisão pós-golpe de adoção de uma política de contenção de movimentos que ameaçassem a ordem vigente e os interesses capitalistas, o que resultou na repressão política para combate e prevenção de inimigos. Dada a centralidade militar nestas associações, era previsível a violência com que a repressão atingiu homens a elas ligados. Mas esse não era o único motivo dos militares nacionalistas terem se tornado alvos preferenciais.
Efetivamente, do núcleo do partido militar nacionalista apenas cinco homens foram cassados. Isso tem uma explicação: quando da deflagração do golpe, em 1964, o foco eram os militares que estavam na ativa. Do total de oficiais generais e superiores cassados, menos de 10% já não estavam no serviço ativo, e, dos 32 militares que aparecem com mais frequência entre os líderes dessas associações, pelo menos 23 já não se encontravam no serviço ativo das Forças Armadas em 1964, alguns por falecimento, outros devido à transferência para reserva. Sem a função de comando de tropa, ficava reduzida uma possível influência no interior da corporação.
A constatação de que os líderes militares das associações nacionalista nos anos 1940-1950 não foram o alvo preferencial da repressão política pós-golpe, entretanto, não invalida a relação entre a inserção no movimento e a cassação. Ainda que muitos dos que foram cassados pela ditadura não tivessem sido membros das direções das entidades nacionalistas, foram partidários e, como tal, apoiaram um dos grupos que estavam em disputa pelo controle da hierarquia militar ao longo dos anos 1945-1964. Seriam uma “segunda geração” de militares nacionalistas, que assumiam a liderança desse movimento nos anos 1960, além de exercerem função de comando de tropa, o que os tornavam inimigos potencialmente perigosos, óbices ao modelo de desenvolvimento que se pretendia pôr em prática. Esses obstáculos precisavam ser neutralizados. Em outros termos, houve um critério político-ideológico que conferiu coerência à prática punitiva aplicada aos militares durante a ditadura.
Contudo, as cassações não ficaram limitadas aos oficiais generais e superiores. Fica a interrogação quanto ao lugar ocupado pelos oficiais intermediários e subalternos que sequer tinham idade para participar ativamente – ao menos, não como militares – das mobilizações nacionalistas dos anos 1940 e 1950.
Após o golpe, militares foram alvos de Inquéritos Policial-Militares (IPMs) que visavam investigar suas participações em um suposto processo de doutrinação ideológica das praças militares. É o caso de muitos oficiais intermediários e subalternos cassados. Um bom exemplo dessa prática foi o IPM aberto para apurar o envolvimento de oficiais com a “Revolta dos Marinheiros”, ocorrida entre os dias 25 e 27 de março de 1964. Ao longo desse inquérito, surgem, para além do motivo declarado, uma série de outras inquietações por parte dos inquisidores que remetem a questões que vão além da crise específica a que o IPM se refere.
Os interrogatórios e as alegações finais confirmam o mesmo rol de preocupações que dirigiu as cassações da maioria dos oficiais: ideias e ligações políticas e ideológicas com políticos de esquerda e/ou a proximidade com a atuação política das frações sociais mais baixas e a simpatia pelas reformas propostas pelo governo João Goulart são temas recorrentes. Ainda que não se possa considerar como crime, em alguns casos, tais ligações foram comprovadas, mas, em outros, não foram encontrados quaisquer subsídios que justificassem o indiciamento dos militares. Mesmo nesses casos, a cassação foi o destino. O motivo: prevenção.
Tendo sido comprovado que, durante os últimos dias de março e os primeiros do mês de abril de 1964, esses oficiais atuaram em cumprimento de ordens de seus superiores, a preocupação passava a ser: cumprindo ordens de quem? Surgia como problema a ligação pessoal ou apenas funcional a um grupo de oficiais generais com uma trajetória semelhante e ligados às mobilizações nacionalistas dos anos anteriores, como por exemplo o almirante Cândido Aragão e o brigadeiro Francisco Teixeira.
Embora, na aparência, tais cassações pudessem ser vistas como diferentes em comparação a dos demais militares cassados, o pano de fundo era o mesmo: eram homens que serviam diretamente sob o comando, mantinham relações ou cumpriram ordens de oficiais superiores e generais, em sua maioria, com um percurso político e posição ideológica de caráter nacionalista. Embora limites, tais casos são reveladores, pois permitem reafirmar que a política repressiva aplicada aos militares pós-1964 tinha por objeto “limpar” as FFAA de elementos nacionalistas. Seguindo a lógica presente na Doutrina de Guerra Revolucionárias de existência de “inimigos internos” infiltrados em toda a sociedade, para aqueles que assumiram o poder do Estado em 1964, esses jovens oficiais também faziam parte do grupo adversário, mesmo que apenas hipoteticamente. Eram subversivos em potencial, como expresso na denúncia do inquérito. Havia o temor de que, num futuro, viessem a se transformar em novos solapadores não só da hierarquia e da disciplina, mas de todo um projeto político que começava a ser posto em prática, que concorressem para reerguer um partido militar e um movimento político com princípios diametralmente opostos aos dos que preconizavam um processo de desenvolvimento autoritário, conservador, socialmente excludente e intrinsecamente ligado e dependente do capital internacional.
Mas, não só os oficiais foram perseguidos. As praças militares, grupo que vinha em um processo crescente de mobilização desde os anos 1950, também foram intensamente perseguidos.
Um primeiro momento de expressão da mobilização das praças foi chamada “Revolta dos Sargentos”, promovida, além dos próprios, por cabos e suboficiais, especialmente da Aeronáutica e da Marinha, que ocorreu em 12 de setembro de 1963 e teve como detonadora a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de reafirmar a inelegibilidade dos sargentos para os órgãos do Poder Legislativo. Já a “Rebelião dos Marinheiros”, derradeiro expoente, ocorreu quando da comemoração do segundo aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais (AMFNB), entidade considerada ilegal, pela hierarquia da Marinha. Durante a reunião, os marinheiros discursaram pela legalização da associação e em defesa das reformas de base propostas pelo presidente João Goulart.
No contexto do período, essas mobilizações das praças foram vistas como a vertente militar das manifestações populares, o que gerava uma grave preocupação: a união dos mais diversos setores populares (sindicais, estudantis etc.) às praças militares. O estímulo recíproco de aproximação entre esses grupos gerou a possibilidade, de um lado, do surgimento de uma força militar em prol das reivindicações populares, e, do outro, do apoio popular às reivindicações das praças. Tal união indicava o nascimento um novo período de lutas sociais no Brasil e, ao mesmo tempo, produziu um temor, no alto comando militar, de quebra da hierarquia e da disciplina, e, nos grupos civis conservadores, de perda do seu status quo. Pior, com a anuência do presidente da República, João Goulart. Os movimentos das praças, unidos aos demais movimentos de massas, tomaram, pois, o sentido embrionário de insurreição popular armada e ameaçavam bases em que se estruturava o sistema capitalista. “Precisavam” ser reprimidos.
Num primeiro esforço, pós-golpe, procurou-se identificar os ligados a tais processos, especialmente aqueles envolvidos na rebelião dos marinheiros e na revolta dos sargentos. Mas não bastava afastar apenas os mais ativos, era preciso evitar o ressurgimento desse movimento. Também com relação às praças cabe a percepção de que o projeto de “saneamento”, de modo preventivo, visava eliminar da vida política e militar todo e qualquer óbice ou antagonismo real ou potencial ao regime ditatorial e ao projeto de desenvolvimento capitalista traçado.
Com esse objetivo, na Aeronáutica procurou-se excluir os cabos e soldados que colaboraram com a revolta dos sargentos em Brasília, mas também foi efetuado um processo de perseguição aos cabos, iniciado com o fechamento da Associação de Cabos da Força Aérea Brasileira (ACAFAB), organização de que espelhava na AMFNB. Seus sócios fundadores foram expulsos da FAB, mas isso era pouco. Por não terem conseguido provas que incriminassem centenas de cabos, o comando da Aeronáutica recomendou que se atentasse na conduta desses militares e cuidassem quando do engajamento ou reengajamento. Também não foi suficiente. Procurou-se, então, atualizar as normas de engajamento e reengajamento dos cabos, de modo a impedir, ou ao menos dificultar a permanência de tais homens na Aeronáutica. Administrativamente, foram buscados meios para punir possíveis inimigos.
Em uma conjuntura de fortalecimento de forças civis e militares defensoras do ajustamento da ordem político-econômica brasileira a outro tipo de Estado “democrático”, expurgado de elementos identificados com a “ativação popular” que marca a conjuntura pré-golpe, o crescimento das mobilizações reivindicatórias das praças militares e a possibilidade de união entre elas e as massas civis geravam temores. A repressão às praças aparece, nesse quadro, como parte de uma estratégia militar que visava impedir a arregimentação e o ressurgimento de tais movimentos.
O golpe de 1964 e a ditadura não são consequências da tentativa de se evitar que o país seguisse em um processo de comunização e corrupção. Isso é retórica. Suas raízes se encontram na busca de implantação de um modelo de desenvolvimento capitalista de caráter conservador, socialmente excludente e dependente do capital internacional. Para ser atingido, a ativação popular deveria ser evitada, a democracia, de forma ampla, precisava ser restringida. A repressão política aparece como parte central pra o sucesso dessa empreitada. Disto resulta a percepção de que a essência desse processo, em suas múltiplas faces, inclusive no que se refere à que foi aplicada aos militares, reside no embate político-ideológico entre forças sociais, compostas por civis e militares, que se enfrentavam especialmente a partir de 1945, intensificaram os conflitos a partir de 1961 – crise de legitimidade política, ascensão do anticomunismo e do antinacionalismo, crises da hierarquia militar etc. – e cujas propostas apontavam direções diferentes para onde o Brasil deveria seguir.
Nesse panorama, a identificação em torno de um projeto de desenvolvimento para o país de caráter nacionalista, calcado na autodeterminação político-econômica e que defendia a participação política das massas, conferiu uma coerência à trajetória dos militares do partido militar nacionalista. Findou, também, por dar sentido à política de cassações empregada após o golpe de 1964 sobre esses homens. Se, numericamente, os militares foram o maior foco das primeiras cassações, se, no todo, foram significativamente perseguidos pelos seus companheiros de farda, tendo sido mantida atenção sobre eles mesmo depois de já cassados – como ocorreu com o então coronel aviador Rui Moreira Lima, comandante da Base Aérea de Santa Cruz, quando do golpe –, isso se explica: era necessário eliminar o potencial de resistência nacionalista na caserna às proposições do governo. O inimigo mais perigoso era o que mais tinha condições de medir forças.
[1] MITRA ARQUIDIOCESANA DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais – um relato para a história. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 117.
[2] FIGUEIREDO, Marcus. A política de coação no Brasil pós-64. In: KLEIN, Lúcia; FIGUEIREDO, Marcus. Legitimidade e coação no Brasil pós-64. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978. p. 164-165.
[3] PEIXOTO, Antônio Carlos. Exército e política no Brasil: uma crítica dos modelos de interpretação. In: ROUQUIÉ, Alain (coord.). Os partidos militares no Brasil. Trad.: Octávio Alves Velho. Rio de Janeiro: Record, s.d. p. 27-42.
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