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O teatro no governo Vargas: 1930-1945

Angélica Ricci

Doutora em história

Pesquisadora do Arquivo Nacional

Em agosto de 1940 vários artistas se dirigiram ao Palácio do Catete para agradecer ao presidente Getúlio Vargas a atenção concedida ao teatro. Na ocasião, o ator e empresário Procópio Ferreira fez um discurso reconhecendo essa dívida:

Se todas as classes que formam o organismo brasileiro, v. excia.. [sic], têm motivos os mais fortes para transformar a sua gratidão no mais intenso desejo, na mais irrecusável obrigação de colaborar na obra de salvação nacional que se processa sob a bandeira do Estado Novo, a classe teatral, mais do que todas, se sente no dever de colocar-se ao lado de v. excia. [sic] como soldados de vanguarda na intensa campanha que nos vai conduzindo, de vitória em vitória, ao lugar de honra que nos compete, como grande povo, na próxima hegemonia do Novo Continente.[1]

A fala de Procópio não refletia uma atitude isolada. Muitos profissionais teatrais prestaram homenagens a Getúlio Vargas durante os quinze anos de seu primeiro governo. Tais homenagens faziam questão de recuperar a imagem de "“amigo do teatro”, cuja origem remontava à sua atuação como deputado federal, quando foi responsável por encaminhar um projeto que regulava a organização de empresas de diversões e a locação de serviços teatrais, a partir de uma proposta elaborada pela Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). Sancionado em 16 de julho de 1928, o decreto nº 5.492 ficou conhecido como “Lei Getúlio Vargas”.

Em 1930, no início de seu governo, representantes da Casa dos Artistas, organização assistencial criada em 1918, entregaram-lhe um memorial com propostas que visavam à superação de alguns obstáculos enfrentados pelo meio teatral na época. A esse seguiram-se outros memoriais, solicitações e reuniões com o presidente, que contribuíram para a instalação de dois órgãos voltados para o desenvolvimento do teatro brasileiro, a Comissão de Teatro Nacional e o Serviço Nacional de Teatro (SNT).

Diferente das iniciativas oficiais efêmeras e pontuais observadas desde o século XIX, as novas estruturas governamentais assumiram uma ampla gama de competências e, entre avanços e recuos, consolidaram uma política para a área, que seria desmantelada apenas na década de 1990, pela reforma administrativa conduzida por Fernando Collor de Mello.

A Comissão de Teatro Nacional e o SNT foram constituídos no interior de um processo crescente de intervenção do Estado nos mais diferentes domínios de atividades, desencadeado após os acontecimentos que ficaram conhecidos como Revolução de 1930.

A esfera cultural não ficou de fora desse processo. Datam do período, a fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual IPHAN, do Instituto Nacional do Livro (INL), do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), entre outras medidas que, em conjunto, são consideradas, por diversos autores, como marco inaugural das políticas para a cultura no país.[2]

A maior parte dessas ações e órgãos ficou a cargo do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), e foi criada durante a gestão de Gustavo Capanema (1934-1945), que fez da pasta um espaço de produção de uma cultura oficial orientada por valores considerados eruditos e voltada para a construção da nacionalidade.[3]

Fora do MESP, outros organismos também desempenharam um papel importante no que concernia à produção cultural oficial, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), subordinado diretamente à Presidência da República, e encarregado da elaboração da propaganda, da execução da censura, da promoção de manifestações cívicas e festas populares, do incentivo às artes e outras competências.

A Comissão de Teatro Nacional foi estabelecida em setembro de 1936, como um órgão de estudo sobre temas como a construção de teatros, a produção dramatúrgica, a formação de atores e o teatro infantil. Para seus trabalhos foram convocados artistas e intelectuais, como Olavo de Barros, Francisco Mignone, Benjamin Lima, Oduvaldo Vianna e Sérgio Buarque de Holanda. Em pouco mais de um ano de existência, a comissão foi responsável por estudos, tradução e publicação de peças e obras sobre teatro, subvenções a companhias profissionais e grupos amadores e promoção de espetáculos de ópera e de dança.

Benjamin Lima, Oduvaldo Vianna e Sérgio Buarque de Holanda. Em pouco mais de um ano de existência, a comissão foi responsável por estudos, tradução e publicação de peças e obras sobre teatro, subvenções a companhias profissionais e grupos amadores e promoção de espetáculos de ópera e de dança.

Seu sucessor, o SNT (Serviço Nacional do Teatro), foi instituído pelo  decreto-lei nº 92, em 21 de dezembro de 1937, com a finalidade de estimular a construção de teatros em todo o país; amparar companhias de teatro e grupos amadores; incentivar o teatro para crianças e adolescentes; promover a educação profissional de artistas; favorecer a produção e publicação de obras teatrais, dentre outras atribuições.

Assim, competia ao novo órgão estimular o teatro brasileiro e solucionar diferentes problemas que afetavam a área. Alguns deles envolviam aspectos materiais, como o da falta de casas de espetáculos, decorrente, em grande parte, da transformação de muitos teatros em cinemas. Outros, relacionavam-se ao aprimoramento da parte artística, considerada, de modo geral, de maneira negativa, devido ao predomínio dos gêneros cômicos e musicados nos palcos e no gosto do público – daí a necessidade de uma escola e de incremento da produção dramatúrgica.

O artigo primeiro do decreto-lei nº 92 colocou como premissa: “o teatro é considerado como uma das expressões da cultura nacional, e a sua finalidade é, essencialmente, a elevação e a edificação espiritual do povo”.[4] Tal visão ancorava-se em um papel pedagógico atribuído ao teatro e refletia uma concepção hierarquizada dos gêneros teatrais, que não era uma exclusividade brasileira. De acordo com esta, em um patamar superior estava o teatro “sério” ou “de arte”, caracterizado por suas qualidades literárias eruditas. Embaixo, ficava o teatro “para rir” ou “comercial”, associado às formas tradicionais de comicidade, que tinha como propósito apenas divertir o público.

Como ocorreu nas outras instituições ligadas à esfera cultural, o SNT ficou a cargo de profissionais da área. Seu primeiro diretor foi o dramaturgo e crítico teatral Abadie Faria Rosa, que assumiu o posto em agosto de 1938. Além dele, foram chamados para o trabalho no órgão os dramaturgos Gastão Tojeiro e José Guimarães Wanderley, a atriz Lucília Peres, o teatrólogo Otávio Rangel e a bailarina Eros Volúsia – os três últimos como professores do Curso Prático de Teatro. 

Conhecendo de perto os problemas do teatro, o diretor elaborou um grande plano para o desenvolvimento das atividades do SNT, contemplando os múltiplos aspectos relacionados ao “fazer teatral”. Nem todas as ideias saíram do papel, mas algumas iniciativas importantes foram realizadas durante os quase sete anos de sua gestão. Dentre elas, a criação de uma escola, o Curso Prático de Teatro, que atualmente é a Escola de Teatro da UNIRIO, e de duas companhias oficiais, objetos antigos de demanda do setor teatral, sob inspiração da Comédie Française. O diretor também foi responsável pela publicação de peças de autores brasileiros e fez tentativas para facilitar as excursões de companhias e conseguir teatros. Entretanto, a principal tarefa assumida pelo órgão, para a qual foi destinada a maior parte da sua verba, foi a concessão de auxílios para companhias profissionais, grupos amadores e outros empreendimentos teatrais.

Apesar de condenada pelo diretor, a subvenção parecia ser o meio mais acessível e imediato para promover o teatro brasileiro. Em 1939 foi lançado um edital para subvenção de oito companhias teatrais, cobrindo uma temporada de oito meses, quatro deles no Rio de Janeiro ou em São Paulo e os demais em excursão pelo país. Não se sabe quais foram as orientações adotadas para a seleção, para qual a direção do órgão convocou representantes de entidades de classe, que escolheram algumas das principais companhias atuantes no Rio de Janeiro, como as comandadas por Delorges Caminha, Jayme Costa, Renato Viana e Jardel Jércolis.

Nesse mesmo ano, outras concessões foram feitas fora do edital, que, a partir de 1940, deixou de existir. Assim, o amparo passou a ser concedido para diferentes finalidades, como auxílio a espetáculos, temporadas ou excursões, etc. Não havia critérios para a fixação dos valores, que eram bastante variáveis, ainda que até os auxílios mais altos fossem julgados, à época, como incapazes de contribuir efetivamente para as montagens.

As subvenções concedidas atenderam tanto as companhias de comédia tradicionais, incluindo àquelas dedicadas ao teatro musicado e de revista, vistas de maneira desfavorável pela crítica, por parte da intelectualidade e até pelo diretor do SNT; como as propostas inovadoras de grupos amadores, que se pautavam pela busca de um teatro “sério”. Este foi o caso da montagem de Vestido de Noiva, peça de Nelson Rodrigues, encenada pelo grupo Os Comediantes em 1943, e considerada como “marco” do teatro brasileiro moderno.

Nas solicitações, as companhias e grupos adotavam diferentes estratégias. Não raro enfatizavam a precária situação enfrentada para a realização dos espetáculos, ou destacavam seu empenho na “elevação” do repertório por meio de uma seleção de textos clássicos, por exemplo.]

Houve, ainda, aqueles que propuseram peças com temáticas históricas sintonizadas com a produção cultural incentivada pelo governo durante o Estado Novo, facilitando, dessa forma, a obtenção de recursos oficiais. Carlota Joaquina, de Raimundo Magalhães Júnior, Tiradentes, de Viriato Corrêa, e Caxias, de Carlos Cavaco, foram algumas das peças montadas sob o patrocínio do SNT. As duas primeiras também publicadas com verba concedida pelo órgão.

Para além dos argumentos de ordem material ou artística presentes nos pedidos de auxílio, vale assinalar que algumas companhias e grupos se valeram das relações com o ministro ou com o presidente Vargas, que interferiram diretamente em algumas ocasiões, como no mencionado caso do grupo amador Os Comediantes, cuja concessão foi feita por ordem direta de Gustavo Capanema.

O SNT também financiou espetáculos para fins políticos, realizados em comemoração aos dez anos da Revolução de 1930, e cooperou com o DIP na realização da propaganda relacionada à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, por meio da subvenção de montagens com essa temática, colaborando com a construção das narrativas oficiais sobre esses eventos.

Assim, os auxílios distribuídos pelo SNT assumiram um perfil diversificado, contemplando distintos gêneros e modalidades teatrais, sem se basear em nenhum critério nítido, fato que gerou diversos protestos e questionamentos ao longo dos anos. Além das críticas divulgadas na grande imprensa, artistas e entidades recorriam diretamente ao presidente da República para fazer reclamações ou novas reivindicações em prol dos interesses do teatro brasileiro.

Em agosto de 1945, em meio à crise que culminou no fim do Estado Novo, o presidente novamente “entrou cena” para atender a classe teatral e aprovou o plano de reformulação do SNT proposto por João Batista Massot, que sucedeu Abadie Faria Rosa no comando do órgão. No mês seguinte, no dia 17, foram sancionados três decretos-lei que trataram da isenção de impostos e taxas federais incidentes sobre espetáculos teatrais e para o favorecimento da construção de novos teatros; da criação de uma escola de teatro de nível universitário; e da proibição da utilização de edifícios teatrais para outras finalidades.[5]

A aprovação do plano e a expectativa de promulgação dos decretos-lei provocaram reações positivas da classe teatral, que se reuniu em frente ao Palácio do Catete para, novamente, agradecer ao presidente as medidas de amparo ao teatro. 

E novas manifestações de apoio, como essa, ou de protesto, ainda seriam vistas em outros contextos políticos, mobilizando os profissionais teatrais na luta pelo teatro brasileiro.

Conciliando os interesses do meio teatral e as diretrizes governamentais, a trajetória do SNT foi marcada, nesses anos iniciais, pela falta de diretrizes e por interferências externas, às quais se somaram outros obstáculos de natureza burocrática e orçamentária. Suas iniciativas, portanto, não foram capazes de contornar os problemas enfrentados pelo setor e nem favorecer diretamente a “elevação” da cena teatral e, consequentemente, “educar” o público – ideia que estava tão presente nos planos e discursos naquele momento. Mesmo assim, essa experiência abriu caminhos para a construção de uma política para a área, que foi feita com a participação decisiva de diversos personagens e entidades do setor.

[1] OS ARTISTAS homenagearam o Chefe do Governo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 ago. 1940. Teatros, p. 11

[2] SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria Bousquet; COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de Capanema. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra; Fundação Getúlio Vargas, 2000, p. 97.

[3] CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

[4] BRASIL. Decreto-Lei n. 92, de 21 de dezembro de 1937. Cria o Serviço Nacional de Teatro. Lex-Coletânea de Legislação e Jurisprudência: legislação federal e marginália, São Paulo, v. 1, p. 364, 1937. 

[5] Decretos-lei nº 7.957, nº 7.958 e nº 7.959.

Lista de documentos

Fotografia de Procópio Ferreira (s.l.), (s.d.). Fundo Correio da Manhã BR_RJANRIO_PH_0_FOT_17597_033

Fotografia do presidente Getúlio Dornelles Vargas, no Palácio do Catete, recebendo homenagem de comissão de artistas teatrais, Rio de Janeiro-RJ, 23/08/1940. Fundo Agência Nacional BR_RJANRIO_EH_0_FOT_PRP_00759_d0003de0003

Fotografia de cenário com retrato de Getúlio Dornelles Vargas, confeccionado pela Companhia de Teatro Pinto, como homenagem da classe teatral ao aniversário do presidente, Rio de Janeiro-RJ, 1941. Fundo Agência Nacional BR_RJANRIO_EH_0_FOT_EVE_02660_D0002DE0003

Partitura da 5ª Valsa de Esquina, de Francisco Mignone, São Paulo, 1938. Coleção Discoteca Arquivo Nacional BR_RJANRIO_J5_0_RTS_0001_0008_d0001de0001

Decreto-lei nº 92, que criou o SNT. Fundo Gabinete Civil da Presidência da República BR_RJANRIO_35_0_DLE_92

Longe dos olhos, peça de Abadie Faria Rosa, 1920. Fundo 2ª Delegacia Auxiliar da Polícia do Rio de Janeiro BR_RJANRIO_6E_CPR_PTE_182

Fotografia de Lucília Peres (s.l.), (s.d.). Fundo Correio da Manhã BR_RJANRIO_PH_0_FOT_17595_001

Fotografia de Delorges Caminha (s.l.), (s.d.). Fundo Correio da Manhã BR_RJANRIO_PH_0_FOT_14053_014

Fotografia de Jayme Costa (s.l.), (s.d.). Fundo Correio da Manhã BR_RJANRIO_PH_0_FOT_17590_003

 Áudio com a síntese da peça Tiradentes, de Viriato Correia, adaptada e dirigida por Freitas Guimarães, e promovida pelo DIP, Rio de Janeiro-RJ, 21/04/1940. Fundo Agência Nacional BR_RJANRIO_EH_0_DSO_DIS_0007_d0001de0001.mp3

Carta de Armando Gareau Moreira, diretor do Teatro Popular de Amadores “Abadie Faria Rosa”, recorrendo de despacho do ministro da Educação que indeferiu seu pedido de auxílio, 1945. Fundo Gabinete Civil da Presidência da República BR_RJANRIO_35_0_PRO_6415

Telegrama de Luís Iglezias pedindo amparo para os interesses do teatro nacional, Rio de Janeiro-RJ, 1945, Fundo Gabinete Civil da Presidência da República BR_RJANRIO_ 35_0_PRO_20442

 Fotografia da manifestação de atores teatrais em frente ao Palácio do Catete, Rio de Janeiro-RJ, 11/09/1945. Fundo Agência Nacional  BR_RJANRIO_EH_0_FOT_PRP_01321_d0006de0006

Bibliografia e sugestões de leitura

 

 

 

 

 

 

 

 

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