Por: Luiza Dantas de Oliveira
Doutoranda no PPG de Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade - CPDA/UFRRJ
Uma panela crivada de balas. Em maio de 1985, no 4º Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, promovido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), esse foi o presente entregue por Otília Maria Nogueira da Silva, trabalhadora rural e liderança sindical em Itacaré/BA, para o então ministro da reforma agrária, Nelson Ribeiro. A panela onde Otília então guardava as sobras da refeição fora atingida em um atentado contra a vida da trabalhadora rural na noite de domingo, 19 de maio de 1985. Uma vez entregue nas mãos do ministro durante o congresso que foi também ocasião de lançamento da proposta do I Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), a panela furada viraria um símbolo de uma questão candente na arena política da recém iniciada Nova República: as violências contra os modos de vida e as formas de organização política no campo.
Medeiros (1989) aponta que o 4º Congresso da CONTAG trazia na pauta um conjunto de temas então bastante caros à ação sindical no campo, como a ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários para trabalhadores rurais, política agrícola de apoio à pequena produção, direito à greve dos assalariados rurais, críticas à política de construção de barragens e ampliação das formas de participação sindical. No entanto, os debates em torno do projeto de reforma agrária destacaram-se, explicitando as divergências entre a CONTAG e as organizações criadas no embalo da abertura política, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Um dos pontos que dividia opiniões era a proposta de realização da reforma agrária nos termos da legislação fundiária vigente, o Estatuto da Terra, havendo aqueles que defendiam a necessidade de uma nova lei, entendendo que a anterior, aprovada em seguida ao golpe de 1964, trazia a marca dos interesses privados que sustentaram o regime autoritário que lhe deu sequência.
A nomeação de Nelson Ribeiro para a pasta da reforma agrária fora bem recebida por setores da Igreja Católica que se opunham ao regime ditatorial iniciado com o golpe militar de 1964. Sua indicação para o novo ministério sinalizava um compromisso com a agenda por parte do governo Sarney, acenando para as organizações representativas das populações camponesas e sua extensa rede de apoiadores que, naquele momento, se faziam ver na cena pública defendendo a reforma agrária como frente fundamental de democratização da sociedade. Além da CONTAG – que após sofrer intervenção militar no imediato pós-golpe, voltou ao controle dos trabalhadores rurais em 1968 –, a década de 1980 foi marcada pela ação de uma gama de novos sujeitos coletivos, em grande medida criados a partir de vínculos estabelecidos no bojo do movimento sindical e da atuação de pastorais como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
A proposta do I PNRA apresentada pelo primeiro governo da Nova República era vinculada aos termos do Estatuto da Terra, e previa realizar a reforma agrária a partir de terras públicas e privadas improdutivas, priorizando áreas de conflitos intensos. No que pese a vinculação com a legislação vigente desde 1964, o simbolismo de sua proposição em um congresso de trabalhadores rurais foi decisivo para a forte reação por parte dos grandes proprietários rurais. A retórica patronal que emerge neste processo vai insistir em uma “renovada” identidade política dos grandes proprietários, que vão criar entidades alternativas à representação sindical patronal (BRUNO, 2002; 2009). Sob custódia do Arquivo Nacional, no fundo Estado-Maior das Forças Armadas, encontra-se relatório acerca do “Movimento de Defesa do Direito de Propriedade”, criado em Goiás, em junho de 1985, logo em seguida ao 4º Congresso da CONTAG, e que depois passa a ser chamado de União Democrática Ruralista (UDR). Já no ano seguinte ao de sua criação, a UDR encontrava-se representada também nos estados do Maranhão, Pará, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo, consagrando-se pela promoção de marchas públicas e grandes leilões de gado para financiar a entidade.
A reação dos grandes proprietários foi fundamental para que o governo recuasse naquilo que a proposta do I PNRA apresentava de mais alinhada aos anseios dos movimentos camponeses: a prevalência do instrumento da desapropriação e o desestímulo às práticas de especulação imobiliária (MEDEIROS, 1989; BRUNO, 2002). Em linhas gerais, o texto final do I PNRA, apresentado em outubro de 1985, inscrevia a reforma agrária como medida de caráter pontual a ser negociada caso a caso com os proprietários, e ainda reiterava a lógica predominante no projeto econômico da ditadura para o campo, ressaltando o papel do Estado na promoção do caráter produtivo da propriedade privada e o privilégio das relações de trabalho como meio de se promover mudanças no campo, em detrimento do aspecto fundiário.
A politização dos conflitos no campo também preocupava os militares. Martins (1982) aponta que as primeiras medidas de abertura política da ditadura foram acompanhadas pelas investidas de “militarização da questão agrária”, através da criação do Ministério Extraordinário de Assuntos Fundiários, em 1982, sob ingerência do Conselho de Segurança Nacional (CSN). Para o general Golbery do Couto e Silva, a abertura deveria promover o “retorno de todas entidades e organizações sociais não partidárias a seus papéis apolíticos e esferas próprias de atuação, para oposições não ideológicas” (MARTINS, 1982, p. 112). Assim, na mesma medida em que promoviam a liberalização do regime, os militares marcavam o passo na tentativa de esvaziar o conteúdo político das disputas no campo, procurando minar a atuação das organizações de assessoria e apoio aos camponeses.
“Se o problema é para imolar vidas que comecemos logo”
Após a apresentação dos planos regionais de reforma agrária pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), reunidos na sede da Associação dos Fornecedores de Cana de Pernambuco, fazendeiros, pecuaristas e usineiros daquele estado deixavam claro o modo como reagiriam às iniciativas reformistas e, sobretudo, às ações dos trabalhadores sem-terra para pressionar o governo. A matéria que registrou a frase do fazendeiro Antônio Celso Cavalcanti, na edição de 07 de janeiro de 1986 do Jornal do Brasil, é uma das tantas destacas na pesquisa de Bruno (2002). Trabalhando com a expressão das entidades patronais na grande imprensa naquele período, a autora mostra como os grandes proprietários rurais tentavam se apresentar como representantes da moderna empresa agrícola, afastando-se de uma concepção estigmatizada de latifúndio, mas igualmente baseados em um ideário de propriedade privada como direito absoluto e defendendo explicitamente a violência como recurso a ser empregado para sua defesa. No bojo desta nova retórica, os velhos artifícios da violência e arbitrariedade passam também pela desqualificação de trabalhadores rurais e pequenos agricultores, taxados de incompetentes e não afeitos às modernas técnicas da agroindústria.
Nos moldes da construção de uma “democracia com que sempre sonhou a ditadura” – como Florestan Fernandes (1982, p. 14) procurou destacar já a partir das primeiras medidas de abertura política pelos militares –, a transição democrática foi marcada pela intensificação dos conflitos fundiários no campo e aumento dos assassinatos deflagrados no contexto destes conflitos. Para os grandes proprietários, tratava-se de reagir não somente a qualquer possibilidade de alteração na estrutura fundiária, mas, sobretudo, às novas formas de organização política das populações no campo e à força que vinham demonstrando na conjuntura da democratização. Figueira (1986; 2021) destaca neste período a criação de “firmas de segurança” que atuavam a serviço de latifundiários em diferentes regiões do país, como por exemplo a firma Sapucã, na região de Manaus/AM, o grupo Solução, no estado de Goiás, ambos coordenados por policiais, e o grupo de Sebastião da Terezona, atuando na região de Marabá, sul do Estado do Pará. O caráter político da violência é patente não só pelos papéis sociais dos principais alvos das milícias privadas a mando de grandes fazendeiros ou grileiros de terras, mas também pelos diferentes graus de participação direta e indireta de agentes do Estado.
Diversas iniciativas neste período vão procurar denunciar o caráter sistemático destas violências, apontando para elementos de continuidade desde o golpe de 1964 e os novos contornos assumidos no início da Nova República. Entre elas, destacam-se o dossiê “Assassinatos no campo: crime e impunidade – 1964-1985”, publicado pelo MST, e o início da publicação anual Cadernos de Conflitos no Campo, pela CPT. A partir do que a Pastoral possuía de informação documentada, ou seja, apenas a partir de casos confirmados, o primeiro caderno da CPT, datado de 1985, registrou 768 conflitos naquele ano envolvendo situações como disputa por terra, condições de trabalho assalariado temporário e outras questões envolvendo direitos trabalhistas, contaminação por agrotóxicos e atividades de garimpo ilegal. Estiveram envolvidas 567.324 pessoas, havendo pelo menos 216 mortes, 1.363 feridos e 557 presos somente em 1985.
O que é genericamente identificado como “violências no campo” assume especificidades no cotidiano dos processos sociais, nem sempre contempladas pelas concepções de violência e crime que predominam no enquadramento jurídico dos fatos (AYOUB, 2020). Para Tavares dos Santos (2002), a violência como um problema social compreende todo ato de força, coerção e dano em relação ao outro, enquanto ato de excesso presente nas relações de poder entre grupos sociais. Assim, além das ameaças, tentativas e assassinatos cometidos por ocasião dos conflitos fundiários, nas denúncias também são reportadas torturas, prisões arbitrárias, deslocamentos forçados, contaminação e destruição de roças/lavouras e de nascentes, obstrução de estradas e acessos para curso d’água e açudes, ferimento e morte de animais de criação ou essenciais para a reprodução do trabalho em regime familiar, destruição de comunidades inteiras por ocasião de decisões judiciais de caráter provisório (liminares), exploração de trabalhadores como escravos (em privação de liberdade, endividamento, sem direitos trabalhistas mínios), entre outras formas de negação e desprezo pelos modos de vida e de organização política no campo.
O relatório da organização não governamental Anistia Internacional (AI) acerca das violações de direitos humanos no Brasil no ano de 1986 alertava para uma “violência autorizada no Brasil rural”, pois que contava em larga medida com a tolerância e “falha aparente” das autoridades locais, estaduais e federais para proceder com investigações e responsabilização penal dos executores e mandantes. O documento foi encaminhado pela organização para embaixadas do Brasil em diversos países, questionando o posicionamento das autoridades diplomáticas. Pistas interessantes acerca da repercussão das denúncias reportadas no documento da AI nas comunicações do Ministério das Relações Exteriores bem como na imprensa internacional são encontradas em documentação da Divisão de Segurança e Informações do referido ministério, sob custódia do Arquivo Nacional.
A impunidade seletiva como marca das violências no campo
Durante toda a década de 1980, junto com o movimento sindical rural, o MST, a União das Nações Indígenas (UNI), o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), entre outras organizações, se notabilizaram por ações como ocupação de órgãos públicos, retomadas e acampamentos de terras, atos públicos, empates na floresta amazônica etc.
Neste sentido, por exemplo, no estado de Santa Catarina, o dia do lançamento da proposta do I PNRA, 25 de maio de 1985, foi marcado pela ocupação de diversas áreas improdutivas. No Pará, terra natal do recém empossado ministro da reforma agrária, a Nova República também iniciava com ações massivas de ocupação de propriedades improdutivas e castanhais ilegais. (MEDEIROS, 1989; TRECCANI, 2001).
No encalço da crescente mobilização política no campo, a expressão das múltiplas formas de violência contra a vida de camponeses, suas lideranças e apoiadores foi marcada pela indiferença e omissão das autoridades do sistema de justiça. Omissão que contrastava com a frequência com que camponeses figuraram no banco dos réus da justiça militar, respondendo acusações com base na Lei de Segurança Nacional. Um caso que ganhou repercussão nacional foi o da prisão, julgamento e condenação de treze posseiros e dois padres por ocasião de conflitos de terras em São Geraldo do Araguaia, no Pará, e que deu origem ao Movimento pela Libertação dos Presos do Araguaia (MLPA). Por outro lado, diante da ausência sistemática de medidas de responsabilização pelos órgãos da jurisdição estatal pelos crimes cometidos por pistoleiros ou policiais a serviço dos interesses de grandes proprietários, as organizações que desde 1982 construíam a Campanha Nacional pela Reforma Agrária decidem performar julgamentos públicos que, não vinculados ao Estado, reproduzem os ritos da Justiça visando confrontá-la.
No auditório do Palácio de Justiça em Belém, no Estado do Pará – onde pelo menos 226 pessoas foram assassinadas em conflitos agrários somente entre 1985 e 1986 (AFONSO, 2016) –, foi realizado em abril de 1986 o primeiro tribunal popular voltado para as lutas sociais do campo: “Tribunal da Terra: terra, morte e impunidade”. Informes produzidos pelo Serviço Nacional de Informações registram que a atividade voltou-se para apurar responsabilidades sobre assassinatos e chacinas ocorridas em seis municípios paraenses - Marabá, Tomé-Açu, Rio Maria, São João do Araguaia, Viseu e Xinguara. Além de serem em grande medida “mortes anunciadas”, uma vez que precedidas de ameaças, em muitos casos também ocorrem na forma de chacinas – três ou mais assassinatos em razão de uma mesma situação conflitiva, ocorridos ou não no mesmo local e data (ALMEIDA, 1997).
Uma segunda experiência do tipo, foi realizada em Guarulhos /SP, em julho de 1986 e, em seguida, o “Tribunal da Terra: a tragédia e a farsa da violência no campo”, ocorreu por ocasião do II Congresso da CUT, em agosto de 1986, mesmo mês de lançamento do chamado Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio (TNCL). Em telegrama da Divisão de Segurança e Informação (DSI) da Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
que esteve registrando as atividades de organização política dos povos indígenas, o Tribunal da Terra do congresso da CUT também deu ocasião para o encontro das candidaturas indígenas para o pleito daquele ano, que formaria a legislatura responsável pela elaboração da nova Constituição Federal. Documentos produzidos pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) e órgãos do Ministério da Aeronáutica entre os anos de 1986 e 1989 registram a ocorrência destes tribunais em dez estados da federação naquele período. Como parte de atividades de mobilização de apoio e sensibilização da opinião pública, a promoção destes julgamentos contou com participação de juristas que tinham pouca expressão com as lutas no campo, mas que haviam se notabilizado nacionalmente pela defesa de presos políticos, engajamento na campanha pela anistia e outras expressões de oposição à ditadura. Nos Tribunais da Terra, tais figuras aparecem como aliados importantes para a publicização das arbitrariedades cometidas em nome do monopólio fundiário e do descaso das autoridades judiciárias, mas também das interpretações jurídicas que amparam a legitimidade às ações de protesto e de ocupação de terras.
Ao Jornal do Brasil, em maio de 1987, o advogado Miguel Pressburguer, do Instituto de Assessoria Jurídica Popular (IAJUP), entidade que promoveu o TNCL, alegou que foram reunidos 1.188 processos e inquéritos referentes a assassinatos no campo entre 1964 e 1986, sendo que apenas dois foram levados a julgamento. Aos juristas, coube analisar detidamente a atuação das autoridades em cada caso, identificando omissões e defeitos das investigações e processos do ponto de vista do direito e da justiça. A cada sessão, o exame deu margem para produção de “acórdãos” amparados na legislação e jurisprudência correntes, apontando para a sistemática impunidade nos crimes contra camponeses e seus apoiadores não por falta de provas ou algo que o valha, mas sobretudo como resultado de uma intencionalidade política, ancorada em interesses associados à alta concentração fundiária no país.
Em quase todas as sessões dos tribunais populares dedicados aos crimes no campo, dividiram o assento no banco dos réus o “Estado”, o “latifúndio” e as “multinacionais”. Juntos, os três acusados ilustravam a composição de interesses que sustentou a política econômica da ditadura para o campo. Em linhas gerais, o projeto de modernização da agricultura foi amparado em incentivos financeiros para grandes proprietários e empresas, transferência maciça de terras públicas para fazendeiros e grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros, investimentos públicos em infraestrutura (estradas, barragens, etc.) em favor de grandes empreendimentos agropecuários e a partir de deslocamento de contingentes de mão de obra para trabalho em condições precárias, entre outras características que promoveram maior concentração de terra e capital. Uma das implicações sociais deste processo é a intensificação das dinâmicas de expropriação das populações camponesas. Neste sentido, por exemplo, foram recorrentes as investidas de avanço da fronteira agrícola promovidas pela ditadura em território indígena. Para viabilizar o acesso aos incentivos estatais por parte de empreendimentos privados cabia à FUNAI emitir “certidões negativas de presença indígena”. Relatórios do Ministério de Interior registram o conhecimento das autoridades de situações de emissão de títulos de propriedade privada e realização de projetos de pecuária e colonização de terras em territórios indígenas.
As violências perpetradas a mando de grandes proprietários e grileiros de terras vinham ao encontro das violências cometidas pelos militares em nome dos projetos de “modernização” e “integração nacional” prezando pelo esvaziamento político dos conflitos no campo. A compreensão dos processos sociais de intensificação de conflitos e organização política no campo nos anos 1980 passa tanto pelos efeitos da modernização conservadora, como define Delgado (1985), sobre as dinâmicas de expropriação camponesa mas também pela existência de toda uma legislação então recente voltada para regular as relações de produção no campo. Neste sentido é que, em grande medida, a atuação sindical rural ao longo da ditadura procurou pautar-se pelos termos da legislação vigente (PALMEIRA, 1989; MEDEIROS, 1989). Também deste período é a emergência de um movimento social indígena, que passa a tecer reivindicações ancoradas na face protecionista do Estatuto do Índio, tornando visíveis ações de retomadas de áreas das quais haviam sido expulsos (OLIVEIRA, 1990). Na transição democrática, as novas organizações, mesmo se posicionando criticamente a uma parte desta legislação, não vão abrir mão das disputas na arena da normatividade estatal, mas vão procurar combiná-las com outras ações diretas de mobilização, pressão e demonstração de força política.
As sessões de tribunais da terra realizadas em todo o país também foram ocasião para expressão pública de camponeses/as, vítimas ou seus familiares que muitas vezes vivenciaram os crimes como testemunhas oculares. Em diversas sessões, destacaram-se a participação das mulheres, em parte apresentando-se publicamente como “viúvas da violência no campo”. Além das experiências do luto, seus depoimentos informam as características da conflitualidade latente nos seus locais de trabalho e morada. Seus depoimentos são marcados pela comoção em torno do luto vivido, pela expressão das formas como enxergam as injustiças, o temor diante dos riscos que seguem correndo individual e coletivamente, e as expectativas em torno de seus testemunhos prestados publicamente diante de plateia e das autoridades, juristas e intelectuais investidos no papel de jurados nos tribunais populares.
A impunidade sistemática é um dado que reforça a legitimidade perante o Estado das formas de resolução privada dos conflitos fundiários e trabalhistas no campo, evidenciando a justaposição entre poder político e privado que marca a democracia no Brasil. Assim, o espaço dos julgamentos e das investigações sobre os assassinatos e outras formas de violência torna-se uma arena de disputas não somente em vista de decisões judiciais favoráveis e responsabilização dos culpados, mas também, – ao adquirir repercussão – de publicização das denúncias em uma linguagem cuja força política deriva de certa pretensão de neutralidade. Os tribunais da terra são um retrato das tensões latentes na arena política naquele período histórico, indicando a coalização jurídica e política então existente em torno das disputas pela democratização do acesso à terra. Por sua vez, os embates deste início da Nova República são um recorte possível para se enxergar a força política da grande propriedade rural na democracia brasileira, bem como as a persistência e atualidade das violências de caráter político contra camponeses, suas lideranças e organizações. A persistência atual das violências no campo segue como face cotidiana no Brasil, suscitando arranjos de relações ainda mais complexos, como mostram os dados registrados pela CPT no portal “Massacres no Campo”, e a Campanha “Contra a Violência no Campo: em defesa dos povos, das águas e das florestas”, lançada em agosto de 2022 e encampada por mais de 50 organizações (CPT, 2022).
A discussão do presente texto não esgota as possibilidades de leitura que podem ser realizadas a partir da documentação aqui mencionada, tampouco as especificidades das violências contra populações no campo e suas organizações. Trata-se de problema público que ganha outras nuances se destacados os aspectos raciais e de gênero da expressão das violências. A atualidade do tema convida a identificar e refletir também sobre quem são os grupos historicamente privilegiados pela prevalência da grande propriedade rural na agenda política, e cujos interesses estão ancorados na ausência de medidas de redistribuição de terras e de reconhecimento de direitos territoriais. A pesquisa histórica sobre os conflitos do passado abre caminho para melhor compreensão da atualidade, sendo um recurso potente para os processos de reconstrução da memória política e reparação histórica, como ilustram os trabalhos da Comissão Camponesa da Verdade – CCV (BRASIL, 2014) bem como os trabalhos de Viana (2013) e Carneiro e Cioccari (2011).
Documentação do Arquivo Nacional:
Dossiê Campanha Nacional pela Reforma Agrária. Serviço Nacional de Informações. Agência Central.1983.BR_DFANBSB_V8/MIC/GNC/AAA/83034393
Relatório confidencial União Democrática Ruralista. Fundo Estado-Maior das Forças Armadas. 1986. br_dfanbsb_2m_0_0_0150_v_06
ALTERAÇÕES EFETUADAS NO JUDICIARIO DE MARABA, 18/11/1985 BR DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.86053468
Cópia do livro "Assassinatos no Campo: crime e impunidade 1964-1985", produzido em 1986 pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, encaminhado pelo Colaborador Anivaldo Padilha em Junho de 2014, 01 de abril de 1986. BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092001180201479
Encaminhamentos e Informes da Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Ministério das Relações Exteriores. 1987. br_dfanbsb_z4_dhu_0_0065
Panfleto intitulado “Inferno na Comar”. Ficha de Distribuição de Documentos. Agência Central do Serviço Nacional de Informações. 1983. BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_83034735
MOVIMENTO PELA LIBERTAÇÃO DOS PRESOS NO ARAGUAIA PARA LANÇA CARTILHA CARAJAS: PROGRESSO OU VENDA DA PATRIA, 06 de abril de 1982. BR DFANBSB V8.MIC, GNC.GGG.82004602
Informe sobre o Tribunal da Terra – Belém/PA. Arquivo Cronológico de Entrada (ACE). Fundo Serviço Nacional de Informações. 1986. BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_KKK_86005793
Informe sobre Tribunal da Terra em Guarulhos/SP. Comando Regional III. Ministério da Aeronáutica. 1986. br_dfanbsb_vaz_0_0_25013
Informe Confidencial sobre o Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos/SP. Ministério da Aeronáutica. EMBRAER – Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A.1986. br_dfanbsb_vaz_0_0_28696_d0001de0001
EVENTO INTITULADO CULTURA DA TERRA, REFORMA AGRARIA, REALIZADO EM CAMPO GRANDE/MS EM 12 DE OUTUBRO DE 1988. BR DFANBSB V8.MIC, GNC.MMM.88007882