A ditadura militar brasileira e a transição portuguesa.
Francisco Carlos Palomanes Martinho
Professor Titular da Universidade de São Paulo - Departamento de História
Pesquisador 1D do CNPq
É de opinião mais ou menos assente na literatura especializada que a ditadura militar brasileira (1964-85), sobretudo no período de governação do general Ernesto Geisel (1974-9), adotou uma política externa pragmática, tanto com relação à revolução portuguesa, quanto ao processo de descolonização que lhe veio a seguir, ou seja, entre os anos de 1974-5. Essa política, para muitos, surpreendentemente progressista vinha, entretanto, acompanhada de sérias preocupações frente aos rumos tomados por Portugal durante sua transição para a democracia. E aqui vale uma breve observação: embora seja correto afirmar o protagonismo de Geisel na gestão desta política, é fato que, em suas linhas gerais, ela começou no período anterior, do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Em novembro de 1972, o então Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mário Gibson Barboza, viajou pelo continente africano, em visita oficial a diversos países. Na bagagem, a tarefa de aprofundar os vínculos diplomáticos e econômicos naquele espaço geopolítico, cuja presença brasileira era ainda muito frágil. Quando de sua visita a Lagos, na Nigéria, Gibson Barboza foi informado de que “as relações especiais [do Brasil] com Portugal” eram o principal obstáculo para o fechamento de contratos entre a PETROBRÁS e a Nigerian Oil Company. E foi assim que, quase que num piscar de olhos, a política brasileira para a África mudou de curso. Portanto, a “nova política africana” brasileira nasceu em decorrência de interesses econômicos muito bem definidos. Nos anos seguintes, com estabilização democrática em Portugal e a presença do Brasil consolidada em África, novas preocupações apareciam na agenda política da ditadura militar brasileira frente à democracia portuguesa.
O olhar atento e desconfiado dos militares brasileiros para com a transição em Portugal, resultou numa vasta e diversa gama de documentos, produzidos ao longo da década de 1970, e que se encontram hoje ao abrigo do Arquivo Nacional. Alguns deles dizem respeito aos portugueses exilados no Brasil e que, em sua maioria, retornaram a Portugal entre os anos de 1974 e 1975; outros, dirigem-se aos próprios protagonistas da transição portuguesa, fossem eles militares ou civis; e há ainda aqueles que se voltam para os brasileiros então exilados e residentes em Portugal.
Quanto aos portugueses exilados do regime salazarista, há alguns casos (entre tantos), bem ilustrativos. Por exemplo, o dossiê dedicado ao jornalista português Victor Cunha Rego
que residiu no Brasil entre 1956 e 1974. Em 1958, Cunha Rego já trabalhava n’O Estado de São Paulo; nos anos seguintes, chefiou o setor internacional do Última Hora e foi chefe de redação da Folha de São Paulo. A seguir à Revolução dos Cravos, entre o I e o III Governos Provisórios, Cunha Rêgo foi chefe de Gabinete de Mário Soares, então à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros. No dossiê referido, nota-se que seus passos foram acompanhados de perto mesmo antes da instauração da ditadura militar. Numa “Informação” do Serviço Nacional de Informações (SNI), consta um conjunto de atividades “subversivas” praticadas pelo jornalista: em 1968, Cunha Rêgo teria subscrito uma declaração de intelectuais e professores em protesto contra a invasão soviética à antiga Tchecoslováquia; em fevereiro de 1964 (portanto, antes do golpe), o jornalista proferiu uma conferência submetida ao tema “Cuba, OEA e América Latina”; mais adiante, salienta que Cunha Rêgo, em 1961, não conseguira ingressar no Congo, dirigindo-se então para Paris, onde teria se instalado na sede do Partido Comunista Francês (PCF); por fim, a nomeação de Cunha Rêgo para a chefia de gabinete de Mário Soares é também relatada. O que nos parece interessante, a partir desse rol de informações, é como a ditadura interpretava cada um daqueles momentos arrolados. Para o SNI, a conferência sobre Cuba tinha por objetivo:
[....] estabelecer argumentos para uma série de críticas aos EUA e outros países capitalistas para, finalmente, fazer pregação do marxismo-leninismo. Disse ainda que o comunismo seria a solução final para os problemas da humanidade e, no final, definiu-se comunista radical.
Quanto à sua presença em Paris após o malogro da tentativa de entrar no Congo, sua função nesta capital europeia teria sido a de “organizar o ‘Comitê Central do DRIL’” [Diretório Revolucionário de Libertação Ibérica, ligado, entre outros, ao general dissidente, Humberto Delgado].
De toda esta documentação a respeito de Cunha Rêgo, fica ao menos a dúvida quanto à veracidade da informação de que ele se considerava um “comunista radical”. A maior parte das fontes a respeito deste jornalista apontam para um perfil republicano e socialista, não comunista. Daí sua proximidade com Mário Soares e mesmo Humberto Delgado. Aliás, a partir dos anos 1980, Cunha Rego se aproximou da Aliança Democrática (AD), coligação de centro-direita sob a liderança de Francisco Sá Carneiro, do Partido Social-Democrata (PSD).
Ainda sobre os portugueses no Brasil: em 1956, um grupo de exilados do regime de Salazar iniciou a publicação de um jornal intitulado Portugal Democrático, que durou até 1975, quando sua continuidade já não mais fazia sentido, além do fato de muitos de seus apoiantes terem regressado a Portugal. Embora não tenha ocorrido nenhuma ação direta contra o Portugal Democrático, a partir de 1964, a ditadura militar não deixava de acompanhar os passos de seus editores. Em documento novamente produzido pelo SNI, datado de janeiro de 1972, encontramos toda uma análise do perfil dos membros deste periódico. Informava o SNI, que Edson Rodrigues Chaves, Diretor Responsável do Jornal, fizera parte, em 1961, da Comissão de Greve do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo; em abril de 1964 seu nome constava na lista dos inscritos para o curso de russo que seria ministrado na sede da “União Cultural Brasil-Rússia”. Quanto a Augusto Aragão, redator, ele havia participado da “I Conferência Sul-Americana Pró-Anistia aos Presos e Exilados Políticos Ibéricos”
ocorrida em janeiro de 1960, ocasião em que “abordou temas sôbre a falta de liberdade, torturas e métodos policiais, descrevendo ainda o sistema de interrogatórios, incomunicabilidade e sôbre a relação de mortos por maus tratos”; informava, ainda, que Aragão atuava como secretário da União Democrática Portuguesa, resultado da fusão de diversos grupos anti-salazaristas vigentes no Brasil. O documento do SNI encerrava suas apreciações afirmando que, “tais elementos eram considerados com tendências nitidamente esquerdistas”. Chamou ainda a atenção do SNI o fato de Edson Chaves possuir “um equipamento de rádio amador, composto de um conjunto de transmissor receptor e antenas”.
Ao mesmo tempo, a desconfiança da ditadura brasileira para com os políticos que começavam a ganhar destaque no regime democrático português, igualmente resultou em uma série de documentos produzidos pelos aparatos de segurança então vigentes. Em sua maioria, eles vinham classificados, ora de “CONFIDENCIAL” ora de “SECRETO”. Especial destaque daremos a um dossiê de 130 páginas
originado a partir de um pedido formal do então major Otelo Saraiva de Carvalho para visitar o Brasil antes das eleições portuguesas, previstas para o dia 25 de Abril de 1975, exatamente um ano após a queda da ditadura do Estado Novo. Vale lembrar que Saraiva de Carvalho, curiosamente referido na documentação como “General”, representava o segmento mais radicalizado no heterogêneo campo político das Forças Armadas Portuguesas. O parecer do então embaixador do Brasil em Portugal, o general Carlos Alberto Fontoura, revela bem o grau de pragmatismo da ditadura brasileira:
Embora se tratando de personalidade controvertida, pelas suas posições e declarações nem sempre comedidas, acredito que deva ser considerada favoravelmente a referida iniciativa dada a importância atual e as perspectivas futuras de SARAIVA DE CARVALHO no Movimento das Forças Armadas e na vida político-militar deste país.
E mais à frente concluía que a visita do militar português poderia “contribuir para melhorar a imagem brasileira neste país, sobretudo junto às classes militares”. O parecer do então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Azeredo da Silveira, não poderia ser menos objetivo: “Concordo inteiramente com a opinião do embaixador FONTOURA”. A deliberação a respeito da demanda do militar português coube ao Conselho de Segurança Nacional. Datado de fevereiro de 1975, o aviso emitido pelo referido Conselho assim se pronunciava:
Apraz-me informar a Vossa Excelência que foi concedida autorização para que essa Secretaria de Estado oriente a embaixada do BRASIL em PORTUGAL, no sentido de insinuar uma reação favorável do Governo Brasileiro à mencionada visita, que deverá se revestir de caráter predominantemente militar.
Mas também Mário Soares, o mais importante líder civil da revolução portuguesa, era acompanhado de perto pelo aparato de segurança brasileiro. Soares era, para grande parte da esquerda portuguesa, um “moderado”. Esta era a adjetivação mais simpática que recebia das organizações marxistas em Portugal. Em não raras ocasiões foi taxado de “traidor” ou mesmo de “reacionário”. Elegera-se primeiro-ministro nas eleições de 1976. O governo presidido por Soares, entretanto, cairia em novembro de 1978, em decorrência de uma crise financeira e das dificuldades na constituição de uma maioria parlamentar. Naquela circunstância de fim de mandato, ou seja, o fato de Soares não possuir responsabilidades de Estado, parecia preocupar ainda mais os militares brasileiros.
Em dezembro de 1978, um Informe da Divisão de Segurança e Informações do Ministério Justiça afirmava:
Segundo comunicação recebida da Embaixada do BRASIL em LISBOA, o ex-Primeiro Ministro MÁRIO SOARES teria enviado um telegrama na sua qualidade de Secretário Geral do PS, ao presidente do MDB, Deputado ULISSES GUIMARÃES, felicitando-o “pela sua própria eleição e de seus companheiros do MDB’ e formulando ‘melhores votos de êxito no futuro”.
O documento informava ainda a opinião da embaixada brasileira em Lisboa a respeito do líder socialista:
Segundo a Embaixada em Lisboa, os termos da mensagem de MÁRIO SOARES não surpreendem devido as suas ambições de intervir indevidamente no processo político brasileiro, desde quando desempenhava altas funções governamentais. Agora, sem as responsabilidades oficiais, SOARES tenderá a acentuar seu apoio ao MDB e a outros grupos oposicionistas brasileiros, legais ou clandestinos.
Dentre os brasileiros exilados em Lisboa, nosso último tema, um nome ganha especial relevo: o de Leonel Brizola, protagonista destacado do trabalhismo revolucionário brasileiro e cassado em primeira mão quando do golpe de Estado de 1964. Há outros e outras personagens do exílio brasileiro que se dirigiram a Lisboa e com trajetórias muito interessantes, mas que por falta de espaço não poderemos abordar. A atenta vigilância da ditadura brasileira em relação a Brizola, dirigiu seu olhar para Portugal a partir de setembro de 1977, quando começou a se aventar a possibilidade de concessão de asilo político para o ex-governador do Rio Grande do Sul. Um documento daquele ano, com a classificação “SECRETO”, produzido pela DSI (Divisão de Segurança e Informações), ligada ao Ministério das Relações Exteriores, sugere ao embaixador Carlos Alberto Fontoura que ele procure o primeiro-ministro Mário Soares, ou o ministro dos negócios estrangeiros, o historiador José Medeiros Ferreira, para indagar aos governantes portugueses a respeito da intenção do governo de Lisboa de conceder asilo político a Brizola. Diz ainda o documento:
Vossa Excelência poderá recordar os diferentes episódios, em passado recente, em que pessoas, cujo interesse é denegrir [sic] o Brasil, seu Governo, suas instituições e seu povo, se têm valido do acolhimento ‘humanitário’ que lhes dá o Governo português para utilizar este país como base de seus ataques.
Lembra o documento que o Brasil “desde o 25 de Abril de 1974, empenhou-se em preservar, no melhor nível que lhe foi possível, suas relações com Portugal”.
E chamava ainda atenção para o fato de que o governo brasileiro, embora recebendo portugueses exilados, ligados ao regime autoritário deposto, não permitiu que eles atuassem publicamente contra Portugal. Assim procedendo,
[...] o Governo brasileiro espera, confiante, que o Primeiro Ministro Mário Soares pessoalmente, e o Governo português como um todo, velem, de fato e com empenho, no sentido de impedir que o Senhor Brizzola [sic] possa praticar, em Portugal, quaisquer atos lesivos ao Governo brasileiro.
Enfim, exilado por algum tempo em Portugal, foi neste país que, entre os dias 15 e 17 de junho de 1979, Brizola organizou e liderou o conhecido “Encontro de Lisboa”, com vistas à reorganização do trabalhismo brasileiro. Os documentos sobre aquele acontecimento são inúmeros e demonstram tanto as preocupações da ditadura brasileira quanto as diversas linhas de ação a serem adotadas. Por um lado, havia o claro objetivo de demonstrar à opinião pública, a existência de um campo político que rechaçava ao mesmo tempo Brizola e Mário Soares. Assim é que o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica) preparou um dossiê com cópias
[...] de artigos publicados [...] pela imprensa não dominada pelos partidos comunista e socialista, em Lisboa, a propósito da realização do Encontro dos Trabalhistas Brasileiros, convocado por LEONEL BRIZOLA, patrocinado pelo Partido Socialista Português e realizado com auxílios financeiros indefinidos”.
Como anexo, o documento incorporava uma série de recordes de jornais como o Notícias, O Diabo e o jornal Rua. As manchetes não deixam dúvidas quanto às opiniões expressas nesses órgãos de comunicação: “Soares, anfitrião de marginais”; “Treino da subversão brasileira na complacência ‘deste país’”; “As bravatas do Sr. Brizola”, entre outros.
No entanto, mais importante, foi o conjunto de documentos produzidos a respeito do encontro, originalmente tratado como “Reunião do PTB em Lisboa”. O evento teve lugar na sede do Partido Socialista, que os órgãos de informação brasileiros, talvez desinformados, tratavam por Partido Socialista Português (PSP). Dois dossiês chamam a atenção. O primeiro, é um conjunto de 30 fotografias do evento com as devidas indicações dos fotografados. Além de Brizola, como é suposto, aparecem, Alfredo Sirkis, Carlos Minc, Darcy Ribeiro, Flávio Tavares, Francisco Julião, Herbert de Souza (Betinho), Theotonio dos Santos, entre outros.
Também é relatada a presença de líderes socialistas de diversas partes do mundo, além de Mário Soares, o anfitrião do encontro.
O segundo dossiê, com 71 páginas, faz um balanço geral do encontro em detalhes. Em sua “Introdução”, informa que a ideia de realização do evento surgiu entre dezembro de 1978 e janeiro de 1979, quando, em viagem pela Suécia, França, República Federal da Alemanha, Holanda, Espanha e Portugal, Brizola, em visita aos partidos Social-democratas desses países, “solicitou apoio para o empreendimento”. Em seguida o documento relata o processo de organização dos trabalhos e dos discursos proferidos, a começar por Mário Soares. Relata ainda o conjunto de partidos e movimentos de esquerda de diversos países presentes ao encontro, assim como deputados brasileiros ligados ao MDB e as entidades sindicais. O discurso de Brizola, preparado com o auxílio de um grupo de colaboradores (o documento não informa seus nomes), teve a duração de três horas, sem que o orador se prendesse estritamente ao texto. Ao contrário: “Procurou fazer declarações de impacto, ‘floreando-as’ com férteis exemplos”. Algumas afirmações de Brizola foram especialmente destacadas. Entre outras: “queremos uma sociedade igualitária e o nosso objetivo deve ser o socialismo”, “não somos contra a propriedade privada mas sustentamos que a propriedade (nacional ou estrangeira), o capital e os bens de produção têm uma função social que deve condicionar-se aos interesses de toda a sociedade”, ou ainda, “queremos uma sociedade igualitária e nosso objetivo é o socialismo participacionista [sic], que defende a autogestão, a co-gestão e o cooperativismo”. O documento destaca ainda as críticas de Brizola a Ulysses Guimarães, e levanta questionamentos a respeito da origem do apoio financeiro ao encontro.
Algumas breves conclusões podem ser tiradas desse conjunto de ações da ditadura brasileira: a primeira, como parece evidente, é seu acompanhamento ao pormenor da ação de brasileiras e brasileiros no exterior; a segunda são as várias frentes de informação existentes, do SNI, passando pelos ministérios militares e até mesmo de um ministério civil, o das Relações Internacionais; o terceiro, é o olhar atento para com eventuais “inimigos” entre personagens estrangeiras e de países (como é o caso de Portugal) que mantinham boas relações diplomáticas com o Brasil; o quarto, é certo grau de desinformação ou mesmo de preconceito, na medida em que líderes social democratas ou republicanos eram tachados de comunistas. Todo este rol de informações consta no acervo do Arquivo Nacional, local privilegiado, como se vê, para a realização de pesquisas acerca da História do Brasil no século XX.