“no programa de ontem eu não consegui terminar direito a abertura [...] porque eu estava muito emocionado com aquelas notícias de jornal…posso dizer agora, não tenho qualquer medo: eu era um daqueles que tava na lista pra também ter sido assassinado e enterrado lá naquele cemitério”.
Volta Redonda, 1988 | Carlos Eduardo Marconi | Mestre em História e Técnico do Arquivo Nacional
Estas palavras emocionadas foram ouvidas por metalúrgicos, donas-de-casa, operárias e operários, gente de Volta Redonda e cidades vizinhas que ligaram seu aparelho de rádio no dia da Independência do Brasil e sintonizaram a 88 FM no programa “Bom Dia, Metalúrgico”. Este programa, realizado diariamente, com folga no final de semana, debatia naquele dia o assassinato político de ativistas sociais brasileiros. Na sequência, Ernesto relata e analisa os significados da data, sob o signo dos pensadores da conhecida “Teoria da Dependência”. Um programa feito por e para quem pensava a política como expressão direta de suas vidas na chamada “Cidade do Aço” da década de 1980.
Ernesto Germano Parés é um sindicalista, assessor político e jornalista autodidata, militante da POLOP - Organização Operária Marxista - por boa parte de sua vida, inclusive na luta armada contra a ditadura civil-militar brasileira. Em 1984, se muda do Rio de Janeiro para Volta Redonda para trabalhar como jornalista na Câmara de Vereadores e posteriormente como jornalista do Sindicato dos Metalúrgicos da cidade. Em 1988, vivencia a greve da CSN, onde participa de assembleias, reuniões e piquetes nos intensos dias de dezembro, pouco tempo após a promulgação da Constituinte. A partir de 1989, assumiu a edição do boletim do Sindicato, chamado 9 de Novembro, em homenagem aos três trabalhadores da CSN assassinados durante a greve: Walmir, William e Barroso.
Ernesto “tava na lista” mas não foi assassinado nem muito menos enterrado. Pelo contrário, está muito vivo e cedeu entrevista a servidores do Arquivo Nacional em 17 de janeiro de 2024, comentando sobre algumas questões do conteúdo do acervo que doou para a instituição em 2010, logo após a doação do acervo da POLOP. Esta conversa foi realizada no restaurante Crepe & Cevada no Moneró, Ilha do Governador - Rio de Janeiro, onde mora o entrevistado. Está gravada em áudio e em breve disponível como fonte complementar aos documentos presentes no “Fundo Ernesto Germano Parés” (código FJ).
Ele fez questão de trazer em sua bolsa um dos gravadores que usou como jornalista sindical: o Olympus S701, de mão, operando com fita minicassete e guardado em uma bolsinha protetora. Este aparelho da foto abaixo gravou boa parte dos documentos hoje digitalizados e disponíveis para escuta no SIAN. Este modelo foi muito popular entre jornalistas e demais pessoas preocupadas em registrar para o futuro os sons do presente. Normalmente traziam uma alça que permitia mobilidade, andar com o aparelho gravando, ou facilmente levá-lo às fontes de emissão de som.
Os documentos que constam no Fundo Ernesto Germano Parés trazem a marca do titular do acervo: divulgação de atos, assembleias, manifestações e, principalmente, dos eventos que giram em torno da greve da CSN de 1988 e a cultura dos trabalhadores no Sul Fluminense na década de 80 e 90. Há gravações em fitas k7, mini-k7, fotografias, cartazes, filmagens e documentos escritos que relatam o dia a dia de uma cidade que ocupou o noticiário nacional ao fim da década de 1980. Quantas histórias surgem de um único corpus documental? No caso do fundo Ernesto Germano Parés, há, inicialmente, a história do próprio doador do acervo, enquanto jornalista e sindicalista, profundamente envolvido com as lutas políticas locais e com o desejo de comunicá-las aos trabalhadores, ao mundo e, em última análise, como titular de um acervo doado ao Arquivo Nacional, ao futuro. Há a história de uma cidade, Volta Redonda, mas também do sindicalismo brasileiro, da ditadura militar, da redemocratização, da urbanização e mesmo das tecnologias de gravação e reprodução. Há ainda, histórias da comunicação sindical audiovisual e fotográfica que Ernesto relatou com detalhes na entrevista citada.
A Companhia Siderúrgica Nacional - CSN, fundada em 1941 - inaugurou a siderurgia no país, ocupando a região do Sul Fluminense que se encontrava em decadência econômica pós-ciclo do café. As promessas de independência econômica a partir da consolidação de uma indústria de base eram a tônica do discurso estatal sobre a empreitada. Nas palavras do presidente Getúlio Vargas, em 07 de abril de 1943: “Mesmo os mais empedernidos conservadores agraristas compreendem que não é possível depender da importação de máquinas e ferramentas, quando uma enxada, esse indispensável e primitivo instrumento agrário, custa ao lavrador 30 cruzeiros, ou seja, na base do salário comum, uma semana de trabalho”. Mesmo sendo construída com empréstimos do Banco Estadunidense de Importações e Exportações (EXIM Bank), Vargas frisou que “é com dinheiro brasileiro que se pagam os salários de cerca de 8 mil homens que aqui trabalham, desde os técnicos americanos e nacionais até ao mais humilde operário”[1].
Volta Redonda, cujo caráter de cidade operária foi se solidificando através das décadas, em 1980 tinha mais de 200 mil habitantes, muitos oriundos de Minas Gerais, e mais de 30 mil de seus moradores empregados diretamente pela CSN. Criou-se uma cultura do trabalhador e da família trabalhadora que ocupava os espaços urbanos como trabalhadores que eram. Uma cultura local formada pela migração e pela experiência coletiva nos bairros, vilas operárias e na fábrica; uma cultura global, porque experimentando muito da cultura política construída pelas esquerdas mundiais. O doador deste fundo, Ernesto Germano Parés, sindicalista e comunicador, esteve presente, como militante político, em muitas das situações relatadas nos documentos, imagens e gravações. Faz parte de uma cultura sindical cujo líder, eleito junto com uma chapa de oposição em 1983, era José Juarez Antunes. Foi Juarez quem convidou Ernesto para ser assessor administrativo e de imprensa do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda, Barra Mansa, Resende e Itatiaia.
Tratava-se do que ficou conhecido como “novo sindicalismo”, ou seja, o associativismo da classe trabalhadora a partir de baixo, sem atrelamento aos patrões e governos, aos poucos se desamarrando dos nós da ditadura militar e tendo seus líderes formados durante este período de intensa repressão e censura no país. Estavam fortemente ancorados nas lutas econômicas das fábricas locais, como no caso de Volta Redonda e sul fluminense, mas exercendo ativamente a solidariedade de classe internacionalista que é comum a muitas das vertentes socialistas. Os documentos iconográficos deste acervo dão o tom, retratando atos de solidariedade às intensas lutas políticas na América Central e Caribe.
No entanto, a maioria dos documentos deste fundo apontam especificamente para uma das situações mais tensas ocorridas naqueles anos finais da década de 80 em que ainda se ensaiava um respiro democrático no país: a Greve dos trabalhadores da CSN de 1988. Houve outras greves anteriores mas esta seria definitiva para a história da cidade. Teve seu início em 07 de novembro de 1988, reivindicando a reposição de perdas salariais, a demanda da jornada de 6h para os trabalhadores e a readmissão de trabalhadores demitidos em greves anteriores.
A eclosão da greve se deu logo após a promulgação da Constituição, em 08 de outubro de 1988. Em se tratando de história, conhecer as datas facilita e organiza nosso pensamento, mas a democracia não nasce pronta com dia e hora marcados. Ou, nas palavras do músico e compositor Ziza, nascido e criado em Volta Redonda, em gravação com metais sintetizados típicos do início da década de 80:
“eu tô ficando aporrinhado, eu tô inconformado, eu tô em alta tensão / eu não estou aguentando levar esta vida sob esta pressão / pensei que ia melhorar a vida do operário / a vida do peão / que idiota eu fui quando acreditei na constituição”
Ziza foi metalúrgico da CSN e era considerado “o cantor dos trabalhadores”, se apresentando nos piquetes e demais atividades sindicais. Tocando teclado e sanfona, também cantava os amores e as belezas locais, como um jovem operário vivendo a vida ordinária de alguém que faz a história sem muitas vezes se dar conta disto. Na capa, colorida, com a cidade ao fundo, Ziza veste branco, cabelos longos, encarnando o modelo do cantor romântico. Na contra capa, em preto e branco, é o operário que veste macacão e capacete, com a cidade também ao fundo. A capa do disco “A Nossa Luta Vai Continuar” traz em imagens algo do conceito de “Cidade Operária”, ou company town: uma cidade construída, em boa parte, pela empresa e para a empresa. Apesar da percepção, ao longo da história da CSN, da siderúrgica como uma “mãe”, há também o outro lado da vivência cotidiana de milhares de operários e suas famílias: a solidariedade de classe construída nos locais de trabalhos, almoços, bares, nas relações de amizade que escapam ao controle territorial estatal e da empresa.
O disco de Ziza ainda exemplifica outro conceito chave das greve de 1988: a demanda pelo turno de 6 horas, e o fim dos “três turnos”, cujo turno da madrugada começava à meia noite e terminava às oito horas da manhã. Isto, segundo a música, esgarçava as relações familiares e a qualidade de vida do trabalhador, no relato que reflete um tanto das relações de gênero vigentes mas também a exaustão das longas jornadas:
“Essa vida de três turnos / não tá dando pé / vou acabar perdendo minha mulher [...] e depois do zero hora, ela quer um cafuné / eu tô tão cansado que nem quero ver mulher [...] quando eu saio à meia noite, vou correndo para casa / a mulher com muito sono diz pra mim que não quer nada [...] quando entro oito às quatro, normaliza tudo um pouco / mas esse bandejão tá me matando pouco a pouco”
São muitas as referências audiovisuais e sonoras neste acervo e na memória da cidade. Em outro documento, o sindicalista Luiz Albano pergunta ao espectador, numa comparação curiosa: em qual cidade poderia ser possível que milhares de pessoas em praça pública cantem a famosa “Internacional Comunista” a plenos pulmões? Responde: ou em cidades das repúblicas soviéticas durante a vigência da URSS, ou na Volta Redonda de 1980. Este trecho é parte do documentário “Volta Redonda: Memorial da Greve” realizado por um Eduardo Coutinho ainda como jovem cineasta, dando seus primeiros passos. Ernesto Germano Parés conta os bastidores desta memória:
“ninguém nunca tinha ouvido em Volta Redonda, nem a diretoria do sindicato conhecia o hino da Internacional…nem o Juarez conhecia… aí eu levei uma fita k7 e eu disse: - Xexéu!…Xexéu era responsável pelo carro de som. - Xexéu, essa fita fica com você, onde o carro de som for, você vai pela rua tocando essa. Um mês depois, toda a cidade conhecia a Internacional".
Estas e outras histórias do sindicalismo brasileiro e da reconstrução democrática do Brasil povoam este acervo, que congrega documentos textuais, mas impressiona por suas referências sonoras e audiovisuais. São sons e imagens que condensam o sentimento de orgulho e organização classista.
“...uma esperança nova para o trabalhador brasileiro baseada na liberdade e dedicado ao princípio de que todos os homens são iguais perante a lei…”
Apesar de toda a dor de um periodo nefasto do país, o acervo retrata ainda a volta por cima, e a possibilidade de reconstrução a partir do povo, das comunidades, das organizações sociais. Nas rádios, em 1989, começava a tocar nacionalmente uma música eternizada por Beth Carvalho e Grupo Fundo de Quintal (composição de Arlindo Cruz, Franco e Marquinho PQD):
“Andam fazendo de tudo querendo tirar meu humor
Greve de paz, greve de amor
Se andam espalhando bomba
Um bom malandro não tomba
Dá uma Volta Redonda e acorda o país
Tô sonhando, mas eu sou feliz”
Ou, nas belas palavras de uma apresentação teatral organizada pelo sindicato em 1988:
“quanto a nós, vivos, cabe nos dedicarmos à obra inacabada daqueles que aqui lutaram e nos levaram tão longe: indicamos aqui que esses mortos não morreram em vão e essa luta sob a proteção de Deus renascerá…”
E Ernesto Germano Parés, no comando do carro de som e sentindo a escalada do discurso teatral e o momento do ápice, comenta e é captado incidentalmente pelo mesmo gravador retratado neste texto:
- Vamo botá todo o volume que a gente puder agora!
- Hein? - responde talvez Xexéu, o operador do carro de som
- O volume que a gente puder, vamo botá!
- Agora!
Entre um ou outro hiato de silêncio, estoura a beleza da barulhenta e múltipla democracia brasileira.
DOCUMENTO INSERIDOS:
BR_RJANRIO_FJ_DSO_0017_m0001de0002 - 09’15’’_ Ernesto Germano Parés, Programa Bom Dia Metalúrgico do dia 07 de setembro de 1992
[FOTOGRAFIA AINDA SEM NOTAÇÃO, RETRATANDO O TITULAR DO FUNDO, 2024]
BR_RJANRIO_FJ_ADE_0011_d0001de0002 _ Cartaz da CUT em meio às campanhas contra a privatização da CSN, 1991
BR_RJANRIO_FJ_FOT_0004_d0001de0001 _ Vista do Alto Forno n. 1, em foto de 1959
BR_RJANRIO_FJ_FOT_0001_d0005de0008 _ Parte da estrutura da CSN na década de 1990
BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_CCC_84010380_d0001de0001 _ Documento do SNI de março de 1984 sobre o ato em 06 de novembro de 1983. É relatado o Ato de Solidariedade aos Países da América Central. José Juarez Antunes, Luiz Carlos Prestes e representantes nacionais e internacionais falam no ato), conforme o relatório assinado
BR_RJANRIO_FJ_FOT_0006_m0001de0001 _ O líder cubano Fidel Castro e o líder sindicalista e ex-prefeito Juarez Antunes se encontram em Volta Redonda. s.d
BR_RJANRIO_FJ_0_DSO_0002 _ capa e contra capa do disco "A nossa luta vai continuar,"; arquivos sonoros do mesmo disco.
BR_RJANRIO_FJ_0_DSO_0001 – Hino nacional brasileiro tocado por uma guitarra, em adaptação livre. Homens, mulheres e grupos de pessoas se alternam gritando os trechos da letra, numa desconstrução melódica dolorosa.
BR_RJANRIO_FJ_0_DSO_0017_ programa Bom dia metalúrgico; setembro de 1992.
BIBLIOGRAFIA
Ediel Ribeiro. O Estúdio do ‘Seu’ Luna. O Folha de Minas quarta, 09 de dezembro de 2020
SILVA JUNIOR, E. T.; SILVA, I. S.; CASTILHO, L. C.; SILVEIRA, P.; CHRISÓSTIMO, R. B. S.. “A Greve Continua!”: Algumas Considerações Historiográficas Sobre os Movimentos Grevistas de Volta Redonda, Volta Redonda, ano III, n. 7, agosto. 2008. Disponível em: <http://www.unifoa.edu.br/pesquisa/caderno/edição/07/24.pdf>
[1]Biblioteca da Presidência da República. Discurso 07 de maio de 1943 - Volta Redonda e a capacidade construtiva dos brasileiros - discurso pronunciado em Volta Redonda, por ocasião do almoço oferecido ao Presidente Higínio Morínigo. www.biblioteca.presidencia.gov.br