REGISTROS DE UMA GUERRA SURDA: INFORMAÇÃO, VIGILÂNCIA E REPRESSÃO
Viviane Gouvêa, cientista política e pesquisadora do Arquivo Nacional
O aparato de vigilância
Entre 1964 e 1985 o Brasil viveu sob um regime político de exceção durante o qual um projeto autoritário foi gradativamente implantado. Articulou-se um aparato repressor que incluía desde a atuação mais incisiva do Conselho de Segurança Nacional até a criação do Serviço Nacional de Informações, passando pela implantação do sistema DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) e de órgãos responsáveis pela censura à imprensa e às artes.
Algumas das estruturas de vigilância e repressão tiveram sua origem antes dos anos de 1960. Contudo, o regime instaurado em 1964 conseguiu de fato materializar o autoritarismo em um elaborado arcabouço legal e institucional a sustentá-lo. Embora os governos que se sucederam durante o período constantemente declarassem agir em nome da democracia e legislassem intensamente a fim de conceder algum traço de legitimidade ao regime, ele possuía uma face obscura que agia ao largo da ordem legal. Em resultado, às centenas de mortos e desaparecidos cujos destinos permanecem em mistério ainda hoje, acrescentaram-se milhares de cassados, processados e demitidos dos seus empregos em consequência de uma legislação extremamente autoritária.
São brasileiros – e alguns estrangeiros – cujas vidas foram dissecadas e, por vezes, inventadas, forjadas e difamadas, em intermináveis relatórios de vigilância que, encaminhados para as mais diversas instâncias oficiais, transformaram-se em arma crucial para manter a ditadura de pé durante mais de duas décadas.
Assim como foi implementado, passo a passo, o aparato repressivo começou a se desintegrar, acompanhando o desgaste do regime e as lutas em prol da redemocratização. No entanto, do mesmo modo que a semente da repressão pode ser encontrada antes de 1964, seus ecos continuaram depois de 1985, podendo ser sentidos até os dias de hoje, na violência e na impunidade das nossas forças de segurança pública diante das populações mais vulneráveis – camponeses sem terra, comunidades pobres das grandes cidades, indígenas, negros.
Esta matéria foi realizada a partir da exposição Registros de uma Guerra Surda, realizada nas dependências do Arquivo Nacional em 2011. Originalmente a exposição contou com documentação da instituição e também cedida por outros arquivos Brasil afora, no contexto do Projeto Memórias Reveladas, um projeto ligado à iniciativa pessoal da então Presidente Dilma Roussef, ela mesma um alvo das forças de repressão. Em grande parte, os documentos aqui exibidos foram produzidos pelos próprios órgãos de vigilância e repressão: são registros de opressão, mas também de resistência. Esses arquivos contribuíram para trazer ao público uma amostra não apenas da documentação oficial, mas também do que foi produzido por órgãos de imprensa e organizações que se dedicavam a combater o regime. Mais de 30 anos depois do retorno de um civil à Presidência da República, o Brasil ainda não conseguiu responder às famílias dos desaparecidos sobre o paradeiro dos seus corpos. Tampouco conseguiu avançar em relação aos direitos humanos, tema incompreendido e vilipendiado por uma larga parcela da população, que adere convictamente aos discurso extremista segundo o qual a polícia tem razão ao assassinar a sangue frio aqueles que ela julga envolvidos com o crime do momento – uma política de extermínio sistemático de pessoas pobres e, em geral, negras.
Queda de João Goulart
O mês de março de 1964 acumulou uma série de eventos políticos cujo auge ocorreria em seu último dia. Comícios e manifestações _ contra e a favor do presidente João Goulart e suas reformas de base _, greves, sublevações militares, e uma incansável campanha liderada por políticos udenistas e empresários que ecoava na imprensa, pedindo a cabeça de um presidente que consideravam uma ameaça comunista. Uma conspiração se articulava há tempos, colocando lado a lado empresários, militares, políticos e profissionais liberais para derrubar um presidente inicialmente eleito para vice, e acabou por iniciar, em primeiro de abril, um regime de exceção que poucos imaginavam que iria durar duas décadas.
Os movimentos sociais em ebulição na época, em especial o sindical, tanto urbano como rural, foram os primeiros alvos da repressão, assim como todas as forças políticas não-alinhadas com os golpistas. Luis Carlos Prestes, João Goulart, Jânio Quadros e Miguel Arrais encabeçavam a lista dos cassados pelo primeiro ato editado pelo autodenominado “comando supremo da revolução.” Desde o primeiro momento o regime procurou investigar, vigiar, cassar e banir aqueles que, por variadas razões, discordavam dos rumos ditados pelo governo. Regime de exceção que sempre buscou respaldar-se em um arcabouço jurídico expresso em atos institucionais e na criação de uma nova constituição, editada em 1967, a ditadura civil militar instalada em 1964 desde o princípio investiu na criação e aprimoramento de um sistema de vigilância afinado com os objetivos e orientações ditados pela doutrina de segurança nacional.
Serviço Nacional de Informações
A criação do Serviço Nacional de Informações em 13 de junho de 1964, sob a direção do general Golbery do Couto e Silva, marcou o início da construção de um aparato que articulava a inteligência (espionagem) e a as forças policiais de repressão sob as mais variadas formas. Espalhando-se pelo país através das suas agências locais e plantando raízes em cada repartição pública através das Divisões de Segurança e Informações - DSIs e Assessorias de Segurança e Informações - ASIs, o sistema de inteligência criado pelo regime paulatinamente fechou o cerco àqueles que se opunham à crescente limitação do direito de propor rumos diferentes para o país.
Os relatórios produzidos pelo SNI informavam a respeito de atividades de indivíduos suspeitos de subversão, de instituições e agentes da sociedade, entre eles partidos, igrejas, imprensa, sindicatos. Os relatos produzidos pelo órgão de inteligência contudo iam muito mais longe: avaliando tanto o comportamento dos seus alvos como a situação nacional e internacional em geral, especialmente em função do que consideravam a “ameaça vermelha,” o SNI fornecia subsídios para a atuação dos órgãos de repressão e para a orientação do conselho de segurança nacional, com o qual trabalhava em estreita colaboração.
A força da repressão
A partir de 1964 os movimentos sociais passaram a ter suas atividades cada vez mais cerceadas. As lideranças sindicais _ primeiras vítimas da repressão violenta _ encontravam-se entre a cruz e a espada: de um lado, um governo que pouco a pouco se caracterizava como uma franca ditadura, impedindo a livre expressão do movimento e suas reivindicações; do outro, uma massa de trabalhadores que vinha de um movimento em ascensão, e que não se conformava com o silêncio diante do arrocho salarial, como bem demonstram as greves que a despeito da repressão, eclodiram em Osasco e Contagem em 1968.
O movimento estudantil por sua vez encontrou seu auge pouco antes da edição do AI-5 em dezembro de 1968, instrumento que ameaçava as liberdades cívicas como jamais se viu no Brasil republicano. Atuando como um movimento guarda-chuva para setores urbanos insatisfeitos com os rumos de um regime cada vez mais autoritário, as passeatas organizadas pelas entidades estudantis reuniram milhares de pessoas nas ruas das cidades brasileiras em 1968.
Com a edição do AI-5 os movimentos sociais encontraram seu refluxo. Manifestações de rua proibidas e lideranças presas, exiladas, mortas ou desaparecidas, eles reencontrariam as multidões apenas na segunda metade dos anos 1970.
Luta armada
No período que se seguiu ao AI-5 a atuação de grupos armados ganhou maior força, e vários grupos (VPR, VAR-Palmares, MR-8, ALN) passaram a abrigar aqueles que haviam sido expulsos das formas legais de contestação ou militantes que sempre acreditaram na via armada como forma de transformação. As forças policiais que reprimiam passeatas estudantis passaram a responder com uma violência indiscriminada a qualquer voz dissonante: não apenas os que abraçavam a luta armada, mas também jornalistas, parlamentares, até mesmo militares que questionavam os caminhos de um movimento que haviam ajudado a construir _ estavam todos sujeitos a perseguição, prisão arbitrária, tortura, morte ou desaparecimento.
A luta armada foi esmagada com relativa facilidade. Marcada em especial por assaltos, bombas em dependências próximas as das forças armadas e policiais, sequestro de diplomatas, as ações dos guerrilheiros acabaram por alimentar a propaganda anti-comunista do governo e a consequente paranóia da ameaça vermelha, utilizada como justificativa para o autoritarismo crescente.
A face pública do regime
Enquanto nos porões do regime torturas e violências de todo tipo eram aplicadas no “inimigo interno”, os militares se esforçavam para criar uma aparência de normalidade e um clima de pujança econômica na superfície. No cotidiano das cidades brasileiras ou dos meios rurais, a vida seguia, muitos ignorando o que se passava nas prisões dos DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna). Sob a égide do “Milagre Econômico” se vivia uma nova euforia desenvolvimentista, plasmada em progresso tecnológico e econômico e garantida por um governo que defendia o Brasil da ameaça dos “temíveis” comunistas, que acabariam com a família, a propriedade, a religião.
O discurso das elites conservadoras, compostas por empresários, ruralistas, industriais, encontrou eco em camadas médias da sociedade civil e junto à alta cúpula militar, amparada pelos Estados Unidos, em plena Guerra Fria, contra a União Soviética e o “perigo vermelho”, que ameaçava penetrar na América Latina. Essa posição era sustentada pelo trabalho realizado no IPÊS (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva, um dos artífices do golpe de 1964, que contava com o apoio de empresas privadas, partidos e entidades civis de direita, como a CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia), trabalhadores, estudantes e donas de casa, alinhados ideologicamente com o pensamento do instituto. No entanto, o real medo das elites conservadoras vinculava-se muito mais com a ferrenha defesa do seu projeto de desenvolvimento extremamente concentrador e dependente de recursos externos; o receio era, mais do que dos comunistas, da perda de privilégios econômicos e políticos ancestrais, que desde os tempos do Brasil colônia restringiam o acesso a bens materiais e ao processo político a muito poucos.
Em 1970, o regime militar já havia se consolidado e aniquilado o “inimigo”, dedicando-se à execução de grandes empreendimentos que inscrevessem o nome de seus líderes e daquele tempo na história do país. Entre paradas militares e inaugurações de “obras faraônicas”, a aparência que a ditadura exibia era de progresso, de modernidade, de vidas que transcorriam em paz e tranquilidade – muito embora a violência continuasse exposta, nas armas dos soldados nos desfiles cívicos, na presença ostensiva do exército e da polícia nas ruas. Entre as construções do regime estavam a Ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica, que faziam parte do Plano de Integração Nacional; a hidrelétrica binacional de Itaipu; as usinas nucleares de Angra dos Reis; e outros projetos ligados a produção de minérios ou combustíveis. Essas obras de dimensões descomunais, que prometiam modernidade e melhoria de vida, mas que provocaram inflação, desequilíbrio ambiental, imensos gastos e empréstimos externos e uma astronômica dívida externa, sentidos nos duros anos de crise econômica e financeira posteriores à abertura política, foram alguns dos legados da face pública da ditadura militar ao Brasil.
Censura
A censura não era novidade no Brasil, e teve o início da sua institucionalização marcada pela criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) no governo Vargas. Nos anos da ditadura militar, a censura revelou seu lado mais duro. Na prática, dividia-se em duas modalidades: a mais tradicional, realizada pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, controlava as diversões públicas, avaliando os conteúdos do teatro, cinema e músicas de acordo com a orientação moral e política do regime. A outra, velada, atingia todos os setores da vida pública e operava em segredo, num clima conspiratório, perseguindo funcionários públicos, profissionais liberais, estudantes, órgãos de imprensa. Centrada na dimensão política, acabou por atingir diversas esferas, atribuindo significados políticos a todas as manifestações culturais, gerando um clima de permanente perseguição.
Essa postura voltou seus olhares de suspeição para a música popular e seus artistas mais expressivos. Chico Buarque de Holanda foi sagrado pelos censores “líder” de um movimento subversivo, dentro da MPB, acompanhado por Milton Nascimento, Gonzaguinha, Nara Leão, Edu Lobo, entre outros artistas, sendo Taiguara provavelmente o intérprete mais censurado. Se os festivais foram o palco privilegiado para os artistas e o público jovem se manifestarem contra a ditadura, tornaram-se também foco de atenção dos censores. Muitas das músicas censuradas revelavam o desconhecimento dos burocratas sobre o conteúdo e o teor das letras, o que também favorecia aos autores criarem artifícios metafóricos e alegóricos, bem como o uso de pseudônimos, para “driblar” a fiscalização.
Paradoxalmente o cerco da censura acabou por ajudar a fortalecer um novo grupo de artistas e um gênero de música “de protesto”, consolidando a Música Popular Brasileira. Contribuiu também para construção de uma memória do período, ligando a música ao protesto e à resistência, congregando artistas e elevando-os praticamente a heróis de uma geração, que via nas artes e na cultura uma válvula de escape para a vida sufocante numa ditadura militar.
Uma distensão lenta
A partir de meados dos anos 1970, aos primeiros sinais de crise do “milagre” econômico e diante das sucessivas denúncias de abusos cometidos pelos agentes do regime contra seus opositores, começou a tomar fôlego o movimento pela abertura política, fim da censura e anistia geral. Movimentos sindicais se rearticularam, como o sindical e estudantil, com o movimento negro e também feminista experimentando uma nova fase.
Contudo, à luta pela abertura, contrapunha-se a resistência de setores militares que ainda achavam o país “imaturo” para o retorno à normalidade democrática. Defendendo um projeto de distensão “lenta, segura e gradual”, estes setores ainda assim não eram os mais acirrados defensores do regime, que contava em suas linhas grupos radicais prontos a insistir em ações violentas para impedir a volta à democracia. Exemplo disso foram os atentados a bomba no Riocentro e na sede da Ordem dos Advogados do Brasil.
Do confronto entre as forças governistas e os movimentos sociais resultou a lei de anistia, de 1979, que, considerando os debates até hoje suscitados, parece não ter servido de ponto final. O retorno dos estudantes às ruas e a retomada do movimento operário, além da emergência de grupos organizados em função de questões étnicas ou de gênero, também marcam o processo de abertura.
A primeira metade dos anos 1980 foi marcada pelos embates em torno do processo de transição política, cujo auge deu-se com a campanha em favor das eleições diretas à Presidência da República – as “Diretas Já!”. Derrubada no congresso em 1984 a emenda que garantiria eleições diretas para presidente, o povo brasileiro acabou por ver chegar ao poder um antigo aliado do regime que tanto se esforçara por derrotar. Com a morte de Tancredo Neves, eleito indiretamente por uma aliança entre o PMDB e dissidentes do partido de apoio ao governo que haviam fundado um partido próprio _ o PFL _ assume a presidência José Sarney.
Mas a transição à democracia constitui-se em questão mais complexa e polêmica que a simples queda do regime, questão para a qual não bastaram como resposta o retorno dos civis à Presidência, em 1985, ou mesmo a Constituição de 1988. Mais de 35 anos depois, o país ainda reluta em conhecer seu passado e encarar os fantasmas que nasceram durante os anos de ditadura.
Lista de Arquivos:
BR DFANBSB N8.0.PRO, CSS.972 João Goulart no Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. O inquérito se refere a Jorge Miguel Nassar, apontado a caneta na foto. Conselho de Segurança Nacional
BR DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.71048298 Funcionários do Banco Central tornam-se alvo de vigilância e investigação em função de denúncia anônima que os associava ao terrorismo. O documento completo expões o processo de investigação dos alvos. Brasília, 1971. Serviço Nacional de Informações.
BR AN,BSB V8 ACE AC038094 Passeata estudantil realizada no contexto da morte do estudante Edson Luis, no centro do Rio de Janeiro. As fotos foram tiradas pelo serviço de informações com o objetivo de identificar manifestantes. Rio de Janeiro, 29 de março de 1968. Serviço Nacional de Informações.
BR RJANRIO TT.0.MCP, PRO.156 Fotografia integrante de processo relativo ao sequestro do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben em 1970. Rio de Janeiro, junho de 1970. DSI-MJ.
BR RJANRIO PH.0.FOT.2350 Registro da construção da ponte Rio-Niterói, setembro de 1970. Correio da Manhã.
BR DFANBSB V8.MIC, GNC.EEE.80003657 Movimento grevista no ABCD paulista. São Paulo, abril de 1980. Serviço Nacional de Informações.
BR AN BSB V8 ACE ARJ Comício em prol da anistia. S.l., [1979] Serviço Nacional de Informações.
BR RJANRIO EH.0.FOT, PRP.9161 Presidente Artur da Costa e Silva (1967-1969) no Estado da Guanabara: lê sua mensagem de ano novo, Palácio Laranjeiras, Rio de Janeiro, 30/12/1968, pouco depois da edição do Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro daquele ano. Agência Nacional