Reforma agrária
A extrema concentração fundiária predominante no território brasileiro marca sua história desde a época da colonização, quando se estabeleceu que a posse de terras seria um privilégio de muito poucos. Ao longo dos séculos, a concentração de terras acompanhou a diversificação da atividade agropecuária, o processo de industrialização, a monarquia brasileira ao longo do século XIX, e aos vários regimes políticos que se sucederam ao longo do século XX. Esta estrutura fundiária é coerente com a desigualdade que marca a sociedade brasileira em geral, desde os tempos coloniais.
A concentração fundiária resistiu a décadas de debates políticos e intelectuais e de movimentos sociais. Na década de 1940, ativistas do Partido Comunista do Brasil fomentaram a organização de trabalhadores rurais, um trabalho que resultaria na criação de algumas ligas camponesas. Na década seguinte, um movimento independente (embora influenciado pelo trabalho dos comunistas) surgiria, organizando trabalhadores rurais em sociedades civis que buscavam defender na justiça seus direitos já existentes , e lutar por melhores condições de vida.
Também na década de 1950, o intenso êxodo rural alimentou a discussão em torno da reforma agrária, que começou a ser vista como um mecanismo adequado para solucionar problemas decorrentes de uma estrutura fundiária demasiadamente concentradora e também antiquada. Contudo, a reforma agrária prevista na constituição brasileira era considerada por muitos setores (em especial, os mais a esquerda no espectro político) ultrapassada, insuficiente e inviável, uma vez que exigia-se o pagamento antecipado em dinheiro àqueles que sofressem desapropriação.
Tanto estas discussões quanto a organização dos trabalhadores rurais alcançariam outro patamar já na virada dos anos 1960, que presenciou um aumento nas ligas camponesas (assim denominadas por associação com as antigas ligas comunistas, embora fizessem parte de outra iniciativa) e que viu a ascensão do varguista João Goulart à presidência da República, um presidente que, embora ele mesmo proprietário rural, defendia reformas estruturais que incluíam a reforma agrária.
Em 1963 havia 475 sindicatos de trabalhadores rurais e 29 federações reconhecidos ou em vias de reconhecimento pelo Estado, mas as ligas camponesas caracterizavam-se por serem associações civis, sem reconhecimento ou conexão com qualquer braço do Estado. O aumento dos sindicatos rurais foi consequência da reforma trabalhista de 1963, que trouxe o Estatuto do Trabalhador Rural (aprovado por um congresso ainda conservador mas que apresentara avanços em sua bancada progressista com as eleições de 1962) , estendendo os mesmos direitos conquistados pelos trabalhadores urbanos e também a mesma estrutura (verticalizada, oficial,como monopólio da representação e unicidade sindical, características do decreto de sindicalização rural do Estado Novo) de organização sindical. Isso acabou por facilitar a organização formal de trabalhadores no campo, esvaziando as ligas, mas também a articulação direta com o Estado e, naquele contexto, com o governo de Jango, que buscou atrair para si o movimento de trabalhadores rurais, visando pressionar o Congresso a aprovar as reformas de base _ inclusive, a reforma agrária.
Além da oposição das oligarquias rurais, a reforma agrária enfrentava acusações (alimentadas pela propaganda anti-cubana e anti-comunista produzida pelos Estados Unidos e disseminada por setores conservadores no Brasil) de ser um primeiro passo para uma revolução comunista em solo nacional. Embora mesmo os militares, depois de chegarem ao poder através do golpe em 1964, alterassem a lei de reforma agrária (permitindo o pagamento das indenizações em títulos da dívida pública) e a incluíssem em seus planos de governo, o problema a ser combatido, na visão do governo Jango, era a concentração fundiária, e não as terras improdutivas, alvo principal das propostas pós-1964.
Durante seu curto mandato como presidente com plenos poderes, Jango tentaria um caminho de negociação com as forças no Congresso. Sua proposta de emenda constitucional permitiria a desapropriação de terras com pagamento a longo prazo, na forma de títulos da dívida agrária. Embora conseguisse ampliar o apoio a várias das suas propostas, não chegou a alcançar os 3/5 de votos do Congresso Nacional necessários para alterar a Constituição. O golpe que o derrubou, em março de 1964, interrompeu o processo de aglutinação de movimentos sociais que Jango tentava colocar em movimento com o objetivo de pressionar o Congresso a aceitar suas propostas de reforma. No notório comício na Central do Brasil em 13 de março de 1964, o então presidente anunciou a desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias, açudes públicos federais e as beneficiadas por obras de saneamento da União. O anúncio foi realizado em meio a um discurso de defesa das reformas de base (que incluíam alterações na educação, sistema financeiro, reforma agrária) e acabou servindo como estopim para a crise que levou a sua deposição, no último dia daquele mesmo mês.
Filme: BR RJANRIO EH.0.FIL, AAN.1. Ano: 1963. Produção da Agência Nacional ressaltando a vontade política do governo de realizar a reforma agrária e solucionar os problemas do homem do campo.
Leitura recomendada
CARNEIRO, Patrício Aureliano Silva; PEREIRA, Mirlei Facchini Vicente. Território da desigualdade: pobreza, fome e concentração fundiária no Brasil contemporâneo. Geografia, v. 30, n. 2, p. 255-269, 2005.
DEZEMONE, Marcus. A questão agrária, o governo Goulart e o golpe de 1964 meio século depois. Revista Brasileira de História, v. 36, n. 71, p. 131-154, 2016.
NATIVIDADE, Melissa de Miranda. A questão agrária no Brasil no governo João Goulart: uma arena de luta de classe e intraclasse (1961-1964). XXVI Simpósio Nacional de História, p. 1-16, 2011.