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A afirmação de que a esfera da vida privada, doméstica, era o único espaço de atuação e experiência femininas (daí a “rainha do lar”) até meados do século passado, em oposição a atuação do homem no espaço público (rua, trabalho, instituições políticas) tornou-se quase um lugar comum para quem se dedica a estudar o papel da mulher na sociedade contemporânea. Limitada às tarefas de casa e criação de filhos, a mulher era excluída do mercado de trabalho e de todo o processo político. Contudo, não só a mulher vem paulatinamente invadindo a esfera pública (produtiva e política) como a distinção entre ambas as esferas vem se tornando mais e mais tênue.

As questões relativas a este processo são bastante complexas. Em primeiro lugar, a ênfase em geral é colocada no aumento da participação da mulher na vida pública, mas é preciso lembrar que o mesmo não se pode dizer do homem em relação a esfera doméstica. Isso sobrecarrega a mulher sobremaneira, pois representa a necessidade de uma dupla jornada de trabalho.

Uma outra questão, possivelmente ainda mais complexa, diz respeito a crescente  fluidez dos limites entre público e privado. Esta fluidez vem se dando a partir da cultura e da tecnologia, mas não só: torna-se mais e mais claro que a esfera privada é (e sempre foi) um espaço de exercício de poder, portanto, um espaço igualmente pertencente ao homem, tendo a mulher apenas um papel “executor de tarefas.”

Assim, é preciso um certo cuidado, ao analisar estas questões, para não reificar a dicotomia entre o público e o privado, já que ambas as esferas estão estreitamente vinculadas e seguem a uma mesma lógica de poder. Não se pode compreender e nem empreender as mudanças nas estruturas de poder de uma sem que a outra se altere profundamente.

Os homens eram (e em grande medida, ainda são) os grandes titulares de uma privacidade, de uma intimidade, que se quer distante da atuação do Estado e do escrutínio alheio. A família é o espaço de exercício primordial do poder, e mulheres e crianças sempre foram as maiores vítimas de uma noção de privacidade que as colocava a mercê do seu senhor, através do pátrio poder, legalmente extinto no Brasil com a Constituição de 1988. A concepção liberal da separação entre público e privado reforça as desigualdades existentes nesse âmbito. Atualmente, muitas pautas feministas dizem respeito a necessidade de regulamentação de comportamentos “privados”. Como as feministas dos anos 1960 começaram a dizer, “o pessoal é político”.

O posicionamento do movimento feminista mostra as mudanças de concepção do papel da mulher na sociedade, bem como da sua sexualidade, da criação de filhos, de ativismo político. Inicialmente, era comum a aceitação de papéis diferenciados para os gêneros por parte de feministas, valorizando-se o papel da mulher como educadora de filhos (futuros cidadãos), mantenedora da estabilidade doméstica, mas questionando sua interdição completa aos processos político, educacional, produtivo. Paulatinamente, acentuou-se a percepção de que o papel da mulher como “cuidadora” é uma construção histórica que a aliena do processo político por justamente  colocá-la em uma posição vulnerável dentro da própria família.

De acordo com Susan Moller, “a "proteção total [ao indivíduo], a sua pessoa e propriedade, ainda não é oferecida pela lei a muitas mulheres, para quem o lar, com toda sua privacidade, pode ser o mais perigoso dos lugares. O Lar, que deve ser protegido da intervenção do Estado, é a esfera de vida das mulheres mas nunca da sua autoridade, pois é o pátrio poder que se protege da regulamentação do poder público atrás da suposta liberdade individual na esfera privada.”

O filme aqui apresentado é uma produção da TV Tupi de 1952: “Mulheres visitam exposição de quadros com motivos infantis e de indumentária feminina do século XIX e XX.” O interesse feminino foi, durante muitos anos, limitado a roupas, crianças, decoração, beleza, culinária e afins.

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OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 16, n. 2, p. 305-332,  Aug.  2008 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2008000200002&lng=en&nrm=iso>. access on  03  Feb.  2020.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2008000200002.

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