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Assim como na literatura e em quase todas as atividades humanas, na música o ponto de vista masculino tem sido considerado o “normal, “o universal,” o “objetivo,” enquanto que a presença e agência femininas em geral são encaradas como o “específico,” o “pontual.” Mesmo os cânones musicais e a história da música privilegiam o homem e sua produção, em franco detrimento da atuação das mulheres. Um exemplo franco disso é o do apagamento da presença feminina para a constituição do gênero musical brasileiro samba, e tradicionalmente concedendo ao cantor/ compositor o papel de destaque e agente único na constituição deste gênero que se tornou símbolo da cultura do nosso país.

No entanto, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX a participação das mulheres em toda a rede de sociabilidade que permitiu o surgimento do samba, na criação de canções, e como instrumentistas e intérpretes mostrou-se crucial, das casas das tias baianas  - muito mais que apenas anfitriãs de festas e rodas, participavam ativamente da produção musical – às pastorinhas que de início desempenhavam um papel central (e não de acompanhamento) na interpretação das músicas. A centralidade masculina no mundo do samba e nas narrativas que disseminaram sua história surgiriam a partir do momento em que o gênero musical se consolidou como produto valioso para a indústria fonográfica e mais do que isso, como expressão da cultura e identidade nacionais, a partir dos anos 1930.

Clementina de Jesus, nascida em [1901], testemunhou em parte esse processo. Embora nascida em Vassouras, interior do estado do Rio de Janeiro, mudou-se para a capital ainda muito jovem, com sua família, indo morar em um bairro da zona oeste da cidade. Exposta a variadas tradições culturais, Clementina se encantou pela música afro-brasileira, pelo nascente samba, ao mesmo tempo em que mantinha tradições católicas da sua família. Trouxe também para a capital as tradições do jongo, dança desenvolvida por escravizados e herdada por seus descendentes, como a própria Clementina. Além do Jongo, a artista trouxe para sua obra a influência do lundu, dos batuques e dos pontos das religiões afro-brasileiras.

Se Clementina só se tornaria uma artista de sucesso comercial e reconhecida nacionalmente a partir dos anos 1960, desde a década de 1920 participava de atividades musicais, sendo um exemplo da importância das mulheres no meio sambista: foi presidente da escola de samba Unidos do Riachuelo. Mas somente em 1963, em um concorrido evento cultural ligado à Igreja no Outeiro da Glória que Clementina conheceria seu produtor, Hermínio Belo de Carvalho. Em meio a agitação cultural da época, que reunia – por exemplo – estudantes do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE) e sambistas da Mangueira e outras comunidades no bar Zicartola (de Dona Zica e Cartola, personalidades da Mangueira), a mulher que passara dos 60 anos e sempre trabalhara como doméstica viu-se participando do Projeto Menestrel em 1964, um movimento que se propunha vanguardista e que fora iniciado com atividades literárias posteriormente ampliadas para a esfera musical por Hermínio Belo, que concebeu o projeto de forma que incluísse música popular e música erudita.  Em 1965, produziu o show Rosa de Ouro, em que Clementina dividia o palco com outra estrela musical: Aracy Cortes, em um projeto que buscava apresentar o samba de uma forma “crua”, como era tocado e cantado pela população das comunidades e periferias. Clementina de Jesus incorporava à perfeição essa personagem de classes mais baixas, herdeira da escravidão mas viva e criativa em um país moderno que permitia a sua ascensão artística.

Clementina não obteve muito retorno financeiro com a música, mas a vida de doméstica ficou para trás; gravou 13 discos, apresentou-se ao lado de Clara Nunes e Milton Nascimento, e chegou a realizar apresentações no Festival de Cannes. Morreu em 1987, aos 86 anos.

O filme aqui exibido mostra a entrevista de Clementina de Jesus concedida à TV Educativa, realizada na residência da artista, em 1976. Fundo Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa. BR_RJANRIO_FS_0_FIL_0343_0001

Leitura recomendada

Antunes, G. B. (2019). Desenquadrando o samba: análise da trajetória de Clementina de Jesus. Tese apresentada ao curso de Doutorado do Programa de Pós Graduação em Sociologia, do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Brasília, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora. Universidade de Brasília.

Gomes, R. C. S. (2013). " Pelo telefone mandaram avisar que se questione essa tal história onde mulher não tá": a atuação de mulheres musicistas na constituição do samba da Pequena África do Rio de Janeiro no início do século XX. Per Musi, 176-191. Acessado em https://doi.org/10.1590/S1517-75992013000200014, 16 de dezembro de 2022.

 

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