“A 9ª Sessão do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda aprovou, em novembro de 2014, em Paris, a Roda de Capoeira, um dos símbolos do Brasil mais reconhecidos internacionalmente, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade” (site do IPHAN).
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) já havia registrado a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres no Livro de Registro das Formas de Expressão, tornando-o nosso bem cultural em 2008. Criada pelas populações africanas vítimas de imigração forçada e escravidão na colônia portuguesa que atualmente possui o nome de Brasil, a capoeira possivelmente nasceu no século XVIII, nos arredores do Rio de Janeiro, Recife e Salvador. Incorporando aspectos de religiões africanas, essa forma de luta ritualizada passou por diversas transformações ao longo da sua história. Se em determinados momentos o caráter de combate predomina, em outros os aspectos artísticos e religiosos ganham maior espaço. Não devemos esquecer que a capoeira foi muito utilizada como forma de ataque e defesa pelos escravos, tanto uns contra os outros, como contra forças de repressão da elite branca.
Se a prática nasceu em meio a opressão do universo escravo, no decorrer dos séculos XIX e, principalmente, XX brancos e negros livres começaram a aderir à prática. Muitos dos novos praticantes passaram a reivindicar a capoeira como uma prática nacional, e não mais apenas africana ou escrava, como forma de minar o preconceito e a criminalização sofridas por quem a praticava.
Em especial no século XX, esse processo de domesticação e “embranquecimento” da capoeira, aliás bem em sintonia com projetos de eugenia que igualmente pregavam o embranquecimento da população brasileira, acabou permitindo que a prática se disseminasse por todo o território nacional e todas as classes sociais. Essa disseminação atravessou fronteiras e hoje a prática pode ser vista em diversos países do mundo.
No entanto, o preço a ser pago pela popularização da capoeira pode ter sido muito alto. Alguns alegam que o processo esvaziou o caráter de identidade religiosa e cultural da atividade criada por uma uma população que ainda encontra enorme dificuldade em defender seu patrimônio cultural e em construir uma identidade própria que consiga fazer frente a cultura hegemônica em que lhes cabe um papel coadjuvante e subalterno. A capoeira que se popularizou é uma capoeira que pode estar esvaziada de símbolos, rituais e significados pois, embora estes ainda estejam presentes, não contam mais a história daqueles que a criaram. O próprio IPHAN, ao apresentar o registro de bem cultural das rodas de capoeira, coloca: “Este conjunto de ações constitui uma resposta do Estado brasileiro às demandas sociais por reconhecimento e valorização de práticas culturais de matriz africana e indígena, secularmente excluídas das políticas públicas e que, por um longo período, foram vistas como um estorvo ao projeto civilizatório pautado na ideologia do branqueamento da sociedade nacional.”
Na cidade do Rio de Janeiro é onde se encontra o maior número de registros, e é através destes registros que podemos acompanhar a mudança no perfil dos praticantes de capoeira. Se nos registros da Polícia da Corte do século XIX a prática de capoeira aparece como delito de escravos urbanos, os registros das pretorias criminais do início do século XX indicam o envolvimento cada vez maior de pessoas de outras origens étnicas.
Em 1937 a capoeira é descriminalizada, na esteira do projeto do Estado Novo de reforçar símbolos e práticas que servissem, de forma “domesticada”, como identificadores nacionais.
O vídeo abaixo torna muito claro este processo de “embranquecimento” da capoeira.
Vídeo: EH.0.FIL, BHO.121. Fundo Agência Nacional.
O acervo do Arquivo Nacional pode ser consultado em http://an/sian/Seguranca/Principal.asp
Referências:
Cucco, Marcelo. A ginástica nacional brasileira: branqueamento e mestiçagem nas cantigas de capoeira. In Revista da ABPN. v. 6, n. 12 • nov. 2013 – fev. 2014
Vassallo, Simone Pondé. O registro da capoeira como patrimõnio imaterial: novos desafios simbólicos e políticos. In Educação Física em Revista, v. 2, 2008. https://portalrevistas.ucb.br/index.php/efr/article/view/977 consultado em 13 de junho de 2018.
Portal do IPHAN: http://portal.iphan.gov.br/