Segundo a Anistia Internacional, 271 trabalhadores rurais, inclusive lideranças sindicais, foram assassinados somente no estado do Pará entre 1996 e 2016. Estes crimes aconteceram no contexto das disputas por terras e, especificamente, como consequência das atividades de grilagem (falsificação de documentação relativa a posse de terras, prática comum levada a cabo especialmente por latifundiários no processo do roubo de terras públicas ou de pequenos lavradores). A grande maioria destes assassinatos permanece impune.
O ano de 1996 foi marcado por um dos maiores massacres que se tem notícia na região, que ficou conhecido internacionalmente por Massacre de Eldorado dos Carajás. Em 17 de abril daquele ano, a polícia militar assassinou 19 trabalhadores rurais sem terra que faziam uma caminhada até Marabá. Interpelados a meio caminho por policiais armados de fuzis e sem identificação obrigatória que tentaram impedir sua passagem, acabaram perseguidos. O desfecho dessa ação criminosa perpetrada pelo Estado brasileiro correu mundo e suscitou indignação na imprensa, protestos nas grandes cidades, articulação entre atores da sociedade civil. No entanto, apenas 2 oficiais foram presos e condenados, e o Estado brasileiro, mais uma vez se eximiu da responsabilidade por atos ilegais levados a cabo por seus agentes. Segundo a Anistia Internacional, que analisou a documentação do processo, “as autópsias revelaram que 10 dos 19 mortos foram executados, inclusive à queima roupa, e outros foram mutilados até a morte com suas próprias ferramentas de trabalho.” .
A violência e a impunidade são a regra no Brasil, e não a exceção. Em 2015, foi registrado o maior número de mortos em conflitos de terra desde 2003: 50 assassinatos, 59 tentativas de homicídio, 144 pessoas ameaçadas, segundo a Pastoral da Terra. Apenas dois julgamentos ocorreram. Os defensores do meio ambiente também encontram-se no topo da lista dos mais visados pelos grandes ruralistas. Segundo a Global Witness, o Brasil foi o país que mais matou ativistas pelo direito a terra ou em defesa do meio ambiente em 2017: 57. A violência e a impunidade não se restringem ao campo ou a luta pelo direito a terra e defesa pelo meio ambiente: novamente de acordo com a Anistia Internacional, o Brasil liderou em 2017 “o número de assassinatos de diversos grupos de pessoas: jovens negros do sexo masculino, pessoas LGBTI, defensoras e defensores de direitos humanos, grupos ligados à defesa da terra, população tradicionais e policiais.”
Apesar de a segunda metade da década de 1990 ter apresentado expressiva queda nos números de violência no campo, esta tendência foi momentânea e a partir de 2001, ano da publicação da MP 2109-52 os números crescem assustadoramente nos anos seguintes.
A caminhada encerrada de forma macabra em 1996 tivera início em 10 de abril sob a liderança do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Cerca de mil e quinhentas pessoas acamparam na chamada curva do S em Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará, a caminho da capital. Seu objetivo era conseguir a desapropriação da fazenda Macaxeira, avaliada como terra ociosa, e protestar contra a lentidão dos processos de reforma agrária no Estado. O governador Almir Gabriel (PSDB), o secretário de segurança do estado, Paulo Sette Câmara, e o presidente do Instituto de Terras do Pará, Ronaldo Barata, organizaram uma operação militar para “desobstruir a rodovia”. O secretário admitiria posteriormente ter dado ordem para atirar, se necessário fosse. Centenas de policiais se colocaram no caminho da marcha, resultando no massacre e na prisão e espancamento de dezenas de manifestantes. Alguns, como Oziel Alves Pereira, foram caçados e mortos a sangue frio.
A “operação” foi gravada por uma equipe de jornalistas da TV Liberal, e as imagens correram mundo. O então ministro da agricultura, responsável pela reforma agrária, Andrade Vieira pediu demissão pouco depois. Percebendo o alcance da malfadada operação, o governador responsabilizou o coronel Mario Colares Pantoja, comandante da operação, pela truculência da ação. Uma semana depois, o presidente Fernando Henrique Cardoso recriou o Ministério da Reforma Agrária com o nome Ministério Extraordinário de Política Fundiária, ocupado por Raul Jungmann.
O inquérito subsequente registou que o fazendeiro Ricardo Marcondes de Oliveira denunciou a participação de fazendeiros na operação, principalmente do dono da Macaxeira, além do fato de que o coronel Pantoja fora visto na fazenda dias antes do confronto, indicando premeditação de toda a operação. Empregados da fazenda foram vistos em meio aos policiais fardados.
Nenhum fazendeiro ou jagunço jamais foi indiciado e até o momento apenas o coronel Pantoja e o major Pereira de Oliveira encontram-se presos, condenados em 2012.
Em setembro de 1996, o Monumento Eldorado Memória, projetado por Oscar Niemeyer, foi inaugurado em Marabá. A exemplo do ocorrido em 1989 em Volta Redonda, o monumento foi destruído a mando de fazendeiros da região. Um novo monumento foi encomendado, a ser construído em Eldorado. Em 1999, o Monumento das Castanheiras Mortas foi erguido por 800 sobreviventes do ataque policial de 96.
A fazenda Macaxeira foi desapropriada e deu origem ao assentamento 17 de abril.
Informe acerca das manifestações ocorridas em função do massacre em Eldorado dos Carajás. br_dfanbsb_h4_mic_gnc_dit_980080702_d0001de0001. Fundo Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Clipping acerca do ocorrido em Eldorado de Carajás em abril de 1996. br_dfanbsb_2m_0_0_0194_v_04_d0008de0014. Fundo Estado Maior das Forças Armadas.
Leitura recomendada.
Anistia Internacional, “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”. Relatório lançado em 2017 disponível no site da organização.
BARREIRA, César. Crônica de um massacre anunciado: Eldorado dos Carajás. São Paulo em perspectiva, v. 13, n. 4, p. 136-143, 1999.
CARLI, Caetano De’. O discurso político da agroecologia no MST: O caso do Assentamento 17 de Abril em Eldorado dos Carajás, Pará. Revista crítica de ciências sociais, n. 100, p. 105-130, 2013.
NEPOMUCENO, Eric. O massacre: Eldorado do Carajás-uma história de impunidade. Editora Record, 2019.