A mentira e a fraude vêm fazendo parte do nosso jogo político há muito tempo, e em alguns momentos marcantes elas acabaram se tornando centrais no jogo político. Se a internet concedeu à mentira um status de “pós-verdade” e uma penetração inédita entre a população em geral, nem por isso as fabricações no meio político representavam um perigo menor antes da era digital. Questionar o resultado das eleições com base em boatos e documentos falsos tampouco é novidade.
Em 1921 o jornal carioca Correio da Manhã publicou cartas supostamente assinadas pelo candidato à Presidência da República Artur Bernardes, então governador de Minas Gerais. As missivas continham ofensas aos ex-presidentes Marechal Hermes da Fonseca – que recaíram duramente sobre o exército em geral – e Nilo Peçanha, que também se candidatava à Presidência da República – mas, enquanto representava a oposição, Bernardes corria pela situação. O início dos anos 1920 foi marcado por atritos entre as oligarquias mineira e paulista (que tradicionalmente se alternavam na Presidência), e pela emergência de ondas de contestação vindas das cidades e dos meios militares, em especial de baixa patente. Assim, a publicação das cartas acabou arranhando a imagem do candidato mineiro e acirrando as disputas. Embora vitorioso nas eleições de 1922, Arthur Bernardes enfrentou o questionamento do resultado do pleito, que suscitou um movimento em defesa de Nilo Peçanha a conclamar os militares a impedirem a posse de Bernardes, sem sucesso; e a má vontade dos meios militares durante seu governo, mesmo depois que a farsa foi desmascarada: dias depois das eleições, em março de 1922 Oldemar Lacerda e Jacinto Guimarães admitiram oficialmente a falsificação das cartas cujo objetivo era prejudicar a campanha de Arthur Bernardes.
Getúlio Vargas chegou ao poder em 1930 após o movimento civil-militar que deu fim à Primeira República. Apesar da promulgação de uma nova Constituição em 1934 – resultado de uma Constituinte democrática – Vargas conseguiu manter-se no poder sem eleições e sem instalar uma ditadura aberta até 1937. O fracassado Levante Comunista de 1935 forneceu munição para diversas arbitrariedades aprovadas pelo Congresso (como por exemplo a instalação do Estado de Guerra em 1936 e a criação do nefasto Tribunal de Segurança Nacional no ano seguinte). Em 1937 vários apoiadores de Vargas – inclusive os integralistas – articularam-se em um movimento que resultou na fabricação do “Plano Cohen,” um episódio tão espúrio quanto crucial para a nossa história.
A tão aguardada eleição presidencial, a primeira desde o movimento de 1930, estava marcada para janeiro de 1938. Três candidatos se manifestaram: Armando de Sales Oliveira, pela União Democrática Brasileira (UDB); José Américo de Almeida, candidato situacionista que contava com o apoio de governadores de todos os estados com a exceção de São Paulo e Rio Grande do Sul, e Plínio Salgado, chefe da AIB – Aliança Integralista Brasileira.
No dia 30 de setembro de 1937 o chefe do Gabinete Militar general Francisco José Pinto anuncia a descoberta de um suposto plano comunista elaborado e liderado pelo komintern (a Internacional Comunista, sediada em Moscou, antiga União Soviética). Apenas trechos do documento foram divulgados: na verdade, tratava-se de um conjunto de páginas fictícias que buscavam realizar um estudo estratégico de possíveis ações de revolucionários comunistas. Este pastiche foi apresentado ao Estado Maior do Exército por um oficial integralista, que alegava ter tido acesso a ele de forma sigilosa. A versão dada mais de uma década depois pelo chefe do Estado Maior da época, Gois Monteiro, sustenta que o então coronel Olímpio Mourão Filho (o mesmo que lideraria o golpe contra João Goulart em 1964), elaborara o plano e que o major Aguinaldo Caiado de Castro o apresentara aos superiores. Nunca se soube ao certo quem “inventou” o documento, quem o levou a sério e quem resolveu usá-lo como instrumento de uma estratégia para tornar real uma ameaça internacional vermelha completamente fantasiosa no Brasil de 1937 e assim, justificar o golpe que em novembro daquele ano inaugurou um sombrio período ditatorial que só teria fim em 1945.
Em setembro de 1955 Carlos Lacerda – deputado estadual de extrema direita pela UDN no Rio de Janeiro – divulgou uma carta supostamente escrita pelo deputado peronista argentino Antônio Brandi e endereçada ao então candidato a vice-presidência da República João Goulart, do PTB. O peronismo argentino aproximava-se do trabalhismo brasileiro e era visto pela direita como um sindicalismo radical, quiçá a serviço do comunismo soviético, que desde seu surgimento em 1917 vem sendo utilizado de forma consistente por setores conservadores como uma espécie de bicho-papão capaz de convencer parte da população que projetos excludentes e autoritários são aceitáveis em vista de uma suposta ameaça vermelha. A carta, escrita em papel timbrado da câmara legislativa de Corrientes (Argentina), era datada de dois anos antes, época em que Jango ainda ocupava o cargo de Ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e antes da queda de Juan Perón. O conteúdo expunha planos para criar uma república sindicalista no Brasil e citava contrabando de armas. A poucos dias das eleições, o impacto da carta originou reações entre setores militares, que abriram um inquérito para investigar a autenticidade da correspondência; embora inicialmente ambíguo, o resultado final da investigação apontou para uma fraude articulada pelos falsários argentinos Alberto Cordero e Fernando Malfussi, que posteriormente foram presos e condenados. Embora não se saiba ao certo as motivações por trás da trama, a UDN claramente se aproveitou da situação para tentar minar a candidatura JK/ Jango, fruto da aliança PSD/ PTB.
O documento datilografado defende que o capitão Olympio jamais autorizou a divulgação do malfadado plano, e que o “golpe de dez de novembro [de 1937] não foi, como se procura fazer crer, devido ao célebre documento; este foi apenas apresentado como ilustração concreta dos perigos que ameaçavam o país. O manifesto dos generais nele fala incidentemente. A situação política de fato, esta sim, originou a necessidade salvadora.” O documento aparentemente reunia informações e anotações esparsas do Estado Maior, a serviço do seu chefe Gois Monteiro. Não possui data ou local. Notação: BR RJANRIO SA.0.PIT, TDV.693. Fundo Goes Monteiro.
A reportagem sobre as 3 grandes falsificações foi publicada na revista O Cruzeiro, outubro de 1973. Notação: BR RJANRIO D7.0.DCO, TXT.1/4. Fundo João Goulart.
Leitura recomendada:
Dantas, E. G. (2014). Palimpsesto antissemita: desconstruindo o Plano Cohen. Revista Escritas, vol.6
dos Santos, R. G. C. (2017). Uma missiva contra o peronismo tupiniquim-Carlos Lacerda, Tribuna da Imprensa e a carta Brandi (1955). Antíteses, 10(19), 137-164.