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O Brasil tradicionalmente apresenta uma religiosidade bastante peculiar que costuma deixar muitos estrangeiros confusos. A maioria esmagadora se diz católica mas uma boa parte dela também pratica outros ritos não-cristãos, de mesas brancas kardecistas a sessões de umbanda. Ao longo da nossa história essa permeabilidade entre as práticas religiosas ensejou o uso frequente do termo sincretismo, e a despeito da perseguição histórica a religiões não cristãs (em especial, as de origem africana) permitiu a coexistência entre os mais diversos credos.

O cenário sofreu uma alteração com a introdução de igrejas pentecostais e neopentecostais no Brasil, trazidas por missionários americanos ou europeus americanizados. Ao contrário dos chamados protestantes históricos, os pentecostais apresentam um discurso agressivo contra todas as outras filiações religiosas, em especial – novamente – as de matriz africana. Atualmente o Brasil conta com uma legislação que coíbe o racismo aberto e a intolerância religiosa, mas a demonização dos macumbeiros continua solta dentro dos templos evangélicos.

O pentecostalismo aportou aqui no início do século XX e passou por um momento de expansão nos anos 1950, com uma nova leva de missionários. Sectários e ascéticos, trazidos por estrangeiros, os dois grupos no entanto se diferenciavam no uso do rádio e da intensa pregação itinerante, marca do segundo grupo. Já o neopentecostalismo brotou em solo pátrio na década de 1970, e não mais parou de crescer. Embora não sustente o ascetismo típico dos seus antecessores, permitindo maior liberdade nos hábitos e consumos, os neopentecostais abraçam com fúria a eterna guerra contra aquilo que consideram satanás – e seus representantes, sendo este um dos dois pilares de sustentação da sua pregação. O outro é a Teologia da Prosperidade, crença segundo a qual a riqueza encontra-se atrelada a dedicação do crente à sua igreja e ao pastor, mandatário de Deus na Terra.

O crescimento das agremiações neopentecostais ocorreu na esteira da expansão dos meios de comunicação eletrônicos, em especial a TV – que funcionam como poderoso ímã para atrair potenciais fiéis para o templo, onde a conversão se concretiza; das crises agudas e cíclicas que o país atravessou e que em geral penalizam as pessoas de renda e escolaridade mais baixa; do aumento da violência urbana em geral, que acompanhou as crises econômicas e o crescimento não organizado das nossas cidades. Outros fatores contribuíram para esta expansão, fenômeno complexo discutido pelos cientistas sociais há décadas.

As vertentes pentecostal e neopentecostal vêm perdendo as diferenciações ao longo dos anos, embora não completamente, mas esta última, liderada pela Igreja Universal do Reino de Deus (a IURD do bispo Macedo) concentra o maior crescimento. A vertente também é a que mais atua e possui mais visibilidade nos meios de comunicação, sendo proprietária até de redes de televisão. Apesar de certa liberalidade cultural, permitindo aos fiéis hábitos e interesses como roupas da moda, maquiagem, futebol, música pop e outros produtos da indústria cultural, a interdição estrita e a condenação pública ao álcool, drogas e relações homoafetivas não só permanece de pé como parece mais intransigente do que nunca.

Esta permeabilidade relativa aos hábitos do entorno social funciona como um atrativo, aliado aos cultos que em geral oferecem serviços bastante conectados com os interesses comuns: emprego, dinheiro, prosperidade, sucesso, cura e solução de problemas familiares. As soluções costumam vir através de curas mágicas, orações, formação de laços pessoais robustos entre os fiéis que os auxiliam a enfrentar os problemas, promessas de prosperidade diretamente proporcionais às oferendas dadas à igreja. Em documento do SNI, que reúne denúncias e investigações relativos à IURD e a Edir Macedo, podemos ler: “a entidade, para angariar adeptos, apregoa milagres e exorcismos durante os cultos, ocasião também destinada a atacar outros culto e entidades religiosas, principalmente os espiritualistas (umbandistas, kardecistas e do candomblé). Os recursos financeiros, em sua maioria, originam-se da contribuição dos adeptos, que durante os cultos são estimulados pelo "pastor", à contribuírem com máximo que puderem. Sugerindo o organizador que todos devem contribuir, se possível com U$ dólares, e quantias entre um e cinquenta cruzados novos. Sob os "slogans" QUANTO VALE UW MILAGRE e QUEM NÃO TEM DÓLAR, DÁ CRUZADO, uma sacola é encaminhada, individualmente, a cada participante, que além de depositar a importância sugerida é pressionado a adquirir pequenos objetos de propaganda da entidade, como discos, fitas, livretos, etc”

O uso intenso da indústria cultural integra o sucesso dessas agremiações religiosas, incluindo a compra de emissoras de TV, venda de livros, músicas, shows, filmes. Nas últimas décadas, tornaram-se atores de extrema relevância na política nacional, a ponto de constituírem bancada no Congresso – bancada da bíblia – frequentemente articulada com duas outras facções, igualmente conservadoras: a bancada do boi e a da bala. O potencial político da IURD e outras igrejas já se fazia notar em 1989. O mesmo documento continua: “considera-se, também o potencial político da IURD, que através de campanhas eleitorais, junto aos seus fiéis, conseguiu eleger parlamentares, a níveis estadual e federal, contando com o apoio de alguns deputados.”

O documento expõe algumas denúncias e processos contra o então pastor (atual bispo) Edir Macedo e outros sacerdotes, por charlatanismo, curandeirismo, ofensa a outras crenças e contrabando. A intolerância religiosa, embora ilegal, é mostrada através de declarações em jornais de grande circulação, reunidos no documento e enfatizado no trecho:

“Por iniciativa do Deputado Estadual - PMDB/RJ - ÁTILA NUNES PEREIRA FILHO (80502157), líder espiritual dos seguidores dos cultos a UMBANDA e CANDOMBLÉ no Estado do RIO DE JANEIRO, foi movido pie/o advogado HUMBERTO .744JWEN A/OCHADO (B0020345), inquérito policial contra a IURD. O referido inquérito apura denúncias de ataques aos "terreiros" de Umbanda e Candomblé e crimes de estelionato praticados pela IURD. Segundo o parlamentar, ele e o presidente da CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA UMBANDA vêm recebendo ameaças de morte, por telefone, tendo em vista o inquérito policial em curso.”

Durante toda a década de 1990, a IURD e vários de seus sacerdotes – principalmente Edir Macedo, que chegou a ficar preso vários dias – foram intensamente investigados pelas mesmas acusações já listadas, acrescentando-se outras. Segundo Mariano, “durante toda a primeira metade dos anos de 1990, a igreja e seus dirigentes estiveram no centro de intensas controvérsias, envolvendo os mais diferentes agentes dos campos religioso, empresarial, midiático, policial, judicial e político. Métodos heterodoxos de arrecadação, vilipêndio a culto religioso, agressão física contra adeptos dos cultos afro-brasileiros e investimentos empresariais milionários, em especial a surpreendente compra da Rede Record por 45 milhões de dólares, em 1990, desencadearam uma série de críticas e acusações da grande imprensa e até de setores evangélicos, inquéritos policiais e processos judiciais contra a Universal e seus líderes, um sem-número de vezes retratados em matérias jornalísticas como exploradores da credulidade dos pobres. Para piorar a situação, em 1991, Carlos Magno de Miranda, ex-líder da igreja no Nordeste, acusou Edir Macedo de sonegar impostos, de envolvimento com o narcotráfico e de enviar ouro e dólares ilegalmente para o exterior, levando o bispo primaz a ter de depor na Justiça Federal. Em 24 de maio de 1992, acusado de cometer crimes de charlatanismo, curandeirismo e estelionato, Macedo foi preso pela 91ª Delegacia de Polícia de São Paulo, onde ficou encarcerado numa cela especial por doze dias até ser solto mediante habeas corpus. Na véspera do Natal de 1995, Carlos Magno voltou à carga tornando público um vídeo inédito, gravado em 1990, em que Edir Macedo aparecia rindo enquanto contava dinheiro num templo em Nova York, divertindo-se num iate em Angra dos Reis e instruindo, durante intervalo de uma partida de futebol, pastores a serem mais eficazes na coleta de dízimos e ofertas. A exibição do vídeo provocou uma das maiores controvérsias religiosas dos anos de 1990 no Brasil, resultando na mobilização de polícia e Receita Federal, Justiça, Previdência Social, Procuradoria da República e Interpol para investigar a Igreja Universal e seus líderes, que, em resposta, atacaram a Rede Globo, reclamaram de perseguição religiosa e realizaram grandes manifestações públicas de desagravo. Macedo e os bispos da igreja só conseguiram se afastar das páginas e manchetes policiais no final dos anos de 1990 em diante.”

 

O Arquivo Nacional conta com extenso acervo que registra a história de diversas religiões no Brasil, cristãs, afro-brasileiras, orientais. Os documentos utilizados nesta matéria (ambos do Serviço Nacional de Informações) são:

BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_89070546: IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS. SE143 AC – abril de 1989

BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_CCC_89017556_d0001de0003: HISTORICO DA IURD, A QUAL ESTA SENDO INVESTIGADA PELA POLICIA CIVIL SOB A ACUSAÇÃO DE CHARLATANISMO, ESTELIONATO, CURANDEIRISMO E DE OFENDER OUTROS CREDOS, CRIMES PREVISTOS NO CODIGO PENAL BRASILEIRO – março de 1989

 

Leitura recomendada:

Camurça, M. (2020). Igreja Universal do Reino de Deus: entre o “plano de poder” e a lógica de minoria perseguida. Religião & Sociedade40, 43-66.

Mariano, R. (2004). Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. Estudos avançados18, 121-138.

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