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Sangue, suor e seca

Antes mesmo de completar uma década de existência, a República brasileira precisou enfrentar um trágico questionamento, em um momento crucial de transição política em que a autoridade militar responsável pelo golpe que derrubou a monarquia dava lugar ao primeiro civil a ocupar a Presidência da República (Prudente de Moraes, eleito em 1894). Um movimento que apresentava traços de messianismo (sem se limitar a ele), iniciado no sertão nordestino tirou o sono das elites locais e nacionais, questionando a cobrança de impostos, a propriedade fundiária, as autoridades republicanas.

O cearense Antônio Conselheiro passara anos em peregrinação pelo interior do nordeste até chegar ao vale do rio Vaza Barris em 1893, em Canudos (Bahia) onde fundou um arraial que se propunha ser independente das estruturas políticas e econômicas a sua volta. Defendendo o retorno do sistema monárquico, Conselheiro desafiava a ordem republicana.

O arraial cresceu, alimentado pelos miseráveis que a crise e a seca geravam e pelos ex-escravos que vagavam pelos sertões. Euclides da Cunha, em seu testemunho escrito Os sertões, avaliou que cerca de 25 mil pessoas viviam no lugarejo na época em que as forças oficiais destruíram o lugar, dizimando quase toda a população. Estes números, contudo jamais puderam ser corroborados.

A primeira incursão militar contra o arraial ocorreu em 1896. Vencida, foi seguida de mais duas, igualmente derrotadas, embora a terceira contasse com comandante vindo diretamente da capital da República, coronel Moreira César, conhecido pela violência com que sufocara a rebelião federalista no Rio Grande do Sul (1893-1895). Ele acabaria morrendo no confronto com os sertanejos, acirrando os ânimos na capital da República.

Entre abril e outubro de 1897, uma quarta expedição, sob comando do próprio ministro da guerra, marechal Bittencourt, arrasa o vilarejo em uma sequência de incursões. Apesar da rendição, centenas de pessoas são mortas a sangue frio, degoladas por forças do exército.

Esta quarta e última expedição militar, que devastou o povoado, foi enviada em um contexto de extrema pressão sobre o governo Prudente de Moraes, encurralado entre lideranças militares que o acusavam de permissivo e indeciso, e radicais que buscavam toda e qualquer supressão a referências monarquistas em território nacional.

Nas cidades brasileiras, nas páginas dos jornais, nos círculos oficiais e nos salões da elite construiu-se uma imagem selvagem e extremamente perigosa dos sertanejos de Canudos e seu líder. Das teorias raciais de Nina Rodrigues que transformavam a “mestiçagem” em maldição e degeneração, às acusações de um primitivo fanatismo religioso, o discurso geral apontava para um quadro de loucura e descontrole entre os miseráveis do sertão, justificando seu extermínio. A impávida resistência e inesperada ousadia desses miseráveis armados com sobras das expedições fracassadas em nada contribuiu para minimizar esta impressão, bem como sua explícita resistência à República e ao positivismo e a laicidade que ela supostamente representava.

Mais de 40 anos depois, o então presidente Getúlio Vargas, impressionado com a leitura de Os sertões, inclui Canudos em sua visita a Bahia. Na foto, imagem do cruzeiro da igreja Nova de Antônio Conselheiro e ruínas do arraial, tirada durante esta visita. O local foi inundado para a construção da represa de Cocorobó em 1997, e apenas em anos de estiagem intensa o arraial pode ser visto. O cruzeiro atualmente encontra-se na capela do Movimento Popular Memorial de Canudos.

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Para ler

Jacqueline Hermann. Canudos Destruído em Nome da República. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 2, n°. 3, 1996.

Marco Antônio Villa. Canudos. O povo da terra. São Paulo, Ática, 1995.

 

O chamado polígono das secas é uma região que abrange mais de 1300 municípios nos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Esta denominação ganhou estatuto legal em 1946 mas apenas com a lei 63778 de 1968 recebeu uma definição geográfica específica e regulamentação, permitindo a aplicação de políticas públicas apropriadas. Períodos de seca anômala e periodicidade indefinida marcam a região, deixando um rastro de pobreza agravado por uma estrutura fundiária concentradora e arcaica.

Tanto a estrutura fundiária como o ambiente inóspito favorecem a instabilidade social, além da situação de indigência em que vive uma parcela da população. A imagem aqui publicada relaciona-se com um evento que marcou a região mais de cem anos atrás. Você saberia dizer que evento foi esse?

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