Cartas têm sido utilizadas para divinação e diversão há séculos. De jogos de azar como black jack a passatempos familiares como paciência, de leituras de tarô ao baralho cigano, há uma grande variedade de tipos de jogos e baralhos. No entanto, sua origem é incerta: China, Índia ou Oriente Médio, o que se sabe é que as cortes da Europa medieval já faziam uso das cartas para orientação e diversão. A despeito da popularidade dos jogos, sua prática em muitos momentos foi mal vista pela sociedade e algumas vezes proibida.
As cartas acima integram um documento existente no acervo do Arquivo Nacional. Você tem alguma ideia de como elas foram parar lá? Porque um baralho estaria em uma das nossas caixas?
É tênue a linha que separa a pura perseguição religiosa do combate à exploração da credulidade popular.
O artigo 157 do código penal de 1890 afirmava ser crime contra a saúde pública: “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica”, com pena prevista de um a seis meses de prisão. Foi este dispositivo jurídico que permitiu a aberta perseguição aos cultos de matriz africana, já que muitos praticantes eram acusados de enganar o povo, praticar magia, exigir dinheiro em troca de falsas promessas.
Além das práticas religiosas predominantes entre a população negra – de longe, os maiores alvos da perseguição de cunho religioso -, antigas tradições relacionadas a divinação e magia também sofreram intensa perseguição sob a égide dos artigos 157 e também 158, que versava sobre as práticas de curandeirismo. Ciganas e seus oráculos, benzedeiras e suas beberagens, os anciãos de todas as cores que tradicionalmente concediam talismãs mágicos, poções para todos os males e divinações as mais variadas - tradições africanas, indígenas e europeias se misturavam Brasil afora, garantindo sustento a um considerável contingente de pessoas que de outra forma não teria fonte de renda. Todas elas, de acordo com o código penal de 1890, práticas ilegais que poderiam levar a cadeia. Em posição de extrema vulnerabilidade por pertencerem as classes sociais mais empobrecidas, estes praticantes de magia, feitiçaria, macumba e cartomancia atendiam a uma variada clientela que muitas vezes incluia senhoras de classe média ou mesmo da elite. Considerados símbolos de atraso e obscurantismo por aqueles que se autoproclamavam agentes da modernidade (os republicanos, os homens de capital, a imprensa), estes elementos da tradição brasileira que fugiam do controle direto das instituições religiosas estebelecidas e cujas práticas eram incorporadas no cotidiano das classes populares, acabaram sendo perseguidos sem dó mas também sem resultados duradouros, visto que paulatinamente a liberdade de credo acabaria por abraçar quase todo tipo de crença e ritual. Tradições divinatórias, aliás, renasceriam na segunda metade do século XX em correntes esotéricas da chamada Nova Era.
A prática de cartomancia, quiromancia, feitiçaria e simpatias em geral – classificadas como charlatanismo – era apresentada pela polícia e pela imprensa como mera exploração da credulidade popular. No processo apresentado aqui, da 5ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, Helena Wilson, que mandara imprimir cartões apresentando-se como “quiromante grafóloga”, é processada segundo o artigo 157 do código penal. Sua autuação deu-se em 1934, e com ela foi apreendido um baralho de cartas bastante incomum. Muitas vezes os próprios clientes eram igualmente levados a delegacia para testemunhar contra os acusados.
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Del Priore, Mary. Do outro lado. A história do sobrenatural e do espiritismo. São
Paulo: Planeta, 2014.
Francisco,Henrique Sugahara. Transgressores da ordem e dos bons costumes: os adeptos das práticas mágico-religiosas segundo as páginas sensacionalistas do jornal A Capital, 1912-1930. Dissertação de mestrado em História. PUC-SP.
Ano de Obtenção: 2011
Ribeiro, Jéssica Cristina Aguiar. Das perseguições policiais à “moralização e sistematização das práticas e crenças religiosas”: o lugar do feiticeiro na cultura nacional. Anais dos Simpósios da Associação Brasileira de História das Religiões, Vol. 13, 2012