O medo e o terror vêm sendo utilizados como dispositivos de poder há séculos, tanto por agentes privados como por representantes dos poderes públicos ou estatais. Embora não exista um consenso nas ciências sociais acerca do conceito de terrorismo, existem alguns parâmetros balizadores das discussões em torno do termo e sua utilização. A decisão pela utilização parte muitas vezes das vítimas ou alvos dos atos de terror, e o que para alguns é terrorismo, para outros pode ser uma defesa da liberdade.
Táticas de conquistas de objetivos específicos apontadas como terrorismo emergem em sociedades marcadas por processos políticos institucionalizados, e presença consolidada de um Estado-nação. Por motivos óbvios, atos de força realizados fora do âmbito de negociação institucionalizada de conflitos serão definidos como atos de terror, ilegítimos do ponto de vista do Estado e daqueles que nele se reconhecem. Contudo, a complexidade das relações sociais dentro dos limites de um mesmo Estado, e entre os diferentes Estados da comunidade internacional tornam a imprecisão conceitual quase inevitável. Resistir a forças de ocupação estrangeiras de todas as formas possíveis, quando qualquer tentativa de negociação formal e institucional falha, representa um ato de terror? E se um ato de violência é perpetrado por agentes do Estado, dentro da lógica de atuação daqueles que o controlam naquele momento mas ao arrepio da ordem legal e legítima, deixa de ser terrorismo apenas por se inscrever na esfera estatal?
Esta complexa discussão não dá sinais de arrefecer. Grupos extremistas vêm fazendo uso da força para impor suas crenças fora da esfera democrática de decisão e discussão. Por outro lado, grupos oprimidos há muito tempo perderam a confiança em formas institucionalizadas de resolução de problemas, enfrentando forças policiais cada vez mais violentas em protestos urbanos. Em alguns casos incitados por agentes do próprio Estado (governantes eleitos e temporariamente alçados a autoridade máxima dos seus países), atos de violência são realizados visando a manutenção no poder dos mesmos grupos.
O conceito moderno de terrorismo começou a ser gestado durante o Regime de Terror na França pós-Revolução, quando o governo ditatorial impunha o medo e a intimidação violenta como forma de levar adiante seu projeto político. Cem anos mais tarde, anarquistas apropriaram-se do termo, transformando-o em ferramenta política com o intuito de alterar a ordem vigente. Ao longo do século XX, atos terroristas foram apresentados cada vez mais pela mídia e pelos governos como atos ilegítimos e violentos contra pessoas inocentes na busca por um objetivo político por parte de grupos minoritários.
O terrorismo também é uma arma utilizada por alguns governantes, em especial em ditaduras (teocráticas ou não): de Hitler a Pinochet e Hussein, ditadores de variados matizes ideológicos assassinaram pessoas por trás das cortinas do poder, livrando-se de inimigos de forma ilegal e violenta. A isto se dá o nome de terrorismo de Estado. No Brasil, os regimes autoritários instalados entre 1937-1945 e 1964-1985 além de impor pelas armas uma legislação autoritária, fizeram amplo uso de ações ilegais de intimidação e repressão (sequestros, desaparecimentos, mortes, bombas). Com a desculpa de que o “inimigo” (opositores do regime) andava armado e pretendia derrubar o Estado – supostamente - legítimo, tais governos dispensaram o uso da legislação vigente que eles mesmos haviam imposto (e que ainda lhes pareciam “limitantes”) e não só permitiram mas incentivaram práticas de tortura e assassinato de adversários.
Os grupos que ocuparam o poder ao longo dos anos da ditadura militar não eram homogêneos em suas convicções políticas, suas ideologias e seus projetos. Havia grupos radicais que defendiam permanentemente um regime ditatorial, e ainda mais “fechado” do que o existente. Com a ascensão de Ernesto Geisel ao poder (1974-1979) e sua proposta de “abrir” gradativamente o regime e promover o retorno a democracia, estes grupos radicais da extrema direita passaram a buscar estratégias que impedissem a abertura e a redemocratização. O sucessor de Geisel, João Batista Figueiredo (1979-1985) assumiu a presidência no mesmo ano da aprovação da anistia geral (e polêmica), prometendo “prender e arrebentar” quem se opusesse a abertura.
O Riocentro é um centro de convenções localizado na zona oeste do Rio de Janeiro. Em 30 de abril de 1981, véspera do feriado do Dia do Trabalho, um show celebraria a data e o processo de redemocratização. Beth Carvalho, Gonzaguinha e Elba Ramalho estavam entre os artistas convidados, e logo no início do show de Elba uma bomba explodiu dentro de um carro no estacionamento. Outra bomba, detonada dentro de uma casa de força, sequer cortou a energia do local. O show continuou sem interrupções, e o público (avaliado em 20 mil pessoas), alheio ao estertor da ditadura militar brasileira, soube do ocorrido apenas ao final do espetáculo.
Começava um drama político que colocou o governo Figueiredo e as forças armadas na berlinda. Logo se verificou que as bombas haviam sido plantadas por militares: o sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário (técnico em explosivos), que morreu dentro do carro (um Puma) morreu na explosão, e o capitão pára-quedista Wilson Luís Chaves Machado, que servia no DOI-CODI (Centro de Operações para a Defesa Interna) do I Exército ficou gravemente ferido.
A princípio, a versão oficial, no intuito de arrefecer os ânimos e impedir que o Exército saísse manchado do episódio, colocava os dois militares como vítimas de um atentado. A conclusão do primeiro inquérito entrava em chocante contradição com os indícios colhidos por órgãos da imprensa e da sociedade civil, e políticos da oposição para quem ficava cada vez mais claro, ao longo das semanas seguintes, que os militares na verdade haviam sofrido um acidente enquanto tentavam realizar um atentado.
A começar pelo grupo de 15 homens armados que pararam para examinar um mapa em um restaurante na Grajaú-Jacarepaguá (caminho para o Riocentro) alocados em vários carros, inclusive o mesmo Puma que explodiria no estacionamento (as placas dos carros foram anotadas e repassadas para a polícia por funcionários do restaurante, que acreditaram tratar-se de assaltantes) até o fato de quase todos os portões de saída do centro de convenções encontrarem-se trancados na noite do show, todos os indícios apontavam para um atentado militar visando encurralar, ferir e matar o maior número possível de pessoas no show organizado pelo Centro Brasil Democrático. A intenção primordial era desmoralizar o processo de abertura e o governo que o patrocinava, e aterrorizar a população, possibilitando um novo golpe da extrema direita.
Não foi o único ataque terrorista realizado por militares ou pessoas ligadas às forças armadas naquele período. Um evasivo “Comando Delta” denunciava a atuação de supostos “grupos subversivos” em vários atentados a bomba em bancas de jornais ou instituições como a OAB, mas os políticos de oposição e mesmo vozes dentro do governo alertavam (ou insinuavam) para a atuação de grupos extremistas dentro do exército. Os indícios em todos os casos (mais de 100, em 1980 e 1981) apontavam fortemente para grupos militares e paramilitares.
Em 30 de junho o IPM (Inquérito policial-militar) concluía que os dois militares haviam sofrido um atentado, conclusão que já chegou à imprensa desmoralizada, por obviamente contrária a todos os indícios e pistas seguidos por representantes da sociedade civil. O caso foi inicialmente arquivado, com amplas declarações dos envolvidos de que esta seria a melhor saída, para não colocar em risco as eleições programadas para o ano seguinte.
Nos anos 1990 novas informações vieram a tona, com antigos militares relatando participações em grupos que organizavam atentados terroristas dentro das forças armadas ou que haviam testemunhado colegas que o faziam. Em fins de 1998, os deputados federais membros da Comissão de Direitos Humanos da Câmara solicitaram a reabertura das investigações do caso Riocentro, e “em 15 de junho de 1999, 18 anos depois da explosão da bomba, e na sexta tentativa de reabrir o caso, o procurador-geral da Justiça Militar, Kleber de Carvalho Coelho, após ler o IPM e coletar 11 depoimentos, pediu a abertura de um novo inquérito policial militar. Seu pedido baseou-se na existência de novas provas que deveriam ser investigadas e de discrepância entre as perícias realizadas e o relatório apresentado um mês depois da explosão. Peritos do Exército e da polícia técnica do Rio relataram, em depoimento, que tinham sido pressionados pelo coronel Job Lorena de Santana, encarregado do primeiro IPM, a mudar seus laudos.”(Kushnir, verbete temático CPDOC) Entre versões que apontavam para a atuação de grupos de baixo escalão do exército e outras que afirmavam se tratar de uma queima de arquivo ordenada por oficiais de alta patente e responsáveis por vários atentados na época, o que se pode ter certeza é que o ato de terrorismo partiu de dentro do exército e objetivava desestabilizar o processo democrático.
Até hoje o atentado desperta polêmicas e mobiliza o sistema judiciário, que há alguns anos se vê debatendo se o crime é prescritível ou não, posto que pode configurar um crime contra a humanidade. No Arquivo Nacional, vários fundos apresentam documentação sobre o caso (CNV, SNI, DSI-MJ, Estado Maior das Forças Armadas) e outros são fontes potenciais de investigação (DOPS, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Divisão de Inteligência do Departamento de Polícia Federal, Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, Conselho de Segurança Nacional, Gabinete Pessoal do Presidente da República).
As fotografias utilizadas na matéria pertencem ao fundo Agência Nacional, dossiê BR RJANRIO EH.0.FOT, EXE.966: I Exército expõe sobre Inquérito Policial Militar (IPM) das ocorrências do Riocentro, no Palácio Duque de Caxias, Rio de Janeiro, RJ em 30 de junho de 1981.
O documento do SNI é um informe sobre o discurso do deputado Marcus Cunha no Congresso Nacional, criticando o posicionamento oficial em relação ao atentado no Riocentro, em 19 de maio de 1981. BR DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.81015578 (CLIQUE NA IMAGEM PARA ACESSAR O DOCUMENTO COMPLETO)
A cópia da Denúncia do Mistério Público Federal do Atentado Riocentro entregue por Rosa Maria Cardoso da Cunha. Processo do Ministério Público Federal aberto contra Wilson Luiz Chaves Machado - vulgo "Dr. Marcos"; Claudio Antonio Guerra; Nilton de Albuquerque Cerqueira; Newton Araujo de Oliveira e Cruz; Edson de Sá Rocha; e Divany Carvalho Barros - vulgo "Dr. Aureo". O MPF denuncia os diversos crimes que circusntanciaram o Atentado do Riocentro. Processo é cópia do que foi entregue para a Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro é o dossiê BR RJANRIO CNV.0.ERE.00092000295201446 do fundo Comissão Nacional da Verdade. CLIQUE NA IMAGEM PARA ACESSAR O DOCUMENTO COMPLETO
Leitura recomendada
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/riocentro-atentado-do
Rezende, L. P., & Schwether, N. D. (2015). Terrorismo: a contínua busca por uma definição. Revista brasileira de estudos de defesa, 2(1).
Sallum Junior, Brasílio. (1994). Transição política e crise de estado. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, (32), 133-167. https://doi.org/10.1590/S0102-64451994000100008