Casos de jovens que se suicidam em função do implacável assédio em relação a sua aparência vêm ganhando uma triste notoriedade nos últimos anos Embora questões relativas a distorção da imagem corporal e a não conformidade com padrões estéticos veiculados pela mídia (eletrônica e digital) tenham adquirido proporções inéditas na era das redes sociais e da superexposição da imagem, as mulheres sofrem há muito tempo com a imposição de modelos de beleza. Tais padrões existem em inúmeras sociedades, atingindo homens e mulheres, mas eles em geral tendem a ser muito mais impositivos para elas. Na sociedade contemporânea, padrões irreais criados por manipulação digital, procedimentos em consultórios e dietas muitas vezes nocivas à saúde transformam meninas em reféns dos seus próprios corpos.
Subjacente à pressão sobre os corpos, percebe-se uma intensa pressão sobre os comportamentos: o que faz uma mulher ser mulher. Ou, pelo menos, uma mulher “respeitável.” Fora de determinados padrões, ela pode acabar sendo vista como descartável, indefensável, indesejável. Be a lady, they said _ disse Camille Rainville na voz da atriz Cynthia Nixon. Em bom português, “seja uma dama, eles disseram”.
A quem servem esses padrões de beleza e comportamento? As mulheres eternamente jovens, magras, com pele de porcelana, perfumadas, bem cuidadas, sempre sorridentes e jamais mal-humoradas, inteligentes mas nunca brilhantes, silenciosas, bem vestidas, companheiras, admiradoras dos grandes feitos masculinos, modestas, amorosas, caseiras, pacientes, divertidas, gratas?
A (boa) aparência física feminina constitui um aspecto fundamental da identidade das mulheres na sociedade contemporânea, um fenômeno nada novo mas cada vez mais evidenciado, debatido e questionado. Em outras sociedades sexistas (mesmo as modernas nações europeias em que as noções de igualdade de gênero são mais explícitas e defendidas por um arcabouço jurídico-político robusto há a disseminada presença da desigualdade entre homens e mulheres) traços como fertilidade e berço familiar apresentam-se como uma vantagem maior do que a beleza, mas na cultura ocidental contemporânea (em um sentido amplo) a beleza física se impõe como elemento central na formação da identidade das mulheres e na forma como elas são vistas e julgadas pelos outros: não apenas por potenciais parceiros, mas por amigos, rivais, familiares.
Durante séculos a preocupação com a aparência vem sendo considerada primordialmente “coisa de mulher,” noção dominante no senso comum que traz em seu bojo uma caracterização do feminino como tipicamente frívolo, superficial. Preocupação internalizada ao longo de muito tempo de educação doméstica orientada por modelos estritos de beleza e comportamento aceitáveis para as mulheres, a busca pela perfeição estética atualmente alimenta um mercado de produtos e serviços de bilhões de dólares, que tem como consequência, inclusive, a exclusão automática de mulheres desprovidas de recursos para "tornarem-se belas."
Para além da imposição de padrões estéticos e de comportamento, percebe-se que a intensa preocupação com a aparência física e com o comportamento público incutida nas meninas desde a mais tenra infância (desde que começam a falar e a andar) desempenha um papel fundamental na construção de uma identidade feminina que é, antes de tudo, voltada para a aceitação e aprovação externas.
Questionar, enfrentar e problematizar a vinculação naturalizada entre mulher e beleza faz parte da pauta do movimento feminista e há algum tempo. A busca por padrões variados de beleza que permitem que as mulheres se aceitem como são e como desejam ser (diferentes pesos, cores, idades, cabelos) vem sendo vista como um caminho de libertação da opinião alheia e principalmente, masculina. Ademais, a intensa pressão acerca da aparência tende a objetificar as mulheres tanto no universo da propaganda e da indústria cultural quanto na vida real, em que elas são percebidas como indivíduos desprovidos de subjetividade e limitadas à satisfação dos desejos masculinos. Esta pressão por padrões midiáticos de beleza incentiva uma busca interminável e, portanto, frustrante, por uma imagem impossível. Questões de classe também emergem dessa discussão: quanto mais a beleza é comprada em consultórios, academias, lojas e clínicas, mais distante das mulheres pobres ela fica, criando mais um fator de distanciamento e de frustração em uma classe social oprimida pelas privações materiais.
A organização do movimento feminista brasileiro ganhou novo impulso a partir da década de 1970, quando alguns movimentos sociais passaram a se organizar em torno da luta pelo fim da ditadura e pela anistia. Em especial a partir dos anos 1980, discussões em torno das várias faces da violência de gênero (e sua origem insidiosa), das condições precárias das mulheres de classe social mais baixa que sequer conheciam métodos contraceptivos, da presença feminina nas fábricas e da necessidade de integrá-las ao movimento sindical, da situação das mulheres negras que enfrentam o racismo além do machismo integraram a pauta dos diversos feminismos. São questões que ao longo das décadas ganharam cada vez mais visibilidade e deixaram de ser pontos de debate e palavras de ordem limitados a um movimento institucionalizado para ganhar as ruas e redes do século XXI.
Os documentos aqui apresentados integram o jornal feminista Mulherio, editado no início da década de 1980. Fundo Sistema Nacional de Informação: br_dfanbsb_v8_mic_gnc_aaa_81018229; br_dfanbsb_v8_mic_gnc_eee_88020260_an_02_d0001de0001, br_dfanbsb_v8_mic_gnc_eee_88020260_an_02_d0001de0001. Fundo Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino:br_rjanrio_q0_adm_eor_cdi_poi_0045_d0001de0001
Recomendação de leitura:
de Freitas, R. S. G., Albano, R. D., & da Cunha, D. T. (2016). À sombra do estereótipo de beleza: qualidade de vida e fatores associados em mulheres. DEMETRA: Alimentação, Nutrição & Saúde, 11(Supl.), 1367-1383.
Gonçalves, E. (2016). Renovar, inovar, rejuvenescer: processos de transmissão, formação e permanência no feminismo brasileiro entre 1980-2010. Revista Brasileira de Sociologia, 4(7), 341-370.
Sarti, C. A. (2004). O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória. Revista Estudos Feministas, 12, 35-50.