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O Brasil ingressou na era republicana de forma enviesada, em 1889: resultado de um golpe militar que alienou os civis do poder executivo durante seus primeiros anos, a República brasileira nasceu sob os auspícios do positivismo europeu, e sua proclamação arrastou consigo um inexpressivo Partido Republicano na implantação de um regime de governo ainda desconhecido, na prática, da maioria dos brasileiros. Essa inconsistência de origem resultaria em uma grande dificuldade para integrar o povo brasileiro ao processo político, acentuando o fosso existente entre a população em geral e as classes dirigentes.

Em 1894 um civil ocupou pela primeira vez a presidência da República, depois dos dois mandatos curtos dos militares Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, ambos marcados por rebeliões, disputas dentro das forças armadas, autoritarismo. O paulista Prudente de Moraes, eleito em março daquele ano, foi o primeiro representante direto das elites do café daquele estado, alçado ao poder a despeito de manobras do seu antecessor para tentar permanecer no cargo. Para um regime ainda carente de legitimidade e enfrentando questões internas que desafiavam sua estabilidade, qualquer distúrbio ou insurgência popular poderia ganhar as cores de uma rebelião antirrepublicana aos olhos do governo.

Em 1896, um povoado improvisado no sertão da Bahia humilhava forças federais enviadas para conter um suposto movimento religioso e monárquico cujo fanatismo ameaçava as instituições republicanas e o poder econômico local, colocando em xeque a competência do governo civil em manter forças populares sob controle. Depois de anos vivendo como andarilho, Antônio Conselheiro e um grupo de fiéis resolvem se fixar às margens do rio Vaza Barris, interior da Bahia. Seu discurso em defesa da Igreja e da Monarquia, o posicionamento isolacionista e autônomo do povoado fundado por esse grupo, que viria a ser conhecido por Canudos, atingiram o orgulho da recém-república, insuflado também por rivalidades políticas locais. A história trágica de Canudos foi narrada por Euclides da Cunha, jornalista enviado pelo Estado de São Paulo para cobrir o ocorrido.

 A Guerra de Canudos foi possivelmente o primeiro conflito no Brasil que atraiu a presença de correspondentes dos jornais, algo que só foi possível devido a profissionalização do jornalismo e principalmente, ao avanço das tecnologias de comunicação e transporte, que permitiam que jornalistas cobrissem o evento de perto e ainda assim conseguissem manter um fluxo de notícias constante. Durante a maior parte do conflito, o tom dado pela imprensa era praticamente unânime, e acompanhava o discurso higienista e positivista defendido com afinco pela elite letrada do nosso país. Este discurso, de teor também racista, enfatizava a necessidade de purgar a sociedade brasileira dos resquícios de um passado supostamente obscurantista e atrasado, carregado de mestiçagem e misticismo. Segundo essa lógica, marcada pelo darwinismo social, as tradições populares e rurais, o “fanatismo” religioso, as velhas superstições, o improviso, tudo o que não coadunasse com uma modernidade eurocêntrica, urbana e republicana representaria um obstáculo para a evolução do Brasil.

O uso intenso deste discurso, disseminado em discursos nas câmaras locais e nas arenas políticas, assim como pelos jornais, que à época eram ainda lidos em voz alta em praça pública, criava um distanciamento e também aversão em relação a Antônio Conselheiro e seus seguidores. As palavras jagunço e fanático(s)/ fanatismo eram as mais utilizadas nas reportagens acerca do povoado e dos embates que se sucediam. Com o tempo, os sertanejos foram transformados em loucos varridos afeitos a violência, esperando apenas o momento certo para atacar as cidades do interior da Bahia e quiçá de outros Estados – o que jamais sequer chegou perto de acontecer. O que de fato aconteceu, em outubro de 1897, foi o completo massacre do povoado, em que viviam pessoas de várias idades, de crianças de colo a idosos e suas famílias. Poucos foram os que sobreviveram tanto aos combates quanto às atrocidades do exército, que degolou a sangue frio um número indefinido de pessoas. Esta desconcertante e macabra “vitória” foi entregue à opinião pública como uma necessidade, uma inevitabilidade, um mal que deveria ser realizado para exterminar um mal ainda maior. Depois de pintados com as cores do fanatismo e do bandidismo, os sertanejos de Canudos tiveram seu massacre legitimado por um discurso que os aproximava de abominações sem solução.

Se o posicionamento inicial dos jornalistas caracterizava-se pela anuência em relação às instruções e limitações impostas pelo exército, e pela aceitação do discurso predominante na época com o decorrer dos acontecimentos parte dos jornalistas e de outras pessoas enviadas ao cenário com funções outras que não o combate (p. ex., médicos) começa a perceber os horrores cometidos pelo exército contra uma população andrajosa que lhes parecia cada vez mais digna de pena do que de ódio. A obra prima de Euclides da Cunha Os Sertões encerra sua longa narrativa deixando na mente do leitor a impressão de que, por mais atrasados que fossem, os sertanejos jamais fizeram por merecer o medo que inspiraram, o massacre que os exterminou. Outros exemplos de autores contemporâneos que trouxeram para nós visões de um massacre que de outra forma não teriam sobrevivido são Manuel Benício (correspondente do Jornal do Commercio), Martins Horcades (estudante de medicina), Afonso Arinos (cronista do jornal O Commercio de São Paulo).

Contudo, a tendência a se exacerbar o primitivismo e fanatismo de Antônio Conselheiro e seus seguidores sempre sobrepujou as iniciativas de denúncia não apenas em relação ao desfecho sangrento e desnecessário do conflito, mas também de todo o discurso racista e intolerante que permitiu que seres humanos excluídos socialmente virtualmente perdessem sua humanidade a ponto de terem se tornado “extermináveis”. Pouco mais de 20 anos depois, as páginas do periódico A Bahia Ilustrada trazem fotos não identificadas (possivelmente de Flávio de Barros, fotógrafo junto ao exército) da campanha de Canudos, junto a um texto que vilaniza os sertanejos utilizando exatamente as mesmas palavras consagradas no final do século XIX: jagunços, fanáticos...

Bahia Ilustrada J406. Ano: 1919 – biblioteca do Arquivo Nacional

 

Leitura recomendada:

Arinos, Afonso. História de Antônio Conselheiro - Campanha de Canudos. Belém: Casa Editora de Francisco Lopes, 1940. Primeira edição de 1898.

Bartelt, D. D. Sertão, República e Nação. São Paulo: Ed. USP, 2009.

Filho, Joaquim Antonio de Novais e Silva, Edvania Gomes. A imprensa baiana e a Campanha de Canudos (1896-1897). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.

Horcades, Alvim Martins. Descrição de uma viagem a Canudos 2 ed. Salvador: EDUFBA, 1996. Primeira edição de 1899.

Lima, N. T. Hochman. Condenado pela raça, absolvido pela medicina:o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da primeira república. In: Marco Chor Maio, Ricardo Ventura Santos

(Org.). Raça, ciência e sociedade.Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB,1996.

Lima, Lidiana Santos. A Campanha de Canudos nos Jornais. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação: XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Rio de Janeiro, setembro de 2005

Pinheiro, Lidiane. Canudos, um acontecimento jornalístico.Anais do 8º Encontro Nacionais de História da Mídia. Guarapuava, 2008.

Ribeiro, Esther Sanches. A guerra de Canudos na Imprensa e na literatura: ideologia e cientificismo. Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 1, n. 2 - 2013. Salvador, 2013.

Sampaio, Consuelo Novais. Canudos: cartas para o Barão. São Paulo: USP, 2001.

 

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