De soldados da borracha a heróis anônimos:
inscrição, recrutamento, encaminhamento e marcha de seringueiros
Wanderlene de Freitas Souza Barros - pesquisadora em história
O Estado Novo teve como maior aliado de Vargas a propaganda. A presença maciça em periódicos, programas de rádio e cartazes, para além de seus próprios discursos o colocavam como “pai dos pobres” e “mãe dos ricos”, sempre marcado por uma estratégia de governo que oscilava entre a garantia de anseios dos proletários e as premissas capitalistas. Nas relações internacionais manteve-se neutro até eclodir a 2a Guerra Mundial, momento em que dois blocos militares, formados por potências mundiais, além do envolvimento de outras nações enfrentavam-se em frentes de batalha. O bloco denominado “Eixo” - composto por Alemanha, Itália e Japão -, se opunha ao bloco conhecido por “Aliados”, que agregava Polônia, França e Inglaterra – seguidos da adesão oficial da União da Repúblicas Sociais Soviéticas (URSS) e dos Estados Unidos da América (EUA), em 1941.
O Eixo passou a controlar a comercialização nos países Asiáticos, principalmente no tocante a matéria prima borracha; em contrapartida, os Aliados viam no Brasil a oportunidade de abastecimento de látex. Assim, aos poucos Vargas começou a ceder à “pressão” norte-americana por um posicionamento, tendo em vista as oportunidades comerciais oferecidas, posicionamento que também foi consequência dos ataques aos navios mercantes, no nordeste brasileiro, por submarinos alemães. O interesse norte-americano espraiava-se na produção de borracha em países latino-americanos e no continente africano objetivando o abastecimento da indústria bélica, resultando no aumento da sua produção, a ponto de suprir as necessidades militares daquele país. Diante de reuniões diplomáticas entre os dois países, Brasil e Estados Unidos ajustaram-se mutuamente em benefícios e interesses imediatos. Vargas buscou solucionar um problema social e territorial pré-existente com o programa denominado “Marcha para o Oeste”, cujo objetivo era deslocar uma massa populacional para espaços menos povoados do Brasil, como a Amazônia, e assim amenizar um problema iminente.
Findas as tratativas entre os presidentes Franklin Delano Roosevelt (EUA) e Getúlio Dornelles Vargas (Brasil) entram em prática os Acordos de Washington. A Rubber Development Corporation (RDC), criada por Roosevelt em 1940, mesmo antes de ser a financiadora dos projetos ligados aos Acordos de Washington, já despontava com o objetivo de estocar matéria-prima e incentivar a organização de seringais no Oriente. Em 3 de março de 1942 foi firmado o acordo em que o Brasil forneceria determinadas matérias primas aos Estados Unidos, o que abriu espaço para uma série de acordos subsequentes em prol da extração e exportação do látex. O Decreto-Lei nº 4.523, de 25 de julho de 1942, criou a Comissão de Controle dos Acordos de Washington; e em 24 de dezembro de 1942 foi editado o Decreto-Lei N.5.134, que apresentou a disposição do funcionamento dos Acordos de Washington. Entre os órgãos criados para o andamento do acordo destaca-se o SEMTA – Serviço de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, criado pelo Decreto-lei no 4750 de 12 de maio de 1943.
Naquele momento os olhos se voltaram para a Amazônia, onde suprimentos necessários ao esforço de guerra, como minério e borracha, poderiam ser encontrados. No entanto, a região apresentava dificuldades próprias para obter a larga produção de borracha requisitada. As necessidades para as mínimas condições de trabalho e escoamento da matéria prima eram muitas, e dentre elas podemos citar: garantia de alimentação, acesso a serviços de saúde e medicamentos, transporte e, principalmente, a quantidade de braços necessários para alavancar uma grande produção. O governo brasileiro aceitou o desafio do deslocamento massivo de trabalhadores com os auspiciosos recursos financeiros oferecidos pelos norte-americanos, iniciando uma campanha migratória patriótica, apesar do fracasso das ações para migrações de nordestinos em anos anteriores (1879 e 1912). A viagem começava em caminhões, mas a partir de Belém o meio de transporte para subir o rio era o fluvial; nos relatos dos seringueiros esse era um dos caminhos mais tensos devido ataque aos navios brasileiros pelos alemães.
O interventor do Amazonas, governador Álvaro Botelho Maia, manteve-se determinado a contribuir para o êxito da empreitada, e a recuperar a economia amazônica frente às insistentes crises, acompanhando de perto a chegada dos trabalhadores a partir de Manaus e a distribuição desses homens nos seringais, entre outras atribuições. A convocação de brasileiros, maciçamente de nordestinos, trouxe trabalhadores com ou sem suas respectivas famílias, estimulados pela promessa de retorno e enriquecimento. Em um de seus discursos Vargas colocou em pauta a sugestão de que a Amazonia era para os nordestinos e que sua exploração se tratava de um esforço de guerra. Em grande medida, os apelos da guerra despertaram o sentimento patriótico, independentemente das condições financeiras. Com otimismo e fé eles se tornaram os “soldados da borracha”.
Esse batalhão de trabalhadores foi considerado como uma das maiores mobilizações de mão de obra do Brasil para a extração de borracha, tendo em vista a quantidade de toneladas esperada pelos norte-americanos - algo aproximadamente em torno de 25 mil toneladas/ano. Convocados como soldados, esses homens ficaram divididos entre duas opções: a ida para o front de batalha na Itália ou a extração de látex na selva Amazônica. A grande maioria optou pela segunda oferta, pois aparentemente a melhora de vida podia ser visualizada e sonhada através dos cartazes chamativos espalhados em cada canto das cidades. O atrativo maior estava em promessas de auxílio e acolhimento aos familiares desses homens no lugar de origem.
É certo que não se pode atribuir a migração maciça dos nordestinos exclusivamente à seca, mesmo sendo uma das causas. Trata-se de questões diversas que atraíam esses homens como: a teia de sociabilidade entre seus pares, a chamada de parentes do norte, o espírito aventureiro, situação de fuga, a própria necessidade e uma alternativa à FEB – Força Expedicionária Brasileira – que os levaria direto aos fronts.
O artista plástico franco-suíço Jean Pierre Chabloz retratou em imagens tudo aquilo que os soldados da borracha gostariam de encontrar. Na composição de seu projeto de propaganda ele conseguiu transformar as péssimas experiências anteriores na Selva Amazônica em um lugar rural, fértil, seguro, com um espaço de terra para cada homem que ali chegasse. Os cartazes complementavam os discursos patrióticos com frases de incentivo do tipo “Vida nova na Amazônia”. Uma série de documentos ilustrativos do período foram coletados pelo artista, e se encontram hoje no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC) no arquivo intitulado Jean Pierre Chabloz.
Certos de suas escolhas esses trabalhadores, com as mais diversas profissões, passaram por processos militares de “alistamento” e “recrutamento”, que seriam o marco para seguir rumo à Amazônia. Segundo relatórios de seleção esses homens vinham de Sobral, Iguatu, Parnaíba, Limoeiro, Crato, São Luís, Teresina, entre outros; à parte do Nordeste, o Rio de Janeiro é um dos municípios citados como origem, porém o mais comum eram trabalhadores de cidades nos arredores do ponto de embarque - Fortaleza. Os pousos eram estruturados em lugares mais afastados, em uma espécie de campo de concentração, distante dos olhos dos fortelezenses; o batalhão de homens só chegava a Fortaleza no momento do embarque. Já os pontos de recepção seriam as cidades de Belém e Manaus. A equipe de saúde do SEMTA fazia uma avaliação minuciosa selecionando e buscando controlar as endemias nos pousos. Mas havia aqueles que por algum motivo desistiam ou eram dispensados, e assim voltavam ao lugar de origem ou ficavam pelo caminho.
Embora a convocação seguisse os moldes militares, o SEMTA celebrava um contrato que na teoria vinculava uma relação de trabalho. No primeiro parágrafo após a identificação do trabalhador constava que este ajustava com o SEMTA um contrato com a finalidade de prestação de serviços no Vale Amazônico, na extração e produção de borracha. O mesmo contrato estabelecia um kit básico para acompanhar o trabalhador, sendo aquele composto de: duas calças e um blusão, um par de alpercatas, uma rede, uma mochila, uma caneca, um prato fundo e um talher. A alimentação no pouso era parte do programa que se baseava em três refeições diárias, cuja relação constava itens como: açúcar, arroz, azeite, banha, café, carne verde, farinha, manteiga, pão, frutas, verduras. Cardápio este que não funcionava a contento, seja pela falta de armazenamento correto ou pela ausência de produtos na localidade.
O contrato de encaminhamento do SEMTA, em tese, estava vinculado a um segundo contrato, estabelecido diretamente com os empresários que exploravam os seringais, seguindo a legislação trabalhista de então – o que acabou não se concretizando. Isso demonstra que existia um vácuo entre o que foi proposto nos termos do acordo e o que realmente aconteceu na prática, em que os trabalhadores praticamente eram sujeitos ao trabalho “compulsório” e permaneciam isolados do mundo
Os médicos, participantes-chave de todo processo do SEMTA, atuantes nos espaços de trabalho, evitaram danos maiores ao fazer a seleção de encaminhamento. Eles recrutavam, contabilizavam custos para melhores condições dos migrantes, viajavam entre as cidades, muitas vezes, desempenhando mais o papel de selecionador em detrimento das avaliações médicas, prescrições e tratamentos. E assim, de acordo com a circular destinada aos médicos selecionadores, os pretensos soldados da borracha eram classificados como: “aptos”, “inaptos”, “recuperáveis” ou “recusados temporariamente”. Mesmo no âmbito do pouso ocorreram pequenos surtos, como o de sarampo, que teriam que ser rapidamente controlados. No decorrer do processo, já na Amazônia, os homens adoentados e subnutridos chegavam à assistência médica reclamando de maus tratos e péssimas condições. As queixas não eram bem-vistas nos seringais; desta forma, muitos fugiam após ameaças de morte. Naquele momento era evidente o descaso e falta de fiscalização do governo diante da violação de direitos básicos de cidadãos brasileiros.
A portaria no 162 de 30 de novembro de 1943 extingue o SEMTA, passando as atribuições para a Comissão Administrativa de encaminhamento de trabalhadores para a Amazônia (CAETA). Passou o SEMTA em seu período mais intenso nas mãos de Paulo de Assis Ribeiro – engenheiro e geógrafo, que conduziu em torno de 50 mil homens para a Amazônia, das mais diversas formas (trens, ônibus, caminhões, navios). Contou com a significativa contribuição do dr José Lins de Souza, que chefiou uma equipe de mais de 28 médicos. No Arquivo Nacional uma doação da viúva de Paulo de Assis Ribeiro em 1974 deu origem ao fundo que leva seu nome. As pastas enumeradas são compostas por descrições e planos sobre o desenvolvimento e ocupação da Amazônia; cartas, telegramas, credenciais, ofícios, circulares, modelos de fichas para o exame médico, relatórios feitos por médicos e nutricionistas, cardápios, tabelas e gráficos nutricionais, declarações, cópia de acordos, a portaria de criação e extinção do SEMTA e mesmo o depoimento do ex-chefe do SEMTA para a CPI da Borracha.
Todos souberam sobre o final da 2a Guerra e com muita comemoração receberam os soldados que retornaram da Europa. Os militares chegaram com honras e condecorações. E o que aconteceu com os soldados da borracha?! O batalhão de homens nos seringais que dobrou a quantidade de soldados enviados para a guerra foram desumanamente esquecidos no meio da floresta Amazônica, sem informações, sem retorno a sua terra, adoentados e sem as garantias oferecidas. Em 2014, foi implantada uma Comissão Parlamentar de Inquérito dos “soldados da borracha” em busca dos direitos e garantias mínimas e merecidas, e contra as promessas não-cumpridas e o descaso do governo da época.
Referências:
https://www.gov.br/arquivonacional/pt-br
http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/68494
BARROS, Wanderlene de Freitas Souza; MOURA, Anderson Vieira (org.). ENTRE O AUTORITARISMO E A MODERNIZAÇÃO: VARGAS E A AMAZÔNIA. Curitiba: Crv, 2022. 166 p.
COSTA, Francisco Pereira. SOLDADOS DA BORRACHA: IMIGRAÇÃO, TRABALHO E JUSTIÇAS NA AMAZÔNIA, 1940-1945. São Paulo: Biblioteca 24 Horas, 2015. 462 p.