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Thiago Mourelle - doutor em História, pesquisador do Arquivo Nacional

O governo democrático de Getúlio, entre janeiro de 1951 e agosto de 1954, apesar de ter deixado marcas importantes na história do Brasil, como a criação da Petrobrás, pode ser definido como um fracasso no combate à carestia, à crise econômica e igualmente na administração da política nacional. Os   problemas enfrentados por Vargas para além da crise de agosto de 1954. Afinal, como foi seu último governo, o único em que assumiu eleito pelo povo?

O período Vargas, iniciado em 1930, marcou, segundo a historiadora Maria do Carmo Campello de Souza, a passagem da política de ‘notáveis’ para a política de massas. Houve a evolução dos partidos meramente representativos da classe dominante e dos estratos altos da sociedade para as grandes organizações partidárias fundadas em interesses socioeconômicos. Partidos locais deram lugar a partidos nacionais.

A viabilidade da aliança do Partido Social Democrático (PSD) com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), durante os anos 1940 e 1950, repousava nos ganhos que reciprocamente se asseguravam em termos de controle da máquina burocrática do Estado. No Congresso Nacional e nos embates ideológicos era frequente a discordância entre ambos. O que isso quer dizer? Que Vargas, do PTB, não teria a boa vontade “gratuita” do PSD, precisando negociar em troca de apoio.

Por outro lado, apesar das dificuldades, o ponto positivo para Vargas era a esperança que permeava sua volta. O ambiente nas ruas era de expectativa por dias melhores. Isso porque o governo Dutra havia falhado economicamente e no desenvolvimento social. Segundo o brasilianista Richard Bourne, quando Vargas estava por assumir, a economia não ia bem e não restava praticamente nada da reserva de moeda estrangeira acumulada no período da guerra.

A tentativa fracassada de um governo de conciliação

Na primeira entrevista após a posse, Vargas buscou se utilizar de uma velha tática: usar o anticomunismo, agora em tempos de Guerra Fria, para tentar unir partidos e população em torno de si. Disse, entusiasmado, que só pela “união de todas as forças políticas” seria possível conter o comunismo.

Segundo outro brasilianista, John Dulles, o presidente procurou organizar um governo de coalizão. A maioria dos ministérios foi entregue ao PSD, para garantir seu apoio, já que era o maior partido do Congresso. Para o PTB, dos ministérios de grande destaque, restou apenas o do Trabalho, nas mãos de Danton Coelho. De qualquer forma, como salienta a historiadora Maria Celina D’Araújo, Vargas tinha um cunho muito pessoal de governo, apoiando-se em pessoas e não em partidos.

Até a oposição foi cortejada. Mas a União Democrática Nacional (UDN) rejeitou enfaticamente a ideia de “governo de conciliação”. Do partido, apenas o pernambucano João Cleofas aceitou o aceno de Vargas e foi para a pasta da Agricultura. O maior inimigo do presidente, dentre seus vários combatentes, seria Carlos Lacerda, que fazia barulho quase diariamente ao apontar supostas irregularidades ou erros cometidos pelo governo.

Outro grupo buscado por Vargas foram as Forças Armadas. No Ministério da Guerra entrou Newton Estilac Leal, mal visto pelos militares de direita, que o acusavam de manter conversas e dar ouvidos a “esquerdistas”. Assim, começou ruim uma relação que foi só piorando ao longo do mandato. A má vontade dos militares com o governo só cresceu entre 1951 e 1954.

As diferentes fases do governo

Richard Bourne divide o mandato de Vargas em três momentos:

1)o primeiro, de uma política anti-inflacionária com tentativa de controle dos preços e busca por auxílio financeiro com os EUA, que termina em fracasso no primeiro semestre de 1953, quando o governo se vê isolado e recebendo críticas de grupos variados: sindicatos, nacionalistas de esquerda que lutavam pela nacionalização do petróleo e investidores norte-americanos... Estavam todos descontentes com a política governamental.

2) o segundo, em junho-julho de 1953, quando Vargas tentou ganhar fôlego com uma ampla reforma ministerial, trazendo de volta Oswaldo Aranha (agora para o Ministério da Fazenda), José Américo (para os Transportes), Vicente Ráo (para as Relações Exteriores). Fez ainda um aceno ao trabalhismo com a indicação de João Goulart (Jango) para o Ministério do Trabalho. Essa fase, de aproximação com questões nacionalistas e trabalhistas, teria ido até fevereiro de 1954, quando os militares divulgam um abaixo-assinado com críticas ao governo que termina com a demissão de Goulart.

Maria Celina discorda da tese de “guinada à esquerda” e mostra que a mesma reforma que trouxe Jango, também manteve o udenista Cleofas, trouxe José Américo, da UDN, e outros simpatizantes desse partido, como Oswaldo Aranha e Vicente Ráo. A reforma teria sido, então, mais uma tentativa falha de conciliação.

3) o terceiro teria sido o aprofundamento da crise, até o auge em agosto, que terminou com o suicídio do presidente.

Já em 1951 o governo enviou ao Congresso o projeto da Petrobrás e uma mensagem, conforme vemos neste vídeo. A ideia seria monopolizar a extração, embora as refinarias ainda pudessem continuar nas mãos da iniciativa privada.

Bourne afirma que a campanha da Petrobrás se tornou dominante na vida pública em 1952 e 1953 – o projeto se tornou lei em outubro de 1953. Ao longo do extenso debate sobre a estatal, o presidente enviou diversos recados – como este bilhete – ao líder do governo na Câmara, Gustavo Capanema, a fim de mantê-lo atento às manobras da oposição. Para minar seus adversários, usando da sabedoria que acumulou nos 15 anos que havia presidido o país, Vargas chamou Juraci Magalhães, um dos fundadores da UDN, para ser o primeiro presidente da empresa.

Bourne destaca ainda o caso da Eletrobrás, tema ignorado por Vargas na ditadura (1937-45), mas enfrentado no segundo governo – o projeto avançou, embora a empresa tenha sido criada apenas no governo Goulart, alguns anos depois – e critica o fato de o presidente não ter dado o foco necessário à reforma agrária, apesar de ter prometido progredir no tema durante a campanha eleitoral. A manutenção de Cleofas, da UDN, na Agricultura (onde permaneceu quase todo o governo de Getúlio), não era um bom indicador de prioridade a este assunto, tabu entre os conservadores brasileiros.

A relação com os EUA e as dificuldades econômicas

A relação com o capital estrangeiro também era conflituosa. Adepto do desenvolvimento nacional independente e a favor das estatais e da participação ativa do Estado na economia, Vargas repetia que não era contra, mas um entusiasta dos investimentos estrangeiros, em especial dos norte-americanos. Porém, apenas frisava que eles não deveriam afetar o domínio nacional em setores estratégicos da economia, como na questão energética.

Após afagos aos investidores estrangeiros na campanha e no primeiro ano de governo, em 1952 Vargas já começou a criticá-los publicamente, julgando-os nocivos ao Brasil. Discurso que, por um lado, lhe assegurou um aceno aos nacionalistas, mas por outro lado afastou a entrada de divisas no país.

Neste bilhete, Vargas anota, nos primeiros dias de governo, sobre a necessidade de falar ao povo, entre outras coisas, sobre a luta pela melhoria das condições de vida e a necessidade em “denunciar os exploradores”. Já no 1º de maio de 1951, no estádio de São Januário, o presidente pediu para que os trabalhadores o ajudassem a “conter os exploradores, responsáveis pela elevação do custo de vida”. Mas não detalhou quem seriam esses. No discurso de final de ano, Vargas foi mais enfático e direto, dizendo que os investidores estrangeiros estavam “interessados em sugar o nosso patrimônio”, com o envio para o exterior de lucros excessivos.

Questões políticas entre Vargas e norte-americanos também estavam em pauta. Como, por exemplo, a longa negociação entre Brasil e EUA para o possível envio de tropas brasileiras para a Guerra da Coreia, o que acabou acordado mas não se efetivou na prática. Vargas queria benefícios econômicos em troca da participação brasileira, tal qual ocorreu na Segunda Guerra – para isso, esperava a concretização de decisões da Comissão Mista Brasil-EUA, que costurava acordos entre os países.

Embora o Brasil tenha se colocado o tempo todo na órbita norte-americana, mesmo com a oposição da ala mais radical do PTB e também dos comunistas, havia um conflito entre as ideias nacionalistas de Getúlio e a busca dos EUA pela inserção de suas empresas no mercado brasileiro. Talvez o ponto mais significativo e público dessa questão tenha sido a polêmica em torno do petróleo brasileiro, que era alvo de interesse de diversas empresas internacionais.

Enquanto isso, os acordos comerciais seguiam travados. O Eximbak, dos Estados Unidos, chegou a emprestar 300 milhões para o Brasil pagar credores norte-americanos, mas exigia que o Brasil colocasse as contas em ordem antes de um novo empréstimo. Isso fez com que os brasileiros se sentissem traídos e reclamassem que Eisenhower, que havia assumido o governo estadunidense em 1953, estivesse desrespeitando compromissos assumidos por Truman, seu antecessor.

Ao mesmo tempo, outro problema que emergia para Getúlio Vargas era o medo da direita e dos conservadores de uma possível aproximação entre ele e Perón. A relação do líder argentino com os trabalhadores daquele país, logicamente, chamava a atenção do presidente brasileiro, porém em termos econômicos a Argentina pouco tinha a oferecer e, no contexto da guerra fria, o Brasil estava, de fato, refém dos estadunidenses. Porém, o passado golpista de Getúlio e a ditadura personalista pautada no trabalhismo, construída no governo anterior, deixava uma sombra que trazia dúvidas aos seus opositores sobre se o caminho democrático seria respeitado pelo presidente brasileiro em seu novo governo.

O “pai” falha com os pobres: o aumento do custo de vida

A dificuldade em equalizar os problemas econômicos e obter investimentos estrangeiros, em especial dos Estados Unidos, deixava a economia à míngua e, consequentemente, os mais pobres em pior situação, afetando a popularidade do presidente.

Para se ter uma ideia da grande dimensão da crise, o custo de vida na capital da República, que na época era o Rio de Janeiro, aumentou cinco vezes entre 1940 e 1954. Entre 1950 e 1954, quase dobrou.  Só em 1952, subiu 23% em comparação com o ano anterior. Assim, com o passar dos anos, o apoio que Getúlio tinha da classe trabalhadora foi, cada vez mais, se enfraquecendo, o que não impediu que o governo continuasse investindo em eventos como o Dia do Trabalhador, tal qual fazia no seu governo anterior, buscando o contato popular. Na imagem abaixo, Vargas entrega a medalha ao jogador Nilton Santos, nas comemorações do 1º de maio de 1952, no estádio São Januário, pelo título panamericano conquistado à época.

Em alguns momentos, chegaram a ocorrer saques a lojas na busca por comida. Entre março e abril de 1953 ocorreu em São Paulo a famosa Greve dos 300 mil, com centenas de milhares de trabalhadores cruzando os braços para exigir aumento salarial e ações concretas para o combate à pobreza. Por tudo isso, Maria Celina D’Araújo afirma que os trabalhadores não se tornaram “base de apoio eficaz” durante todo o governo, já que o descontentamento popular era grande.

Internamente, as más relações entre Horácio Láfer, Ministro da Fazenda, e Ricardo Jafet, presidente do Banco do Brasil, atrapalhavam uma ação unívoca do governo para melhorar a situação econômica. Lafer tentava combater a inflação, mas era prejudicado pela política de crédito de Jafet. Para a imprensa, tal fracasso era resultado da estratégia de Vargas em juntar personalidades e ideologias opostas no mesmo governo, tentando agradar a todos e conciliar.

Pouco tempo depois de assumir o Ministério do Trabalho, Jango acenou com a proposta de aumentar em 100% o salário-mínimo. A ideia era repor a enorme perda de poder aquisitivo do trabalhador após anos de inflação. Porém, de imediato iniciou-se um grande debate público. Nesse ínterim, vinte coronéis e sessenta e dois tenentes-coronéis assinaram um documento criticando o abandono do Exército pelo governo e criticando o Ministro do Trabalho, indicando que o aumento do mínimo seria uma ação meramente demagógica para recuperar popularidade.

A UDN tomou conhecimento do abaixo-assinado e deu voz à insatisfação, amplificando a crítica. João Goulart acabou deixando o ministério em fevereiro, mesmo assim Vargas bancou o aumento, no 1º de maio de 1954. Militares, classe média e oposição consideraram a atitude irresponsável, afetando o empresariado nacional, enquanto não eram resolvidos problemas maiores causadores da crise.

Para os trabalhadores, embora o reajuste tenha sido comemorado como uma atitude importante de um governo que fracassava nas políticas sociais, os três anos de decepções ainda pesavam. Ao reajuste do salário, seguiu-se o aumento da inflação.

Os militares: crescimento do anticomunismo e do americanismo

No meio militar, o anticomunismo e a posição pró-Estados Unidos cada vez mais se consolidavam, inclusive sendo diretrizes da Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em 1949. A ESG se alinhava com os norte-americanos na Guerra Fria e tinha grande influência sobre os militares de modo geral, que passaram a desconfiar das críticas do governo aos investidores estrangeiros e das posições alinhadas ao trabalhismo que o Palácio do Catete tomava, em especial a partir de 1953, nos oito meses em que João Goulart esteve na pasta do Trabalho.

Embora Estilac Leal tenha vencido as eleições do Clube Militar com uma chapa nacionalista, em 1950, enfrentou forte oposição dos derrotados. Zenóbio da Costa o acusou de fragilidade no combate ao comunismo e, em razão disso, entregou o cargo de comandante do exército da região do Rio no início de 1952. Leal acabou deixando o Ministério da Guerra e foi substituído por Espírito Santo Cardoso, que não conseguiu alinhar as Forças Armadas majoritariamente com Getúlio.

A renovação dos quadros militares fez emergir ao poder novos nomes com os quais Vargas não possuía a mesma relação que tinha com Góis Monteiro, Dutra e outros com quem pôde tratar pessoalmente na resolução de conflitos nos anos 1930 e 1940. Nas eleições de 1952 e 1954, chapas antivarguistas, alinhadas aos EUA e cada vez mais vinculadas ao pensamento da ESG, venceram as eleições para o Clube Militar em uma proporção de quase dois para um contra grupos alinhados ao presidente. Ouvia-se falar cada vez mais na chamada “Cruzada Democrática”, ação levada adiante por militares de direita e conservadores com o objetivo de expurgar o comunismo da instituição.

A ESG temia que Jango, na pasta do Trabalho, pudesse criar uma “república sindicalizada”, em razão da proximidade dele com os sindicatos. Além disso, como dissemos, temiam que o novo ministro estreitasse as relações com Perón. Assim, Jango foi imediatamente contestado antes mesmo de assumir o cargo e sua saída, oito meses depois, foi comemorada na caserna.

Corrupção dos que o cercavam: o ponto fraco de Vargas

Segundo Dulles, Vargas ignorava que alguns dos membros de seu círculo íntimo aproveitavam os vínculos com o governo para arranjar empréstimos no Banco do Brasil (BB). Em seu novo governo, dessa vez democrático e eleito pelo povo, sem mais poder se utilizar da censura do antigo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que lhe foi muito útil durante a ditadura do Estado Novo, Vargas teve que enfrentar a imprensa livre. E grande parte dela era crítica ao governo.

Diante disso, o jornalista Samuel Wainer convenceu Getúlio a dar o aval para a criação de um novo jornal, “A Última Hora”, que se posicionou sempre amplamente favorável ao governo. Wainer teria recebido crédito do BB e facilidades incomuns para a fundação do folhetim, que iniciou os trabalhos em 12 de junho de 1951, ainda no primeiro semestre do novo governo.

As críticas sofridas pelo presidente, logo de início, carregavam muita hostilidade às políticas trabalhistas, estatistas e de bem-estar social trazidas dos anos 1930 e 1940. John Dulles relata que, inicialmente, a oposição a Getúlio vinha de grupos de classe média ligados a empresas norte-americanas e internacionais.

A classe média temia o excesso de clientelismo e parentesco a que era atrelado o novo governo. E contestava as políticas sociais. E os mais pobres, apoiadores apaixonados de Getúlio, viram seu “amor” sendo cada vez mais minado devido ao aumento da inflação e do custo de vida. Logo, a desconfiança superou aquela esperança que havia no início de 1951.

Já os comunistas fizeram oposição a Vargas durante todo o governo. E é compreensível, devido ao alinhamento do Brasil com os EUA e às falas presidenciais anticomunistas já na posse. Assim, a extrema-esquerda não cessou de tentar apontar o governo como imperialista e à serviço dos EUA, confrontando a ala do PTB que tentava manter a popularidade do presidente e que teve na indicação de Goulart um alento entre junho de 1953 e fevereiro de 1954.

Por fim, foi um governo que fracassou na tentativa de conciliação, perdeu suas bases trabalhistas e que batia cabeça internamente, com rusgas entre seus membros, diferentes posições ideológicas internas e ações distintas entre ministros e outras autoridades na busca por soluções para os problemas do país.

Em 1953 e 1954, já com a popularidade em cheque, os escândalos de desvio de dinheiro por homens em cargos de confiança foram os maiores causadores de problemas ao governo. Cada vez mais foram ganhando força as acusações de corrupção e do mal uso dos recursos públicos. Por exemplo, Gregório Fortunato, chefe da Guarda Pessoal do presidente, usava de tráfico de influência. Cobrava para que pessoas tivessem acesso ao presidente. Havia rumores de que ele tinha, inclusive, relações com o Jogo do Bicho.

Diante da situação econômica ruim e da queda de popularidade, a oposição forçou um pedido de impeachment, em junho de 1954, a quatro meses das eleições que elegeriam novos deputados, senadores e governadores. Com claro cunho político, o pedido foi derrotado por 136 votos a 37, o que significou uma vitória importante para o governo. Porém, foi ligado um sinal de alerta.

O mês de agosto de 1954 começou, portanto, às portas de uma eleição que iria medir a força do governo, com a oposição e a imprensa amplificando as críticas relacionadas à corrupção e com a sociedade ainda vendo as primeiras consequências do aumento do salário-mínimo que, por um lado, deu uma tranquilidade aos trabalhadores, mas por outro aumentou a temperatura na relação que as Forças Armadas, a oposição e o empresariado tinham com o presidente.

Maria Celina D’Araújo resume a situação: Vargas estava isolado nas últimas semanas de governo.  Criticado pela imprensa, sem controle sobre a política partidária e sobre os movimentos populares, pressionado pelos grupos econômicos e com a antipatia da maioria dos militares.

O capítulo final: da crise à tragédia de 24 de agosto de 1954

Diversos relatos dão conta de que Vargas estava irritadiço e muito deprimido desde meados de 1953. O presidente estava com 71 anos e adotava uma postura diferente de quando chegou ao poder, em 1930, com 48. Dizia-se cansado e, segundo Bourne, chegou a relatar que queria deixar a política e voltar para sua cidade natal, São Borja. De vez em quando ia a Petrópolis para descansar, como mostram essas imagens do Cine Jornal da Agência Nacional. Em um bilhete enviado a assessores, Getúlio, apesar de orientações médicas indicando a necessidade de descanso, reafirma sua vontade de comparecer à “Festa da Uva” no Rio Grande do Sul.

A importante reforma ministerial de junho de 1953 foi vista como uma tentativa de colocar as coisas nos eixos para a segunda metade do mandato. Oswaldo Aranha (Fazenda), Jango (Trabalho), José Américo (Transportes) e Vicente Ráo (Relações Exteriores) eram todos velhos conhecidos de Getúlio. A ideia era ter gente próxima, experiente e de opinião forte, até para servirem de anteparo ao presidente, protegendo-o diante da imprensa. No caso de Aranha, soma-se ainda o interesse dele em ser presidente e o de Vargas, que o via com bons olhos para lhe suceder. Todos fizeram a primeira grande aparição pública no desfile de 7 de setembro de 1953, que seria o último desfile cívico da vida de Vargas.

Se até então os erros de indicados haviam respingado em Getúlio, a tentativa de assassinato de Carlos Lacerda foi, logicamente, o caso mais grave. Até porque, agora, a opinião pública não parecia ter dúvidas do envolvimento do presidente. John Dulles afirma que, em parte, a tragédia final de Getúlio foi devido ao comportamento de algumas das pessoas que ele tinha nomeado para “cargos de importância”, mas que Vargas era “homem absolutamente honesto”.

Porém, era quase impossível desvincular de Vargas uma tentativa de assassinato promovida pelo chefe de sua guarda pessoal. Os tiros contra Lacerda, no dia 5 de agosto, promoveram ainda um agravante: a morte de um militar, o major-aviador Rubens Florentino Vaz, da Aeronáutica. Em 9 de agosto, na Câmara dos Deputados, o deputado Aliomar Baleeiro pediu o afastamento da Vargas, e obteve o apoio do líder da oposição, Afonso Arinos. Em 12 de agosto, foi aberto um inquérito policial militar para apurar a morte de Vaz, com interrogatórios e depoimentos na Base Militar do Galeão, apelidada de “República do Galeão”.

Dia 13, foi preso Alcino João do Nascimento, autor dos disparos, que revelou ter sido contratado por Climério Euribes de Almeida para matar Lacerda. O depoimento cita ainda Gregório Fortunato, que acaba preso dois dias depois.

Dia 16, Nero Moura, ministro da Aeronáutica, renunciou, ao perceber o violento clima contra Vargas entre seus subordinados. No dia seguinte, Gustavo Capanema, líder do governo na Câmara, discursou acusando a União Democrática Nacional (UDN), principal partido de oposição, de usar politicamente o atentado para forçar a saída de Getúlio da presidência. Capanema ainda denunciou Carlos Lacerda de estar insuflando as Forças Armadas a deflagarem um golpe contra o presidente.

A partir do dia 20 de agosto de 1954, tornam-se públicas as articulações do vice-presidente, Café Filho, pressionando pela renúncia de Vargas. Opção que passa a ser defendida também pelas Forças Armadas, em conjunto, a partir do dia 22, aprovando proposta apresentada por Eduardo Gomes. Mascarenhas de Morais comunica a decisão ao presidente da República que, ao receber tal intimação, teria respondido que não era um criminoso e que só sairia do Palácio do Catete morto.

Ao perceber a possibilidade de um golpe de estado e ciente da sua fragilidade política, Vargas faz uma reunião com seus ministros, familiares e apoiadores mais próximos. Discutiu-se sobre a renúncia, mas a opção final foi por um pedido de afastamento temporário. Porém, algumas horas depois um disparo mostra a consumação de uma terceira alternativa, decidida unilateralmente por Getúlio Vargas: o suicídio. O presidente, uma das figuras mais relevantes da história do Brasil, deixa uma carta-testamento dizendo que deixaria a vida "para entrar na História". Mais do que isso, a carta de Vargas tem tom de sacrifício e altruísmo, assemelhando-se em muito de escritos religiosos.

Os trabalhadores e o povo brasileiro, em geral, ficaram estarrecidos com o suicídio do presidente, conforme mostramos em vídeo da época. Acreditou-se em sua inocência e que era um injustiçado. Se até então sua popularidade estava abalada, depois de sua morte o cenário mudou completamente. A imagem que permaneceu não foi a do ditador, nem a de chefe de um governo em crise, mas sim a do homem que havia elaborado a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), além de ter criado uma série de empresas estatais que alavancaram a economia e autonomia nacionais, como Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional e Petrobrás.

Centenas de milhares de pessoas foram às ruas, promovendo um quebra-quebra e revirando veículos, expressando sua revolta pela morte de Getúlio. Jornais de oposição, como o “O Globo”, de Roberto Marinho, “A Tribuna da Imprensa”, de Carlos Lacerda, e o Diário de Notícias foram apedrejados e incendiados. Vargas, agora, era visto como mais um dentre tantos brasileiros que havia sofrido uma injustiça e perdido a vida por causa disso. A repercussão foi gigantesca, chegando às páginas de veículos de comunicação internacionais, como a revista norte-americana Life, que deu destaque à tragédia em sua edição de 6 de setembro de 1954, falando sobre o que chamou de “histeria coletiva” na capital do Brasil, ao relatar que os protestos deixaram três mil pessoas feridas.

Uma multidão estimada em 150 mil pessoas (abaixo) acompanhou o traslado do corpo até o aeroporto, de onde foi levado de avião, sob o olhar de centenas de jornalistas, para São Borja (RS), sua cidade natal.

Setenta anos depois, recordamos esse período fundamental para a compreensão do passado e do presente do Brasil. Amado e odiado, a certeza que se tem é que Getúlio Vargas, de fato, saiu da vida para entrar na história.

Arquivos:

Getúlio Vargas, em seu governo eleito pelo povo, participando de festejos juninos no estádio São Januário, na cidade do Rio de Janeiro. BR_RJANRIO_EH_FOT_PRP_03178_08_de14

 

Vargas envia mensagem ao Congresso Nacional sobre o petróleo, 1951. BR_RJANRIO_EH_0_FIL_CJI_0018_0001

 

Bilhete escrito pelo presidente para Gustavo Capanema, líder do governo na Câmara dos Deputados. BR_AN_RIO_35_0_BIL_458

 

Anotações de Vargas para discurso que faria para a população, quinze dias após a posse. BR_AN_RI0_35_0_BIL_17

 

Vargas entrega uma medalha ao jogador Nilton Santos BR_RJANRIO_EH_0_FOT_PRP_03166_mp0027de0029_

 

Getúlio desfilando em carro, no Dia do Trabalhador, em São Januário.  Em pé, ao lado do carro, de terno, vemos Gregório Fortunato, chefe de sua guarda pessoal e mandante da tentativa de assassinato contra Carlos Lacerda. BR_RJANRIO_EH_0_FOT_PRP_03166_mp0024de0029_

 

Vargas passeando em Petrópolis, 1953. BR_RJANRIO_EH_0_FIL_CJI_63

 

Bilhete de Vargas a assessores insistindo em viajar ao Rio Grande do Sul, apesar das recomendações médicas em contrário. BR_AN_RIO_35_0_BIL_503

 

Vargas e o 7 de setembro de 1953. BR_RJANRIO_EH_0_FIL_CJI_0081_0001

 

Povo tenta incendiar a sede do Diário de Notícias, jornal que defendia a renúncia de Vargas. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_18089_449

 

Confusão no centro do Rio, com pessoas chorando e correndo, logo após o anúncio da morte do presidente. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_18089_464

 

Veículo revirado pela população em protesto e revolta gerados pela perda da vida por parte do presidente Getúlio Vargas. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_18089_470

 

Multidão acompanha traslado do corpo de Vargas até o aeroporto, de onde seguiria até São Borja (RS). BR_RJANRIO_PH_0_FOT_18089_482

 

Fotógrafos acompanham entrada do corpo de Vargas no avião que o levaria à sua cidade natal. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_18089_485

 

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