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Thiago Mourelle - doutor em História, pesquisador do Arquivo Nacional

 

O golpe de 1964 tem sido o exemplo mais lembrado, mais destacado e, talvez a intervenção militar que causou maior impacto na política institucional brasileira. Porém, muitas outras participações das forças militares marcaram nossa história republicana.

Classicamente, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica – esta última a mais recente das Armas, aqui no país criada oficialmente em 1941 – existem para o objetivo último da defesa do país e de suas fronteiras, devendo zelar pela paz e proteger a lei, a ordem e as garantias constitucionais. Com pequenas diferenças ao longo das décadas, essas são as prerrogativas que a lei máxima do país, sua constituição, sempre destinou aos homens e mulheres de farda.

Porém, desde seu fortalecimento institucional e moral obtidos a partir da Guerra do Paraguai, pouco a pouco os militares foram modificando essa clássica missão histórica, passando a agir, individualmente ou coletivamente, de modo a conspirar contra o Poder Executivo. Mesmo a criação da República teve em sua origem o braço armado; afinal foi o marechal Deodoro da Fonseca o responsável por aglutinar as diversas insatisfações com o imperador D. Pedro II e, a 15 de novembro de 1889, assumiu no lugar deste o comando do país, tornando-se o primeiro presidente da República do Brasil.

O impacto militar não foi pontual, uma vez que Deodoro foi sucedido por Floriano Peixoto, também marechal, deixando os militares não por dias ou meses no comando da nação, mas por longos cinco anos – período chamado de “República da Espada” – até que o poder fosse finalmente repassado às elites civis eleitas através de eleições diretas, o que ocorreu apenas em 1894. A força de Floriano, chamado de “Marechal de Ferro”, deu origem ao Florianismo que se manteve vivo ao longo de toda a década de 1890. Assim, o novo regime nasceu pelas mãos militares e sob forte influência deles.

Ainda durante a chamada “República da Espada” uma insurgência ocorreu contra o governo militar, por parte dos próprios militares: a Revolta da Armada. Esmagada após um delicado período de tensão e combates, ela reflete uma nova interferência militar em dimensão nacional, tendo se iniciado na então capital da República – cidade do Rio de Janeiro – e se estendido para o sul do país, influenciando inclusive nova rebelião, a Revolução Federalista, igualmente sufocada pelo governo federal.

As forças armadas nas primeiras décadas do século XX

O pacto de Campos Sales, presidente de 1898 a 1902, conhecido por “Política dos Governadores” ou “Política dos Estados”, criou um modus operandi civil para a Primeira República, sob o domínio da oligarquia cafeeira e o fortalecimento das elites estaduais. Em seguida veio Rodrigues Alves, presidente que teve como uma de suas principais bandeiras as reformas urbanas, tendo a Capital Federal como palco principal, mas que se multiplicaram em outras grandes cidades do país. Seria a vitória do domínio civil sobre os destinos do país? Talvez naquele momento, mas não definitivamente. Em 1910, após uma eleição intensamente disputada e com diversos nomes ventilados à presidência, Hermes da Fonseca trouxe os militares de volta ao Palácio do Catete – residência, à época, do presidente –, vencendo eleitoralmente e, também, simbolicamente, a chamada “Campanha Civilista” que tinha em Rui Barbosa o seu candidato.

Durante o governo de Hermes, particularmente durante as campanhas eleitorais e eleições estaduais em 1911 e 1912, o governo adotou a chamada “Política das Salvações”, que nada mais era do que um confronto direto contra as oligarquias estaduais, muitas delas aliadas de Rui Barbosa. Essa política consistia na indicação de candidatos militares para os estados ou, pelo menos, de nomes civis que detivessem o apoio e chancela do então presidente da República, especialmente nos estados do Nordeste.

Durante os anos 1910 o exército brasileiro iniciou um processo de modernização, formação técnica e profissional da instituição, muito em razão das ações dos chamados “jovens turcos”, grupo que havia visitado as forças armadas alemãs alguns anos antes e que trazia para o Brasil novas ideias de treinamento, ação, disciplina e conduta. O nome fazia referência a oficiais da Turquia que, a exemplo dos brasileiros, também fizeram estágio junto aos alemães e que, no retorno, se engajaram em um partido reformista e nacionalista.

Na década seguinte surgiu o movimento tenentista, responsável pelos importantes levantes de 1922, no Forte de Copacabana, e de 1924, em São Paulo. Este último teve parte de seus participantes dando origem à lendária Coluna Prestes-Miguel Costa, que correu o país até 1927 buscando mobilização nacional em prol da moralização da política, crítica às supostas fraudes eleitorais, respeito à constituição e defesa de mudanças urgentes na forma como o país era conduzido. Esse movimento pôde ser melhor compreendido nos anos subsequentes, que mostraram que o grupo que se uniu em defesa de tais mudanças era bastante heterogêneo: alguns guinaram para o comunismo, outros para a extrema-direita, outros ainda para a defesa intransigente do modelo democrático.

Os militares no movimento de 1930 e nos governos de Getúlio Vargas

 

A maioria esteve com Vargas durante o rompimento da ordem em 1930 e se manteve com ele até 1932, quando a ditadura foi oficialmente interrompida com o início da preparação de eleições para uma assembleia nacional constituinte – a partir de um decreto criado ainda no início do ano, antes mesmo da Guerra Civil ocorrida em São Paulo entre julho e outubro. Cabe analisar melhor a participação militar no golpe que destituiu Washington Luís e que evitou a posse do candidato eleito, Júlio Prestes, que derrotara Getúlio nas eleições de 1930.

O movimento que derrubou Washington Luís algumas semanas antes do final de seu governo e, consequentemente, impediu a transmissão do cargo ao presidente eleito, Júlio Prestes, não teria acontecido sem o braço armado. Este, que faltou em outros momentos de crise oligárquica, como em 1910 e 1922 – eleições em que ocorreu uma divisão competitiva da elite, que se separou em blocos antagônicos –, em 1930 se juntou à Aliança Liberal, grupo derrotado nas urnas e que se lançou à aventura de tomar o poder com base em acusações de eleições fraudulentas e com um discurso moralista que gritava pela necessidade de reformas políticas, econômicas e sociais no país. Por isso, 1930 não deixa de ser a coroação do tenentismo, que foi fundamental para a tomada do poder.

Rapidamente, Vargas promoveu em um curto tempo uma série de militares, que logo ocuparam postos de relevância na hierarquia das Forças Armadas, entre eles Góis Monteiro – cuja documentação pessoal se encontra no Arquivo Nacional –, talvez o principal aliado do governo nos anos subsequentes. O enfraquecimento dos tenentes a partir de 1932, com a confirmação da preparação da abertura política se deu ao mesmo tempo em que o Exército voltou a se fortalecer com a vitória na guerra civil contra São Paulo. A era dos generais estava de volta. Góis Monteiro, no Ministério da Guerra, trabalhou incisivamente contra o que chamava da “política no Exército”, defendendo o que chamava de “política do Exército”. Ou seja, a hierarquia deveria ser mantida e todos os envolvidos nas forças militares deveriam unir forças em prol das decisões tomadas pela alta oficialidade, sem espaço para ideias dissidentes entre a baixa patente, como ocorrera nos anos 1920.

Getúlio Vargas, mesmo em meio a uma feroz crise econômica e financeira, deu o aval para o reajuste do soldo militar em 1935, enquanto vetou o mesmo para o funcionalismo público civil. Sabia o agora presidente eleito – indiretamente, pelo Congresso, em julho de 1934 – que deveria contar com os militares consigo. Necessidade que se confirmou em novembro do mesmo ano, quando foi necessário combater contra as revoltas organizadas pela Aliança Nacional Libertadora, em especial pelos comunistas – liderados por Luís Carlos Prestes – que dela faziam parte e que alimentavam uma oposição de esquerda ao regime.

No governo Vargas as Forças Armadas obtiveram o benefício de uma série de esforços por parte do governo para sua reestruturação. Não apenas o aumento salarial citado, mas a criação da Aeronáutica, o surgimento da fábrica de motores aeronáuticos em 1942 e o aumento orçamentário destinado a elas. O Estado Novo, outro golpe na institucionalidade – já que a Constituição de 1934 previa eleições em janeiro de 1938 –, mais uma vez contaria com o apoio e chancela das Armas da República brasileira. E da mesma forma que a entrada e continuação de Getúlio contou com elas, a saída deve também teve participação direta militar, uma vez que o presidente foi destituído por ação militar no final de outubro de 1945.

Logo, fica claro o peso do primeiro governo Vargas, período compreendido entre 1930 e 1945, para o aumento do peso da força militar institucionalmente como elemento interventor dos rumos políticos do país, muitas vezes em contrário à própria constituição em vigor. Dessa forma, as Forças Armadas foram se consolidando, fato após fato, não como defensoras intransigentes da lei do país e de protetoras da vontade popular, mas em elemento conspirador de ações ilegais, promovendo ou despromovendo governantes à cadeira presidencial. Ao invés de zelar pela estabilidade, tornou-se cada vez mais agente disseminador de instabilidade no jogo político. 

A intensificação da participação dos militares na trama política teve como ponto marcante com o surgimento da Escola Superior de Guerra e o ulterior desenvolvimento da Doutrina de Segurança Nacional, no âmbito de uma maior aproximação com os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. Não conseguiremos aprofundar este tema crucial aqui, mas você pode ler mais neste texto, e também aqui

Algumas vezes, as forças militares acabaram sendo utilizadas para repressão ao próprio povo. Dizimaram milhares de homens, mulheres, crianças e idosos no Arraial de Canudos, em 1898. Cerca de 15 anos depois, participaram de mais um front interno, no combate durante a Guerra do Contestado, na qual morreram milhares de brasileiros. Entre tantos exemplos podemos citar ainda o massacre ao povoado de Santa Cruz do Deserto, já durante o governo Vargas, mais uma vez colaborando com a morte de milhares de pessoas pobres sob a justificativa de que as vítimas estariam “escondendo comunistas”.

Durante boa parte de sua história, o meio militar serviu como centro onde se formavam lideranças significativas dos mais diversos matizes políticos, de direita e de esquerda. Não podemos deixar de citar figuras como Luís Carlos Prestes, Carlos Lamarca, que se destacaram nas fileiras da esquerda. Outro exemplo é o golpe preventivo do Marechal Lott, que garantiu em 11 de novembro de 1955 a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek. Até que, durante a ditadura de 1964-85, houve um expurgo interno de modo a evitar pensamentos divergentes.

A punição aos envolvidos em atividades criminosas deve sempre ser exemplar, independente de ser civil ou militar. A consolidação da democracia passa pela defesa e aplicação das leis constitucionais, independente do perpetrador, sob pena de alimentar as ilegalidades, os crimes, a ruptura institucional, que já levou tantas nações a flertarem com a desordem. Em relação aos militares envolvidos nessas atividades, sua punição ajudará inclusive na elevação das Forças Armadas do Brasil, uma vez que retirará de suas fileiras pessoas sem o compromisso com as leis do Brasil e, consequentemente, sem o compromisso com a missão institucional das Armas nacionais. Nem sempre uma anistia é sinônimo de paz e justiça. Para se andar adiante, dando respaldo e confiança para seu povo viver em paz e harmonia, é necessário ajustar as contas com a justiça, resolver definitivamente o passado e, assim, coibir desvios futuros que coloquem em risco a democracia no país.

O insistente incômodo militar com a democracia: golpe, anistia e uma tentativa fracassada

Já no mandato de JK ocorreram duas novas tentativas golpistas, mais uma vez protagonizadas por membros das forças armadas nacionais: os casos de Jacareacanga e Aragarças. Na primeira, oficiais da Aeronáutica tomaram a base aérea da Jacareacanga, no sul do Pará, e tinham como objetivo a saída de Juscelino da presidência, acusando-o de ter ligação com o comunismo. A revolta durou 19 dias e não avançou muito além do âmbito local, atingindo somente cidades próximas.

Três anos depois, em 1959, quando se discutiam os nomes para a eleição que se aproximava, mais uma revolta. Embora tenha sido contida em cerca de 36 horas, a Revolta de Aragarças revelou momentos de extrema tensão e medo de que um conflito maior se disseminasse. Irritados com a inicial recusa de Jânio Quadros em se candidatar à presidência e certos de mais uma vitória eleitoral da chapa PTB-PSD, que elegera todos os presidentes desde o fim do Estado Novo, 15 oficiais da Força Aérea Brasileira e do Exército planejaram derrubar o governo JK e instalar uma ditadura militar no país. Após sequestrar aviões, os golpistas pretendiam bombardear alvos governamentais e tomar bases aéreas militares, aumentando o seu poderio e pressionando pela saída do presidente da República.

A anistia dada aos envolvidos nesses dois episódios abriu caminho para que muitos deles mantivessem a postura em 1964, participando decisivamente no rompimento institucional que terminou com a retirada do poder de João Goulart, vice-presidente eleito pelo voto popular e que havia chegado à presidência legalmente como previa a constituição de 1946, após a renúncia de Jânio Quadros. Estava inaugurado um regime de exceção, uma ditadura que demoraria longos 21 anos e que acabou por deixar no país um legado econômico de inflação, dívidas e que politicamente tolheu o brasileiro por décadas o exercício da cidadania em um país democrático. Em resultado, o país viveu décadas à sombra de forças armadas que perseguiam, desapareciam, torturavam e matavam opositores ou meros suspeitos, indivíduos que integravam o povo que os militares juravam proteger. O Arquivo Nacional traz, em sua documentação, livros apreendidos pelo Serviço Nacional de Informações que tratam sobre a atuação dos militares entre a abertura e a Nova República, como este, de Alfred Stepan.

A anistia de 1979, orquestrada por quem ocupava o poder, mais uma vez foi uma manobra para impedir os golpistas de enfrentarem as consequências de seus atos. Assim como os de Aragarças e Jacareacanga, os que mataram e torturaram durante o governo Vargas e em tantos outros momentos de nossa história, mais uma vez o grupo da caserna buscou – e conseguiu – sair ileso de suas atitudes inconsequentes que mergulharam o país em uma ditadura. A falha de conceder anistia ou simplesmente varrer para debaixo do tapete ações sórdidas contra o próprio povo de seu país faz o Brasil flertar frequentemente com tentativas de golpes e, assim, incentivar direta e indiretamente violências de toda ordem.

Mesmo após o fim oficial da Ditadura Militar, em pleno governo José Sarney, outro fato de grande relevância chama a atenção: o massacre protagonizado em 1988, contra trabalhadores que realizavam uma greve de ocupação na Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. Ação realizada por forças do Exército vindas do Batalhão de Petrópolis (1ª Brigada Motorizada do Exército), reforçadas por batalhões de choque da PM do Rio de Janeiro e da Companhia de Polícia do Exército.

Podíamos ainda enumerar outros problemas envolvendo a continuidade, ao longo de décadas, do uso de violência excessiva por parte dos militares durante nossa ainda curta República, ações condenáveis que não tiveram a punição necessária nem por parte da justiça comum nem pela justiça militar. Mas terminamos com o último deles: a conspiração por parte de algumas figuras do meio militar contra a posse do presidente Lula e do vice-presidente Alckmin, eleitos pela vontade popular através do voto soberano da população brasileira.

A punição aos envoltos em atividades criminosas deve sempre ser exemplar, independente do envolvido ser civil ou militar. A consolidação da democracia passa pela defesa e aplicação das leis constitucionais, independente do perpetrador, sob pena de alimentar as ilegalidades, os crimes, a ruptura institucional, que já levou tantas nações a flertarem com a desordem. Em relação aos militares envolvidos nessas atividades, sua punição ajudará inclusive na elevação das Forças Armadas do Brasil, uma vez que retirará de suas fileiras pessoas sem o compromisso com as leis do Brasil e, consequentemente, sem o compromisso com a missão institucional das Armas nacionais. Nem sempre uma anistia é sinônimo de paz e justiça. Para se andar adiante, dando respaldo e confiança para seu povo viver em paz e harmonia, é necessário ajustar as contas com a justiça, resolver definitivamente o passado e, assim, coibir desvios futuros que coloquem em risco a democracia no país.

BIBLIOGRAFIA

BRANDÃO, Priscila Carlos e outros (org.). Ilegais e imorais : autoritarismo, interferência política e corrupção dos militares na história do Brasil. Belo Horizonte: Fino Traço, 2024.

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005

MOURELLE, Thiago Cavaliere. A democracia ameaçada: a Câmara dos Deputados confronta Getúlio Vargas (1934-35). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2023.

 ARQUIVOS

 

BR_RJANRIO_R0_0_MAP_0014_D0001DE0002 – Fundo Salgado Filho – Mapa das zonas aéreas – decreto 4148 de 5 de março de 1942, um dos primeiros para estabelecer legalmente a zona de atuação do novo Ministério da Aeronáutica.

BR_RJANRIO_ON_0_COR_0016_0017_d0001de0001 – Fundo Afonso Pena - Carta de Afonso Pena, então presidente, a Rui Barbosa, nas conversas para a decisão do candidato que apoiariam na eleição. Nome que acabou sendo o de Rui Barbosa.

BR_RJANRIO_PH_0_MAP_0248_d0001de0001 – Fundo Correio da Manhã - Mapa onde mostra as localizações de Aragarças e Jacareacanga

BR_RJANRIO_PH_0_FOT_39357_035 – Fundo Correio da Manhã - Bilhete de Luís Carlos Prestes durante os preparativos para as revoltas de novembro de 1935.

SF_CX72_PAC5_DOC26  - Fundo Salgado Filho - Página de publicação não identificada, de fevereiro de 1944.

BR_RJANRIO_SZ_CX_1758_PCT_S4 - Fundo Salgado Filho -  Notório manifesto do político de São Paulo e possível candidato a presidente nas eleições marcadas para 1938, Armando de Salles Oliveira, alertando sobre o golpismo disseminado nas forças armadas.

BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_87060332_an_01_d0001de0001 – Fundo Serviço Nacional de Informações (SNI) - Livro de Alfred Stepan, recolhido pelo SNI, chamado “Os Militares: da abertura à Nova República”.

 

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