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Georgina Martins, doutora em literatura brasileira pela UFRJ e doutoranda em Psicossociologia  de Comunidades e Ecologia Social - Instituto de Psicologia/UFRJ e colunista da Revista Ciência hoje - um especial agradecimento ao orientador e co-autor desse texto Helvo Slomp Junior, Professor de saúde coletiva no curso de medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro campus Macaé.

 

Esta narrativa pretende criar um arquivo de memória ancestral, que parte de uma história pessoal para narrar a história coletiva das crianças que foram consideradas “imundas” dentro de um pavilhão infantil do antigo Hospício Nacional de Alienados (HNA), localizado na bucólica Praia da Saudade, no Bairro da Urca, hoje conhecida como Praia Vermelha.

A história dessas crianças pobres e imundas do HNA se mistura com a dos meus ancestrais. São as histórias de três irmãos de minha mãe, que nos anos 30 do século XX entraram para o Pavilhão infantil Bourneville (PB) do HNA. O mais velho deles tinha 11 anos, o do meio 10 e o caçula apenas dois. No hospício, o mais velho recebeu o diagnóstico de imbecilidade, o do meio e o caçula, de epilepsia; além disso, os dois mais velhos foram tachados de imundos pelos alienistas do HNA, e morreram no hospício. Mal epilético e enterocolite aguda foram as causas dos dois óbitos

 Não os conheci, morreram muito antes de eu nascer, mas as vívidas lembranças de minha mãe sobre a notícia da morte de seus irmãos, quando ela tinha apenas 5 anos, me fizeram buscar os rastros dessa história, até chegar aos prontuários deles nos arquivos do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM), cujo diretor Márcio Claudio S. Pereira, não mediu esforços para me apoiar na pesquisa; sem a preciosa contribuição de Márcio eu não teria conseguido desbravar aquele labirinto documental.

Foi a partir desse surpreendente encontro que iniciei a pesquisa que dá origem a esta narrativa. Precisava entender o porquê da presença do adjetivo imundo nos prontuários, não só deles, mas de outras crianças. Seria um dado clínico ou social? Como se não bastasse ser “idiotas”, “imbecis” e “anormais do desenvolvimento”, ainda seriam imundos?

Na intenção de tentar entender e de problematizar o uso desse adjetivo, é que me vejo envolvida com a documentação produzida pelo e sobre o HNA. Documentos encontrados em diversos lugares, como no Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional, no IMASJM e no Centro de Memória Nise da Silveira, têm sido meus guias nessa busca de respostas para tão infame classificação, aos nossos olhos de  hoje, de uma criança dentro de uma instituição de saúde.

 

Crianças imundas nos primeiros relatórios

 

 “É imundo? Sim”. Essa era a pergunta que constava nos prontuários utilizados a partir da década de 20, não que antes as crianças não fossem consideradas imundas; o médico pediatra Antonio Fernandes Figueiras (1863-1928) já as chamava assim desde que assumiu a direção do PB, em 1904, conforme pode-se constatar no relatório do diretor interino do HNA, Dr. Afrânio Peixoto, enviado ao Ministro da Justiça e Negócios dos Interiores do Governo Rodrigues Alves, da 1ª República.

 

De 13° imundos só quatro ainda não foram sanados desse defeito. Já sabem vestir-se 26 deles e apenas 10 restam por fazer essa aprendizagem. A educação da mesa é cuidada agora. (Peixoto, Afrânio,1904-1905, p. 91)

 

A utilização do tal adjetivo pela equipe do HNA é fundamentada pelo decreto de criação do hospício, de 4 de dezembro de 1852, quando este foi nomeado de Hospício de Pedro II, passando a chamar-se Hospício Nacional de Alienados depois da Proclamação da República. O decreto aprova e manda executar o Estatuto do hospício, que por sua vez, não só determinava a separação entre imundos e asseados, como ainda afirmava que somente os indigentes e os pensionistas de última classe eram classificados como imundos; o que faz dessa categoria um importante indicador de discriminação de classe.

Nesse caso caberia a pergunta: não havia imundos entre os loucos das classes abastadas? Vejamos:

 

Do serviço sanitário

 Art. 18. Os alienados recebidos no Hospício serão distribuídos em duas divisões; huma comprehenderá todos os indivíduos do sexo masculino, e a outra todos os do sexo feminino. 
 Art. 19. Os alienados indigentes, e os pensionistas da última classe serão distribuídos nas subdivisões seguintes: 1ª de tranquillos limpos: 2ª de agitados: 3ª de immundos: 4ª de affectados de moléstias accidentaes.

Os pensionistas das primeiras duas classes serão distribuídos em duas subdivisões: 1ª de tranquillos: 2ª de agitados.[1] 

 

No Arquivo Nacional tive acesso a vários documentos produzidos dentro do HNA, como relatórios dos diretores, ofícios, notas fiscais de compras de bens de consumo, de material permanente etc. Material que municia minha pesquisa na tentativa de obter respostas para a principal pergunta que me faço desde que me deparei com os prontuários das crianças do PB: por que imundas?

 Nesse sentido, selecionei alguns relatórios que foram produzidos pelos diretores do Hospício nos primeiros anos da República. Material que contém informações importantes sobre o cotidiano do Hospício, bem como relatos sobre a situação em que se encontravam os pacientes, principalmente as crianças, fato que desencadeou as primeiras mudanças ocorridas no HNA depois da Proclamação da República. Nesses relatórios pode-se constatar que o estigma da imundicie já estava presente nas entranhas do hospício.

O primeiro relatório é dos primeiros anos da República,1894, do Dr. Pedro Dias Carneiro[2], chefe do Serviço Sanitário na gestão de João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921). Nesse documento ele se refere tanto à falta de profissionais adequados para exercer as funções de enfermagem dentro do Hospício, quanto à dificuldade de se trabalhar com alguns imigrantes, que, embora aptos, não exerciam a profissão de bom grado, sendo grosseiros e descuidados com os doentes. Carneiro também se ressente do fato de não haver ainda uma Escola de Enfermagem no Brasil, obrigando a direção a aceitar órfãs enviadas por instituições de caridade para exercerem o ofício, a fim de que essas órfãs pudessem manter a própria subsistência. No entanto, segundo Carneiro, elas não se adaptavam ao serviço, descumprindo as ordens e se recusando a auxiliar nos serviços de asseio, além de serem totalmente analfabetas.

Dentre as queixas mais sérias de Carneiro, há o caso de uma mulher que fora encontrada caída no chão, no dormitório destinado às imundas. É importante destacar que o termo imundo está presente nas duas citações abaixo

 

Em um dos quartos destinados para doentes immundos da seção Pinel, foi encontrada pelo rondante na madrugada de 28 de outubro a preta velha demente Francisca ilIaria da Silva, estendida sobre o solo, que é ladrilhado, com grandes contusões sobre a face e região orbitaria, banhada em sangue e quase moribunda; ao seu lado e acordada estava a Hipermaniaca Anna Theodora da Silva, mulher moça e robusta e sujeita a impulsões. [...] A ofendida veio a falecer pouco depois. (idem)

 

Em outro trecho, dando conta de melhorias feitas no HNA, ele declara:

“Na secção Pinel - colocação de grades de ferro nas janellas de madeira sempre fechadas do pavilhão (antiga lavanderia) e que serve parte para dormitório das immundas e turbulentos e parte para recreio nos dias de chuva e nas horas de grande calor, ficando desse modo garantida toda segurança, e regularisada franca ventilação e penetração directa dos raios do sol, circumstancias indispensáveis para a boa hygiene do local, que é ladrilhado e diariamente lavado por exigencias dessa mesma hygiene.” ( idem)

 

 Péssimas condições ao longo da primeira década do século XX

Em 1901, Pedro Dias Carneiro assume, no lugar de Teixeira Brandão, a direção do HNA, e em seu segundo relatório sobre o Hospício, informa ao Ministro que a movimentação geral no estabelecimento, durante todo o ano, fora de 1428 pacientes internados. Além disso, queixa-se da internação compulsória dos alcoolistas feita pela polícia. Para ele, o atendimento dessas pessoas deveria ocorrer em um serviço especial para esses casos e não em um hospício. Carneiro temia que o HNA se transformasse em um depósito de alcoolistas.

Em relação ao número elevado de óbitos dentro do HNA, Carneiro ressalta ser a disenteria a principal causa, o que segundo ele se devia à falta de higiene dos próprios doentes. No entanto, logo após essa observação, ele se refere à falta de funcionários e de espaços adequados para uma melhor distribuição dos loucos, a fim de evitar aglomeração, e desse modo facilitar a utilização dos preceitos higiênicos e de uma maior vigilância.

Diante da queixa de Carneiro em relação ao número de óbitos por disenteria devido às condições higiênicas do Hospício, torna-se importante destacar que durante todo funcionamento do HNA, até 1944, a maior causa de óbitos de crianças foi também devido à disenteria.

Ele segue fazendo críticas ao modelo de construção do Hospício, na mesma linha do que Teixeira Brandão já havia apontado antes. Critica as divisões internas, a falta de lugares arejados e de pátios para o lazer. Ressalta ainda que as crianças não deveriam conviver no mesmo espaço de alienados adultos, principalmente por ter a criança grande capacidade imitativa.

 

Isso porque, atentas as capacidades imitativa e sugestiva da criança, e particularmente d’aquellas que são desequilibradas, facilmente se poderá inferir da promiscuidade em que se acham ellas com os diferentes alienados para o resultante desse estado anti-natural. Tenha-se em vista igualmente que sem uma vigilância severa, hábitos de onanismo e pederastia se podem definitivamente se instalar em criaturas novas[3].

 

 

No mesmo ano surgem na imprensa diversas denúncias sobre as péssimas condições em que se achava o HNA, principalmente o fato de haver crianças misturadas com adultos em total estado de promiscuidade. Inquirido pelo Ministro da Justiça e Negócios dos Interiores, Pedro Dias Carneiro, em 25 de fevereiro de 1902, envia mais um relatório dando conta das denúncias ao Ministro. Em sua defesa, ele afirma que já havia comunicado o fato de não haver um local adequado para as crianças:

Sr. Ministro, tendo aparecido no Jornal do Comércio várias acusações ao diretor do Hospício Nacional de Alienados, em consequência da visita feita a este estabelecimento no dia 30 de janeiro último, por um dos redatores daquela folha, vem esse funcionário trazer, em sua defesa,  a V. Exa, as seguintes ponderações: [...] Crianças loucas andão junto com os adultos, diz o Sr. Redactor: mas onde colocá-las durante o dia, se não tem um pavilhão separados para ellas que não devião estar num estabelecimento destes? Seria melhor enclausurá-las em um quarto do que deixá-las passear livremente?[4] 

 

Em relação às acusações de promiscuidade, Carneiro responde que se no Hospício houvesse pátios internos ajardinados e arborizados, provavelmente isso poderia ser evitado, pois os loucos teriam horas de lazer garantidas; mas reconhece que a promiscuidade no Hospício sempre existiu. E segue no relatório respondendo as acusações de que pensionistas de 1 ª classe se misturavam com os loucos das classes inferiores. Sobre isso ele diz:

 

A convivência de pessoas bem-educadas, de certo grau de ilustração, embora pobres, quer dizer não pensionistas, não pode ser inconveniente para os pensionistas, mesmo os de classe elevadas, entre os quais se tem notado alguns de baixo nível social, sem educação e polidez, e que nada terão a perder em convivência com aquellas. A verdadeira separação, pois, a estabelecer em um estabelecimento desta ordem, seria, tendo por base, não as condições pecuniárias do doente, mas sim a forma clínica de sua moléstia, a sua educação, costumes e graus de ilustração. (idem)

 

Os relatórios de Carneiro nos chamam a atenção pelo fato de serem os únicos, entre os relatórios produzidos no HNA, que se tem registro, que apresenta posicionamento contrário à divisão por critério de classe dentro do Hospício. Posicionamento que ele já havia demonstrado em relatório anterior, quando se contrapôs às reclamações da imprensa sobre o fato de haver indigentes misturados com pensionistas, “A convivência de pessoas bem-educadas, de certo grau de ilustração, embora pobres, quer dizer não pensionistas, não pode ser inconveniente para os pensionistas”[5]. Nem mesmo Juliano Moreira, conhecido por seu apreço e dedicação aos insanos do HNA, parece ter se posicionado contra essa divisão excludente.

 

A chegada de Juliano Moreira

Em função dessas e outras denúncias, como abandono do Hospício, livros de matrículas sem preenchimentos, Carneiro foi aposentado e substituído pelo médico Antonio Dias de Barros, que exerceu a função até 1903, quando, então Juliano Moreira foi nomeado com a missão de fazer uma reforma geral no HNA. 

Em 1903, Juliano Moreira (1873-1933) dá início às reformas urgentes e necessárias no Hospício. Inaugura o pavilhão infantil, nomeado de Pavilhão Escola Bourneville (PB), proíbe o uso de camisa de força, retira parte das grades das janelas e nomeia o pediatra Antonio Fernandes Figueira como diretor do PB.

Em vários relatórios enviados ao Ministro, Moreira solicita o aumento de verbas para dar conta das obras que se faziam necessárias, assim como a compra de material pedagógico para o PB, além da construção de um jardim geométrico para que as crianças pudessem ter noções de formas, texturas etc.

Sobre o PB, em 1906, três anos somente após a inauguração, Moreira segue reivindicando melhorias:

 

Foi submetida esta seção, alguns reparos, como sejam o de pintura e conservação. Ressente-se ela dos mesmos embaraços já mencionados, dormindo as crianças pelo chão, em colchões, por falta de espaço para colocação de camas. Reconhecida essa deficiência de acomodações, o digno Engenheiro do Ministério do Interior, por ordem do Exmo. Sr. Ministro, orçou as obras e levantou a planta de construção de um grande dormitório na parte lateral do pavilhão, não sendo executadas as aludidas obras por falta de verba.[6]

Outro relatório que merece destaque é o de Juliano Moreira, do ano de 1909, 6 anos depois das reformas que sua gestão proporcionou. Nesse documento, Moreira enfatiza que a superpopulação do Hospício impedia que as boas regras de higiene fossem cumpridas. Ele destaca ainda que no ano de 1905 já havia reclamado do excesso de insanos no HNA, da falta de pessoal bem preparado e dos problemas da falta de abastecimento de água.

Estão alojados na seção Pinel e Esquirol...., isto é 414 na Pinel e 374 na Esquirol. Tem, portanto, mais doentes que em igual data do ano passado. Sendo a lotação normal de cada uma dessas seções de 250 pacientes, fácil é compreender o quanto em um estabelecimento público são lesadas as leis de higiene das habitações, suprimindo a cada um dos indivíduos que dormem em tais recintos a cota de ar que o mesmo Estado exige seja dado a cada pessoa nos domicílios particulares[7]

 

Praticamente todos os relatórios enviados ao ministro relatam as dificuldades de se empreender condições adequadas de higiene dentro do Hospício, situação que, por si só, já deveria impedir que os pacientes, sobretudo as crianças, fossem estigmatizadas com o adjetivo imundo, uma vez que a administração do HNA reconhece as precárias condições higiênicas do Hospício.

Porém, não é isso que constatamos nos prontuários da década de 20 em diante, que não só incorpora a pergunta “É imundo?”, como ainda não faz nenhuma menção às condições higiênicas do PB. O que lemos nesses documentos é que a imundície é inerente à criança.

Nesse mesmo ano temos o primeiro relatório de Fernandes Figueira, onde constam algumas queixas sobre as condições do referido pavilhão, como a falta de oficinas para o desenvolvimento pedagógico dos meninos, mas ressaltando que as meninas puderam ser inseridas em oficina de costura já existente no HNA. Ele reclama também das condições sanitárias e de higiene do pavilhão em função do grande número de crianças internadas, o que acabou por facilitar os surtos de escorbuto e de sarampo. Quando se refere ao número elevado de crianças, Figueira se ressente de não poder internar no PB crianças pensionistas:

 

O aumento do Pavilhão Bourneville é indispensável, não se recebe pensionistas (no que há grande prejuízo de rendas) por falta de local, e nele os indigentes já foram atacados de escorbuto.[8]

Não nos parece ter havido no Bourneville a repetição do modelo de divisão por classe. Os relatórios posteriores a essa observação de Figueira não se referem a nenhuma mudança nesse sentido no pavilhão infantil. Em relatório seguinte, Figueira solicita o aumento do PB e obras de conservação:

 

Destinado às crianças, sobretudo idiotas e imbecis, requer o Pavilhão reiterado trabalho de conservação, e sendo crescente o número de meninos enviados ao hospital, requer o edifício que se faça um acréscimo (idem)  

 

Muito embora tenhamos procurado exaustivamente, infelizmente não foi possível encontrar outros relatórios de Fernandes Figueira, o que seria muito importante para esta pesquisa; o que se tem são os relatórios de Juliano Moreira reiterando a necessidade do aumento de verbas e de reformas. Nesses documentos, ele, não só, dava notícias de todas as seções do Hospício, como elencava as necessidades de cada uma. São documentos preciosos, rico de informações importantes para a reflexão sobre a política de saúde mental dos primeiros anos da República.

Até o final de sua gestão, final dos anos de 1920, Juliano Moreira continuou enviando relatórios anuais ao Ministro da Justiça e Negócios dos Interiores, Ministério que cuidava também da saúde. Em praticamente todos os relatórios encontramos queixas de Moreira sobre as instalações do PB, reclamações sobre as condições de higiene por falta de distribuição adequada de água, consequência da deterioração do encanamento que conduzia a água ao reservatório do Hospício, e por número excessivo de crianças.

 

Repetirei o que disse no ano passado “continuando excessivo o número de crianças enviadas ao hospital, foi, durante o ano passado, insuficiente o Pavilhão Bourneville” para a conveniente assistência aos admitidos. Até que possa o Estado fundar um verdadeiro Instituto para o grande número de crianças atrasadas existentes no Distrito Federal, peço o alargamento do atual serviço no Hospital Nacional [9]

 

Conclusão

 

À guisa de conclusão parcial, uma vez que esta pesquisa se encontra em andamento, no que se refere ao estigma de imundo, é interessante refletir que os sentidos dos discursos nascem das formações ideológicas da sociedade na qual o sujeito/falante está inscrito, logo, nenhuma produção discursiva é aleatória, sobretudo quando ela se propõe a elaborar, organizar e a diagnosticar a história clínica de pacientes, como é o caso em questão. Daí a necessidade de pensarmos o uso da língua.

Nas línguas românicas, somente o Português e o Espanhol conservaram os verbos SER e ESTAR como sendo verbos de significados e atributos diferentes, ou seja, o SER é um verbo de atributo permanente e o ESTAR é de atributo transitório, logo o SER é a condição, a constituição de alguém, a permanência, ao passo que o ESTAR diz respeito a algo passageiro, a um estado de não permanência.

Dito isso, quando se afirma ou se pergunta se alguém é imundo, ainda que o falante não pense na diferença entre um verbo e outro, ao analisarmos o sentido à luz da Análise do Discurso, percebemos que há uma grande diferença entre perguntar ou afirmar que esse alguém está imundo, uma vez que os verbos SER e ESTAR, como já destacado, são semanticamente diferentes. Ser imundo é ser abjeto, é o que provoca nojo, é a identidade do sujeito; diferente daquele que está imundo, mas que poderá tornar-se limpo, pois trata-se de um estado da pessoa, não de sua essência. A sentença Paulo é imundo, liga o sujeito Paulo a uma condição inerente a ele, é um atributo permanente, determina sua natureza, ao passo que Paulo está imundo, fala de uma condição, de um estado passageiro. Paulo pode se lavar e ficar limpo, ou alguém pode ensinar a Paulo as regras de higiene.

A etimologia do termo imundo vem do Latim, língua que deu origem a última Flor do Lácio, inculta e Bela[10]— nossa Língua Portuguesa —.  O vocábulo imundo, segundo o dicionário de Latim, originalmente escrito immundo, tem mais de um significado, como ausência de ornamento, ausência de um vestuário elegante; mas 

também aquilo que não pode ser lavado ou purificado, sujeira, porcaria ou impureza, logo, chamar alguém de immundo é chamar de porco, de sujo, ou de impuro. O vocábulo pode ser assim dividido: in+ mundo = a não limpo, pois o in aqui é um prefixo de negação, e o mundo é aquele que é limpo, asseado.

Logo, não há como ignorar que o vocábulo imundo, desde sempre, serviu para estigmatizar e separar os que eram considerados limpos e asseados dos considerados sujos, pobres, maltrapilhos; aqueles que provocam asco. O fato de médicos e sanitaristas ter utilizado esse vocábulo como um operador clínico e social, não impede que o reconheçamos também, a despeito dos seus reiterados esforços no cuidado com a  saúde mental, como elitistas e preconceituosos com as populações pobres.  

Lamento muito que máquinas do tempo só existem na ficção, principalmente porque os documentos arquivísticos não mostram o cotidiano dessas crianças: suas brincadeiras, seus desejos, seus medos, seus gritos, suas lágrimas, suas vozes, tampouco as relações que os médicos, a enfermagem e os demais funcionários estabeleciam com elas, se as acalentavam, se conversavam com elas, se atendiam aos seus desejos ou simplesmente  ignoravam suas queixas e as castigavam; mas esses são os limites que encontramos, os hiatos da história, que muitas vezes ansiamos por preencher, mas que é impossível, e haverá sempre os silêncios e os hiatos. Diante disso, o que me compete é empenhar-me em trazer à luz parte do que está há tantos anos encerrado nas entranhas do tempo[11]. Ainda bem que temos ao menos os documentos...

Apesar de saber que mexer nesse passado não seria uma empreitada fácil, que além de todos os obstáculos ainda corro o risco de ser acusada de cometer anacronismo histórico ou presentismo, sobretudo por não ser historiadora, resolvi enfrentar os desafios, e para tanto lancei mão de bibliografias sobre o fazer histórico e as diferentes concepções sobre o estudo do passado, da memória e das formas de encarar a questão do anacronismo no campo da história. O fiz com o coração tranquilo, porque além de ser uma pesquisadora das Letras, estou deveras implicada nesse labirinto, como sujeito que faz e que sofre a ação do seu objeto de 

estudo e que se perde nesse emaranhado todo, por isso não me sinto impedida de contar e de problematizar uma história que também é minha. Mas esta não é uma tese de História, é uma narrativa que decorre de uma tese de orientações psicossociológica e que busca preencher os silêncios do passado, o que não foi explicitado abertamente pelos alienistas da época, como, por exemplo, a utilização do adjetivo imundo.

E sobre ser ou não ser anacrônica, cometer ou não o presentismo, fui atrás de Didi-Huberman (2015), de Jacques Rancière (2011), de Paul Veyne (1998), de Nicole Loraux (2005), entre outros pensadores que abordam a questão ainda polêmica, enfrentada por todo pesquisador que se dedica a estudar o passado. É possível não ser anacrônico?  Eu precisava refletir sobre isso para lidar com afirmações, que, vira e mexe, se colocam em meu caminho: “mas naquele tempo era assim que a sociedade pensava”; “Ah, fulano era um homem do seu tempo”; “mas naquela época o termo imundo poderia ter outro significado”; “mas, você tem que ver que era outro contexto”, etc, etc, etc.

Começo com Georges Didi-Huberman, um dos mais influentes pensadores franceses contemporâneos, sua produção passeia pela história, filosofia, estética, psicologia e psicanálise; atualmente é professor da L’École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, e no livro em questão ele se dedica a discutir o anacronismo no estudo da história da arte. Para ele:

 

O anacronismo é necessário, o anacronismo é fecundo quando o passado se revela insuficiente, e até mesmo constitua um obstáculo à sua compreensão. O anacronismo poderia não ser reduzido a um horrível pecado, como quer todo historiador; ele poderia ser pensado como um momento, como uma pulsação rítmica do método, fosse ele seu momento paradoxal de síncope, perigoso como o é necessariamente todo risco. (p. 25)

 

 

Em sua argumentação, ele destaca que os historiadores vivem um paradoxo, pois sabem que não há como fazer história sem cair no anacronismo, que não há como estudar o passado sem ser anacrônico; no entanto, apesar disso, não conseguem se descolar dos ensinamentos do mestre da história dos Anales, Lucien Febvre, quando ele afirmava ser o anacronismo o pior dos pecados do historiador. E Didd-Huberman vai mais longe ainda, quando afirma:

 

Este é o paradoxo:  dizemos que fazer história é não cometermos o anacronismo, mas também dizemos que só é possível voltar ao passado com o presente dos nossos atos de conhecimento. Reconhecemos, então, que fazer história é cometer pelo menos um anacronismo. Qual atitude tomar diante desse paradoxo? Ficar calado? {...} Não é o anacronismo o único modo possível de dar conta, no saber histórico, das anacronias da história real? (p. 36-37)

 

Rancière, por sua vez, ao refutar Lucien Febvre toca num ponto essencial dessa discussão, que é a necessidade de se descontruir o anacronismo, de libertá-lo da sua sina de pecado mortal. Para ele, o anacronismo é “um conceito poético que serve como solução filosófica da questão sobre o estatuto da verdade do discurso do historiador” (op cit. p. 22).  E por questões filosóficas pode-se, por exemplo, pensar no tão utilizado argumento de que todo homem é homem do seu próprio tempo, quando se acredita poder eximir alguns homens do passado de atos que, aos olhos do presente, seriam inaceitáveis, como a escravidão, o racismo etc. Nesse caso cabe a indagação: mas não existiram nesse passado homens à frente do seu tempo? Homens que não compactuaram com essas indignidades? É claro que sim, e por isso a história é móvel.

E Paul Veyne aprofunda a discussão quando afirma que o fazer histórico está para além de todos os documentos, uma vez que nenhum documento é o próprio evento, mas sim uma narrativa, e para ratificar sua concepção, ele se utiliza de argumentação de Gerard Genette de que “a história é diegesis e não mimesis” (op. cit. p.20), ou seja ela narra os acontecimentos, não os reproduz como aconteceu de fato, não os mostra, porque isso é impossível.

Nicole Loraux, por seu turno, me diz que sem uma certa dose de anacronismo o pesquisador do passado ficaria “paralisado, proibido de ousar, ao contrário do antropólogo, que em condições análogas, recorre, sem constrangimento, à prática da analogia” (p.188).

E com o aval de Did-Huberman, de Ranciére, de Paul Veyne e de Loraux, me permito cometer, pelo menos, um anacronismo, que é o de analisar o adjetivo imundo, utilizado no passado do HNA, com as ferramentas que o tempo presente me dá. Preciso do anacronismo para adentrar os muros do HNA, para fazer aos alienistas, como diz Loraux, “as perguntas que eles não fizeram, ou, ao menos, não formularam”, ou, muito provavelmente, não consideraram importantes.

Bibliografia, clique aqui

 
 


[2] Arquivo Nacional, IS3. Relatório de 1894, p.13

[3] Arquivo Nacional, IS3. Relatório de 1901, p.7

[4] Arquivo Nacional, IS3. Relatório de 1902.

[5] Arquivo Nacional, IS3. Relatório de 1902.

[6] Arquivo Nacional, Série Saúde. IS 3.

[7] Arquivo Nacional. Série Saúde. IS-2. 947

[8] Arquivo Nacional, IS3. Série Saúde.

[9] Arquivo Nacional, IS3. Série Saúde

[10] Expressão utilizada no 1º verso do soneto de Olavo Bilac: Língua Portuguesa.

[11] Há alguns trabalhos sobre o Pavilhão Bourneville, mas não encontrei nenhum que se dedicasse a pesquisar a categoria de imundo.
 
Arquivos:

BR_RJANRIO_BD_IS3_0021 Relatórios sobre o Hospício Nacional de Alienados para o Ministro da Justiça, referente ao ano de 1900 – 02 de março de 1901 e documentação em geral

BR_RJANRIO_BD_IS3_0022 Relatório sobre o Hospício Nacional de Alienados para o Ministro da Justiça, referente ao ano de 1901 - fevereiro de 1902

RJANRIO_BD_IS3_0023   Relatórios sobre o Hospício Nacional de Alienados para o Ministro da Justiça, e documentação em geral para o ano de 1903

BR_RJANRIO_BD_IS3_0026  Relatórios sobre o Hospício Nacional de Alienados para o Ministro da Justiça, referente ao ano de 1908 – março de 1901 e documentação em geral

Mapas:

BR RJANRIO GE.0.MAP.1 - Planta geral da universidade em construção na praia da Saudade - Botafogo, [192-]. Eulalia Maria Lahmeyer Lobo

BR RJANRIO 04.0.MAP.223 - Planta da cidade do Rio de Janeiro, organizada pela Repartição da Carta Cadastral da Prefeitura do Distrito Federal - 1908 (Mapa dos novos distritos municípais urbanos com a discriminação dos respectivos limites). Departamento Nacional de Obras de Saneamento

Fotografia:

BR RJANRIO PH.0.FOT.35126 - Juliano Moreira - foto editada - Tókio, s.d

 

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