O tradicional – quase medieval – termo “índio” ainda foi utilizado no texto da Constituição promulgada em 1988 como referência aos povos originários do território que atualmente constitui o Brasil – embora o termo já fosse questionado devido às suas origens coloniais, carregado de enganos históricos e preconceitos insidiosos. No entanto, a nova Carta Maior brasileira alterou as relações entre o Estado e os povos indígenas, originários desta terra, e em consequência, acabou estabelecendo novos parâmetros para as formas com que a sociedade geral, de “não-índios,” deveria lidar com estes povos.
O Estatuto do Índio, criado pela ditadura militar em 1973 como forma de responder às críticas e denúncias (inclusive e principalmente, internacionais) em relação à forma com que os povos indígenas estavam sendo atropelados pelo projeto desenvolvimentista que implementava projetos de infra estrutura que avançavam sobre os direitos e as vidas indígenas, ainda estava em vigor quando a nova Constituição começou a ser elaborada em 1987. A Constituição que foi promulgada em outubro de 1988 recusava as noções de “integração” e “tutela” que marcaram as políticas indigenistas anteriores para reconhecer a originalidade das populações indígenas e seu direito à existência não apenas biológica, mas cultural e histórica, e também sua autonomia.
Há um capítulo específico: o VIII do Título VIII, “Dos índios”:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
Fica claro, pelo texto constitucional, que os direitos indígenas sobre suas terras são “originários,” ou seja, anteriores à existência do Estado brasileiro, ainda que este tenha a obrigação legal de garantir estes direitos. Nas Disposições Constitucionais Transitórias, fixou-se em cinco anos o prazo para que todas as terras indígenas no Brasil fossem demarcadas. Porém, o prazo não se cumpriu, e atualmente assistimos, estarrecidos, a discussão em torno de um absurdo “marco temporal” que busca expropriar terras indígenas com base na ficção de que há uma data a partir da qual um determinado território pode ou não ser considerado terra indígena. Caso esta tese, que conta com amplo apoio de um Congresso Nacional de direita em que as bancadas do boi, bala e bíblia conseguem se impor, e já considerada inconstitucional pelo Superior Tribunal Federal (STF) ganhe validade não apenas futuras demarcações estarão ameaçadas, mas demarcações já realizadas poderão ser “revistas” – em favor, obviamente, de grandes empresas do agronegócio, cujo poder destrutivo para a vida é amplamente conhecido: ameaça à biodiversidade, à vida das populações locais (e não apenas indígenas), à saúde da população em geral (uso de agrotóxicos como maior exemplo), à existência de florestas, ao equilíbrio ecológico. Organizadas – desde há muito – as populações indígenas continuam sua luta, em espaços políticos, institucionalizados, ou não, em busca de segurança e dos seus direitos.
Como em muitos outros temas e questões essências para o país, e para a democracia brasileira, nossa Constituição vem sofrendo ataques em função da necessidade de regulamentação e também da atual desarticulação dos movimentos sociais na defesa de direitos conquistados ou mesmo vislumbrados ao longo do processo de redemocratização dos anos 1980.
Fotografia do fundo IBASE.
BR_DFANBSB_AA3_0_DTI_DCI_0003: Dossiê Parque Indígena do Araguaia [1969-1982] (mapa)
BR DFANBSB AA3.0.MRL.6: Documentação sobre interferência da Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAI) e Conselho Indigenista Missionário (CIMI). [1978-1980]