Em 13 de março de 1964 o presidente da República João Goulart discursou para cerca de 200 mil pessoas em frente à estação Central do Brasil, Rio de Janeiro. Organizado pelo Comando Geral dos Trabalhadores, o comício seria usado como instrumento de pressão pelo então presidente diante de um Congresso Nacional inseguro, com tendências conservadoras, que se recusava a realizar as reformas que Jango pretendia. Não há evidências de que João Goulart planejasse um golpe, e muito menos implantar o comunismo no Brasil, mas o auge da chamada Guerra Fria empurrava as posições para extremos e aquele comício, e outras atitudes de Jango diante de questões caras aos setores conservadores, empresário e militares seriam usados como pretexto para derrubar o presidente democraticamente eleito.
O mês de março seria encerrado com um golpe militar consolidado em 1º de abril, inaugurando um período de ditadura militar violenta e insidiosa que impediu o pleno desenvolvimento da cidadania em nosso país, aspecto nítida e amargamente percebido até hoje nas nossas ruas, redes sociais, instituições políticas.
Embora o ‘povo na rua’ tenha uma conotação quase mítica associada a democracia (talvez desde a Revolução Francesa), muitas vezes o povo está na rua para defender não seus interesses diretos, mas tradições, apelos vagos, medidas antidemocráticas e que muitas vezes vão contra os interesses das camadas populares. Um exemplo disso são os milhões de pessoas que foram às ruas pouco depois do comício da central, nas chamadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, em que valores tradicionais da “família brasileira” foram defendidos com ardor religioso diante de uma suposta ameaça comunista – na verdade, contra um governo popular e forças populares organizadas que o apoiavam.
As razões que levam trabalhadores a se identificarem com projetos que são amplamente desfavoráveis a eles mesmo são muito complexas, e em geral as raízes desse comportamento encontram-se – entre muitas outras coisas – na dificuldade de os indivíduos identificarem-se de acordo com as questões e dificuldades que os unem. Assim, o pano de fundo de tradições, da moralidade, da religião acaba aglutinando pessoas que têm dificuldade em perceber a origem das suas dificuldades diárias, materiais e portanto, que as soluções para as mesmas encontram-se na atuação junto àqueles com as mesmas dificuldades.
Em muitas ocasiões também vemos ruas lotadas de gente em função de uma estrutura oferecida, desde transporte até lanches e camisetas – afinal, quem não quer passar um dia em Copacabana, com lanche e transporte gratuitos?
O povo na rua, para além de mitos e paixões, expressa apenas a insatisfação crescente de uma massa de indivíduos, não necessariamente um movimento organizado, consistente e com objetivos políticos claros. Certamente estas fronteiras são vagas, mas oferecem um norte para compreendermos como e porque multidões tomam as nossas ruas. As fotos desta matéria ilustram um movimento sindical (urbano e rural) presente e muito bem organizado, com pautas claras em defesa da sua própria classe. Nas Marchas subsequentes, vemos mulheres de classe média alta caminhando ao lados das suas “empregadas,” carregando faixas em defesa de uma religião em comum e de tradições sempre narradas pelas próprias elites.
As imagens nos fazem pensar se estes parâmetros ainda podem ser aplicados, se ainda oferecem uma ponte de compreensão para determinados fenômenos. Depois das passeatas de 1968 (de estudantes, trabalhadores, classes médias) o povo só voltaria a ocupar as ruas em 1984, na campanha pelas Diretas-Já. Aglutinando um amplo espectro de forças políticas, organizado por instituições (OAB, por exemplo) e partidos, levou milhões às ruas. Os protestos contra a corrupção no governo Collor de Melo em 1992 levaram à sua queda, e foram impulsionados por um movimento vago em prol da “Ética na política,” mas com uma grande e única bandeira concreta: a queda do presidente.
Mais recentemente as chamadas “jornadas de junho” (de 2013) se apresentaram como um movimento mais vago ainda, e nas ruas das nossas cidades pessoas que defendiam saudosamente a ditadura militar dividiam espaço e palavras de ordem com jovens anarquistas. Entre ambos, um mar de pessoas dos mais variados pontos de vista políticos, e muitas vezes, sem absolutamente nenhum ponto de vista, apenas um desejo indefinido de protestar contra “o que está aí.”
Não há nada errado em protestar contra “o que está aí.” Não precisa ser filiado a partido, integrar sindicato ou qualquer outra entidade da sociedade civil para ter noção do que está errado e do que poderia mudar. Insatisfações populares são legítimas, mas nunca devemos esquecer para onde elas caminham. Lutas políticas apresentam-se sob diferentes formatos, e certamente a forma de protesto hoje é diferente de 50 anos atrás.
Mas os questionamentos permanecem: quem vai às ruas, o quê de fato está defendendo? E porquê?
A democracia? Muitos já foram às ruas para derrubar governos democráticos e instaurar ditaduras.
O fim da corrupção? Nossa história é marcada pelo oportunismo de indivíduos que se aproveitaram de uma bandeira tão cara ao nosso povo para ganhar projeção política.
São muitas as motivações, as escolhas, as formas de protesto. Por isso mesmo, é mais importante do que nunca nos perguntarmos o que de fato querem as pessoas que hoje em dia vão às ruas protestar.
As fotografias exibidas nesta matéria pertencem ao fundo Agência Nacional, dossiê BR_RJANRIO_EH_0_FOT_PRP_08001. Rio de Janeiro, 13 de março de 1964.
Rubens, Figueiredo (org). A sociedade enfrenta o Estado. Editorial Summus, 2014