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Em 2024 o Dia da Consciência Negra – 20 de novembro, marco da morte de Zumbi dos Palmares, líder do notório quilombo – foi celebrado pela primeira vez como feriado nacional. A lei que instituiu o feriado, aprovada no final de 2023, acelerou um movimento que vinha ocorrendo em várias cidades e estados brasileiros: antes da lei federal, Amapá, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Alagoas, Amazonas e São Paulo já haviam estabelecido o feriado estadual, além de milhares de cidades brasileiras que fizeram o mesmo ao longo dos anos.

Na Porto Alegre do início da década de 1970, em plena ditadura militar, um grupo de universitários negros passou a se reunir para debater a história dos seus ancestrais e também estratégias possíveis de combate à desigualdade e discriminação impostas à população afrodescendente. Formou-se assim o grupo Palmares, e deles foi a iniciativa de instituir o 20 de novembro como o dia de celebração da resistência negra, simbolizada por Zumbi dos Palmares. Contraponto à data oficial de 13 de maio, marco da assinatura da abolição da escravatura pela princesa Isabel de Orleans em 1888, o 20 de novembro espalhou-se pelo Brasil, orientando discussões acerca dessa história oficial sempre contada a partir do ponto de vista dos brancos. A imagem de uma boa princesa a conceder a liberdade aos pobres “escravos”, passivos em sua desgraça e servidão, passou a ser cada vez mais questionada, em especial como símbolo de libertação de um povo que fora roubado das suas terras pelos antepassados dessa mesma princesa. Ao longo dos anos os movimentos negros deram cada vez mais as costas ao 13 de maio e abraçaram o 20 de novembro como um dia de resistência e conscientização, questionando se houve de fato uma libertação em 13 de maio de 1888.

No ano do centenário da abolição – 1988 – o debate tomou a sociedade brasileira e não apenas os movimentos negros. Foi também o ano em que a nova Constituição – a Constituição-Cidadã – foi promulgada, com uma série de avanço no campo social, apesar de inúmeras lacunas deixadas a cargo da legislação ordinária. Apesar de contar com apenas 11 congressistas negros na Assembleia Nacional Constituinte, o movimento conseguiu se fazer ouvir e aproveitou o centenário da abolição para envolver a sociedade brasileira na discussão sobre desigualdade racial, discriminação em todas as esferas, estratégias de combate ao racismo.

 O Serviço Nacional de Informações, às portas do seu encerramento, ainda atuava intensamente em 1988, e seus funcionários – assim como seus dirigentes – enxergavam todo e qualquer movimento social como ameaça à uma suposta coesão social que na verdade sempre se mostrou problemática, para dizer o mínimo. Percebiam os questionamentos do movimento negro como uma ameaça à paz social, promotores de uma cisão na sociedade brasileira. O discurso oficial, em especial promovido pela ditadura militar, sempre privilegiou uma história de heróis brancos, quase sempre homens, verdadeiros titãs a impulsionar a humanidade em direção ao progresso.

Assim, o incisivo posicionamento do movimento negro em relação à “versão oficial” da abolição causava espanto e receio entre as forças reacionárias que restavam da ditadura militar dentro do Estado democrático de 1988: “a recém-criada "Fundação Palmares" tem como candidatos naturais à sua diretoria ativistas do movimento negro, incrustados no PROCEN, ou por este indicados. Se, atualmente, através de apenas um órgão transitório e de assessoria, o PROCEN, tais ativistas, providos de recursos públicos, conseguem mobilizar a comunidade negra buscando gerar focos de sedição, de que não serão capazes, caso assumam o controle de uma fundação? E o que dizer de outras seitas, que pedem aos negros uma reação ativa ?”

Nesse contexto, a Marcha contra a farsa da abolição certamente se mostrou uma afronta para os setores conservadores da sociedade brasileira, mas àquela altura, com escolas de samba expressando o descontentamento disseminado pelo movimento negro, uma nova constituição e a democracia já mostrando que viria de fato, não havia mais retorno. Se a mídia e o Estado preparavam-se para celebrar uma data cívica como todas as outras – uma benevolência oficial liderada por “grandes personalidades” -, os afrodescendentes, objeto e receptáculo dessa benevolência, levantaram suas vozes para dizer que não há muito o que comemorar, pois o negro continua explorado, oprimido, empobrecido. A partir de então estes questionamentos não mais deixaram a arena política, enfatizando cada vez mais que a população que foi “libertada” pela princesa em 1888 tampouco era passiva e submissa à agência das elites.

Todos os documentos apresentados são do fundo SNI e do ano de 1988:

br_dfanbsb_v8_mic_gnc_aaa_88068193_d0001de0001

br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ccc_88015887_d0001de0001

BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_III_88008304_d0001de0002

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