.

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos,
A vida inteira que poderia ter sido e não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico.
Diga trinta e três.
Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
Respire
O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
e o pulmão direito infiltrado.
Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
(Manuel Bandeira. Pneumotórax, 1966)

 

Os versos de Manuel Bandeira, poeta modernista e tísico, é um dos exemplos mais emblemáticos de como a tuberculose permeou a produção literária brasileira na primeira metade do século XX. O diagnóstico de infecção pelo bacilo de Kosh, anterior ao desenvolvimento quimioterápico eficaz contra a doença, era uma sentença de morte e vitimou intelectuais, literatos, poetas e artistas ao longo da história; nomes como Castro Alves, Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, mortos aos 20 anos por causa da enfermidade.

A experiência vivida da enfermidade chega até nós em versos e prosa, através de relatos amargos, pessimistas, sarcásticos, melancólicos, ironizando a morte iminente e não menos comum, romantizando o sofrimento, ao qual se atribuía a inspiração de poetas e escritores, a “febre das almas sensíveis”. A romantização da condição tuberculosa pela elite intelectual, contrastava e, de alguma forma, silenciava as altas taxas de mortalidade que acometia a população mais pobre.

Não se tem um consenso de como a “peste branca” chegou ao Brasil, certo é que foi uma das principais causa de óbito entre a população nativa e de africanos escravizados na América portuguesa durante o período colonial. E logo tornou-se uma marca da epidemiologia no país.

Quando do advento da República, em fins do século XIX, a tísica constituía-se como uma das maiores preocupações das autoridades sanitárias, sobretudo nos grandes centros urbanos. O entendimento médico sobre a tuberculose relacionava sua propagação a fatores hereditários e às condições de miséria em que vivia a população nas cidades. A descoberta da bactéria causadora da tuberculose, em 1882, foi fundamental para o entendimento da dinâmica da doença, transmissível através do ar e no contato com pessoas doentes.

A crescente urbanização e industrialização do país acentuava as más condições de vida e que estavam submetidos a população mais pobre, moradias insalubres, alimentação precária e locais inadequados de trabalho foram fatores importantes para a exposição ao bacilo de Koch, assim como outras doenças epidemiológicas, daí a grande preocupação das autoridades sanitárias em derrubar os cortiços e abrir novas e largas avenidas. A noção de doença social, de flagelo social ou doença operária tornava-se cada vez mais forte no país.

O projeto modernizante republicano tinha na Saúde Pública um dos seus pilares: o controle das enfermidades que atingiam o corpo social seria fundamental para a dinamizar a circulação de pessoas e mercadorias, importante para o desenvolvimento econômico do país. A criação do Ministério da Educação e Saúde Pública em 1930 é um marco na ação do estado contra as epidemias que assolavam as cidades brasileiras.

O governo de Getúlio Vargas foi o responsável pela elaboração do primeiro plano nacional e centralizador do combate à tuberculose, que segundo o higienista João de Barros Barreto, diretor do Departamento Nacional de Saúde, era a “ameaça sanitária número 1 do país”; bem como pela criação do Serviço Nacional de Tuberculose. O eixo central do plano era o isolamento de doentes em uma rede de sanatórios[1] federais especializados que seriam construídos nas periferias dos principais núcleos urbanos brasileiros.

Preconizado pela clínica europeia, o tratamento higiodietético prevaleceu desde o século XIX. Uma boa alimentação, repouso, o clima das montanhas seriam condições favoráveis para a cura espontânea dos pacientes. Nas instituições sanatoriais, os internos eram submetidos a um rígido esquema disciplinar, higiene, repouso, alimentação e ar puro; o acompanhamento médico dos internos podia perdurar por vários anos.

Os mais famosos sanatórios para o tratamento dos doentes do pulmão ficavam nas serras frias do estado de São Paulo, indicados para o tratamento climatoterápico. Com destaque para Campos do Jordão e São José dos Campos, que atraíam muitos enfermos, promovendo o desenvolvimento da região como estância climática. No entanto, os leitos eram poucos e caros, a conquista de uma vaga sanatorial não era coisa fácil, o que escancarava ainda mais a desigualdade social característica da sociedade brasileira.

A educação sanitária também foi princípio norteador da política de saúde pública durante o período, determinando hábitos e comportamentos “corretos” e “saudáveis” para o tecido social. “Nesta ação, o médico travestiu-se de educador, reclamando para si o comando das tarefas orientadoras da higiene e da moralidade que deveriam promover o bem-estar individual e o compromisso produtivo da vida em sociedade (...) Em nome da tísica, buscava-se orientar os contingentes pobres, em conformidade com os princípios da vida moderna, equilibrada, saudável, honesta, enfim, de utilidade produtiva para a nação” (BERTOLLI, 2001). O tuberculoso foi associado a pessoas pobres e/ou com comportamentos degradados e viciados, por isso contraíram a doença. Seria imprescindível um estilo de vida comedido e regrado. Isolados do convívio social em sanatórios, os doentes seriam tratados física e moralmente.

Em 1936, ocorreu um avanço tecnológico para o diagnóstico da doença, a abreugrafia – uma fotografia dos pulmões rápida e de baixo custo, passando a ser comum um cadastro torácico e a apresentação do exame para controle nas admissões em instituições e empresas. Apesar de facilitar o diagnóstico, a abreugrafia não modificou o tratamento na sua essência, que continuou assentado no isolamento dos pacientes em sanatórios e em experiência cirúrgicas invasivas como o pneumotórax[2] e a toracoplastia[3].

A quimioterapia específica contra a tuberculose só foi descoberta em 1945, uma combinação de drogas que prometia debelar a peste branca. A adoção do tratamento medicamentoso foi responsável por uma drástica redução da mortalidade pelo bacilo de Koch no Brasil. Sobretudo, a partir de década de 1950, quando os Centros de Saúde passaram a distribuir gratuitamente o coquetel de drogas preconizado contra a tuberculose. A partir de então, os antigos nosocômios foram paulatinamente encerrando suas atividades por falta de pacientes. Mesmo com um tratamento longo – de 6 a 18 meses de antibióticos diários –, os doentes poderiam conviver na sociedade ou com suas famílias e não mais segregados do convívio social, pois a partir do início do tratamento, não haveria mais risco de contágio.

A tendência decrescente da letalidade não foi acompanhada pela redução no número de casos, em ascendência nas principais cidades que passavam por intenso processo de urbanização. A estigmatização dos doentes tísicos também não acompanhou os avanços científicos relacionados a prevenção e cura da enfermidade, que teve como grande aliado a vacinação obrigatória em crianças de 0 a 4 anos a partir de 1978[4].

O receio de expor o diagnóstico da doença, cercado de estereótipos, contribui para a apagamento da doença, tida como uma doença circunscrita ao passado dos sanatórios, do isolamento e segregação dos doentes, fadados à morte certa. Atualmente, é reputada como o mal dos poetas, erroneamente encarada como uma doença erradicada. Mas, na verdade, ela atravessa séculos, ainda está viva e é a doença infecciosa que mais mata no mundo, com números maiores do que a AIDS e a malária, mesmo após o desenvolvimentos de drogas e da vacina BCG.

Legendas das imagens:

Planta da Liga Brasileira contra a Tuberculose, criada em 4 de agosto de 1900, por iniciativa de médicos e intelectuais da cidade do Rio de Janeiro, com o propósito de combater a tuberculose que causava alta mortalidade, principalmente na Capital Federal. A Liga atuava através dos dispensários, prestando assistência médico-social aos tuberculosos. Rio de Janeiro, 1905. Comissão Construtora da Avenida Central. BR RJANRIO 1C.0.MAP.0001.2

Unidade móvel do Serviço Nacional de Tuberculose examinando alunos do Instituto Quinze de Novembro. Rio de Janeiro, 19 de março de 1953. Agência Nacional. BR RJANRIO EH.0.FOT.EVE.5726

Hospital sanatório Belém, em um bairro rural de Porto Alegre. Foi criado por um grupo de médicos tisiologistas para tratar a tuberculose, tornando-se um hospital modelo. Em 1938, Getúlio Vargas fez um aporte de recursos que garantiu a conclusão da 1a fase das obras. Porto Alegre, 14 de outro de 1943. BR RJANRIO EH.0.FOT.PRP.587

Leia mais em:

BERTOLLI FILHO, C. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950 [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001. 248p. Antropologia & Saúde collection.

GONÇALVES, H.: A tuberculose ao longo dos tempos. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. VII(2): 303-25, jul.-out. 2000.

 

[1] Algumas instituições filantrópicas, como a Liga Brasileira contra a Tuberculose, já em fins do século XIX, já pressionam pela criação de dispensários e sanatórios para os cuidados com os tuberculosos. Mas até então não existia uma preocupação governamental com a epidemia.

[2] Introdução de gás na cavidade toráxica a fim de imobilizar a parte do órgão comprometida pelos bacilos.

[3] Retirada de uma ou mais costelas com o objetivo de comprimir as cavidades tuberculosas e estancar o sangramento.

[4] A vacina BCG, criada pelos pesquisadores Albert Calmette e Camille Guerin, foi aplicada pela 1ª vez ainda em 1921 na França, mas, somente em 1942, a Academia Nacional de Medicina de Paris reconheceu como imunização ativa contra a tuberculose. Inicialmente a vacina era administrada de maneira oral, só posteriormente que se adotou a aplicação intradérmica. No Brasil, essa nova forma de utilizar a BCG foi iniciada a partir de 1968 e baseia-se na injeção da substância no braço direito, mais precisamente na região deltoideana.

Todo o conteúdo deste site está publicado sob a licença  Creative Commons Atribuição-SemDerivações 3.0 Não Adaptada.