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O fim da trágica guerra mundial que se desenrolou entre 1914 e 1918 desencadeou uma série de mudanças profundas na organização política e suas instituições, na organização da economia e do sistema financeiro, na forma com que as pessoas percebiam o mundo – entre outras. Uma das profundas mudanças que a guerra acarretou diz respeito ao papel do arcabouço jurídico-político e do próprio Estado no agenciamento da cidadania e do bem estar dos seus nacionais. O pós-guerra assistiu a uma profunda crise no tradicional liberalismo herdado do século anterior, segundo o qual os direitos estabelecidos – primordialmente nas Constituições, vistas como fundadoras dos Estados – bastavam para a realização da vida nessa comunidade de futuro que é o Estado moderno. Esta abordagem é compreensível no contexto de rompimento com as antigas tradições absolutistas, pois buscavam limites à atuação do estado e dos governantes, garantindo liberdade e segurança mínimas dos indivíduos diante do poder que outrora fora ilimitado.

Estra tradição liberal encontrou seu limite nas primeiras décadas do século XX, face a devastação causada pela Primeira Guerra e pela crise econômica violenta que abalou boa parte do mundo em 1929. Tornou-se claro que, para uma efetiva consolidação da democracia a atuação do Estado teria que ser positiva, indo muito além de garantias formais de indivíduos tão diversos, inseridos em sociedades tão desiguais. Mais: a crise de 1929 explicitou a incapacidade de o sistema capitalista internacionalizado se auto gerir, demandando uma participação mais ativa nesse sentido.

As primeiras Cartas Magnas a refletirem esta abordagem – o constitucionalismo social – foram as mexicanas (1917) e a alemã (República de Weimar, 1919). No Brasil, a Constituição de 1934 incorporou alguns dos seus princípios, embora os mesclasse com aspectos arraigados do nosso tradicional autoritarismo e excessivo intervencionismo econômico. A Carta de 1934 inaugurou a presença expressa de direitos sociais como forma de minimizar a situação de grupos vulneráveis, preocupação esta que nunca mais deixou nossas constituições – nem mesmo as explicitamente autoritárias. Ela traz um título dedicado à Ordem Econômica e Social, e também um sobre Família, a Educação e a Cultura, em que são colocados os direitos do cidadão e os deveres do Estado para com este. A garantia de exercício do direito à propriedade “em toda a sua plenitude” (ou seja, sem limite) não entrou nesta Constituição, que no entanto estabelecia que o direito de propriedade “não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo”. Ela estabelecia um mecanismo de acesso à justiça gratuita e assistência jurídica que permitia que as pessoas mais pobres lutassem pelos seus direitos. Determinava que o poder público tinha o dever de amparar os indigentes, e tais aspectos mostram-se fundamentais para o desenvolvimento de uma cidadania de fato, pois sem justiça para todos e conforto material mínimo não há democracia possível.

 

A justiça do trabalho nasce em 1934, assim como dispositivos de proteção ao trabalhador. Esta herança permanecerá ao longo das décadas seguintes, após ser reformulada e fortalecida pelo governo de Getúlio Vargas (1937-1945) mesmo durante o período ditatorial, regido pela Constituição de 1937.

A Carta de 1934 não conseguiu efetivar-se, já que durou apenas 3 anos – até que novos ventos autoritários inaugurassem o que Vargas chamava de Estado Novo (1937-1945), um regime de exceção que, apesar dos avanços legais em termos de garantias do trabalho frente ao capital, precarizava o exercício de qualquer direito, transformando-os em uma dádiva presidencial, vetando aos cidadãos a possibilidade de exigir que o Estado cumprisse o que estabelecia em papel.

Pouco se pode dizer em relação ao desenvolvimento da cidadania em solo brasileiro sob a égide da Constituição de 1937, que concentrava poderes nas mãos do Executivo e impedia que os cidadãos exigissem do Estado a concretização de qualquer direito estabelecido em lei. Regime de exceção que transformava demandas em ameaças e direitos em favores, o Estado Novo manteve em escrito conquistas anteriores, em especial aquelas relativas a percepção do Estado como promotor da cidadania e da diminuição das desigualdades, mas sufocou o processo social que poderia ter ensejado a consolidação de tais direitos e a conquista de novos.

Os trechos aqui exibidos fazem parte da Constituição de 1934, sob guarda do Arquivo Nacional – assim como todas as nossas Constituições.

BR RJANRIO.DK.C34.CST, 0001

Leitura recomendada

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Editora Catavento, 2007.

SAES, Décio Azevedo Marques de. A questão da evolução da cidadania política no Brasil. Estud. av. [online]. 2001, vol.15, n.42, p. 379-410. https://doi.org/10.1590/S0103-40142001000200021

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