Manifestações políticas populares ocupando as ruas das cidades modernas integram o nosso imaginário político há séculos – talvez, desde a Revolução Francesa. Embora apresentem uma ampla diversidade em relação a vários aspectos – tamanho, organização, composição social, uso de ataques a propriedade pública ou não, propósitos (ou falta de)... – em geral “o povo na rua” evoca transformações, mudanças, democracia. A despeito da semelhança visual apresentada por manifestações populares, de forma alguma elas podem ser compreendidas a partir apenas (ou mesmo primordialmente) deste aspecto.
Se a Passeata dos cem mil (1968, Rio de Janeiro) é celebrada mesmo após mais de meio século em virtude das motivações de quem foi para a rua naquele dia de junho – protestar contra uma ditadura agressiva e assassina – o mesmo não se pode dizer das várias “Marchas pela Família com Deus pela Liberdade” ocorridas em várias cidades do Brasil em março e abril de 1964, que mobilizaram milhões de pessoas em favor do golpe militar que iria inaugurar a supracitada ditadura. Mesmo se aceitarmos o argumento que a imensa maioria daquelas pessoas não tinha nenhuma ideia não só do que estava por vir mas do que de fato estava em jogo e quais atores políticos encontravam-se na origem e organização das “marchas,” a ampla mobilização em torno de temas profundamente conservadores, que explicitamente buscavam atingir um governo popular como o de Jango (alvo das manifestações) faz-nos pensar em uma ambiguidade profunda das noções de democracia expressas naquele movimento, que podemos perceber espelhadas em discursos e noções distorcidas nos dias de hoje.
Em 13 de março daquele ano João Goulart discursou para cerca de 200 mil pessoas em frente à estação Central do Brasil, Rio de Janeiro. Organizado pelo Comando Geral dos Trabalhadores, o comício seria usado como instrumento de pressão pelo então presidente diante de um Congresso Nacional inseguro, com tendências conservadoras, que se recusava a realizar as reformas que Jango pretendia. Não há evidências de que João Goulart planejasse um golpe, e muito menos implantar o comunismo no Brasil, mas o auge da chamada Guerra Fria empurrava as posições para extremos. Para piorar, a tradição política brasileira, autoritária e excludente, sempre enxergou nos movimentos sociais, nos questionamentos populares, na organização das classes trabalhadoras uma ameaça latente à uma “ordem” que existe apenas para favorecer as elites.
As “Marchas pela Família” espalharam-se por várias cidades brasileiras, e não apenas pelas capitais. Seu apelo girava em torno da necessidade de defender as famílias brasileiras da “comunização” crescente patrocinada pelo próprio governo, ameaçando a religião, a propriedade, a tradição. Acusavam João Goulart de promover a desordem, de planejar um golpe e de apoiar uma invasão vermelha por parte de comunistas soviéticos – entre outras coisas. Embora Jango pressionasse o Congresso por meios legais, o apoio popular às suas propostas era visto como sintoma de caos, desordem, comunismo. As marchas conclamavam as mulheres a saírem em defesa das suas famílias, e as forças armadas a defenderem a Constituição. Atuavam não como força política organizada, mas como indivíduos em seus espaços privados, condizente com a visão conservadora segundo a qual a mulher deve se limitar ao espaço doméstico.
Em 19 de março daquele ano, uma multidão tomou a praça da Sé, em São Paulo, e a manifestação, em vários momentos, ganhou os ares de uma missa, com lideranças políticas e religiosas puxando orações e gritos exortando a uma reação dos bons cristãos. Entre elas, mulheres como a esposa do governador da Guanabara Ademar de Barros, Leonor Mendes de Barros, e Carolina Ribeiro, ex-secretária de educação, que puxou um pai-nosso e anunciou que a família brasileira não admitiria o comunismo. Unindo Deus e Liberdade, a Marcha conclamava os cidadãos a agirem como cristãos, esvaziando a esfera de atuação política necessária ao exercício da cidadania. A presença de caravanas de cidades menores no interior do estado marcou o evento, fato que se repetiria no Rio de Janeiro, já em abril, e em outras capitais.
Quem financiou este movimento? A pergunta permanece sem uma resposta clara até os dias de hoje.
O fato é que à frente da organização das Marchas da Família com Deus pela Liberdade encontravam-se as cúrias e paróquias da Igreja católica e as organizações de mulheres conservadoras. Naquele contexto já havia várias delas, criadas em defesa da “tradição” espalhadas pelo Brasil, como a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), no Rio de Janeiro, a Liga da Mulher Democrata (Limde), de Belo Horizonte, ou a União Cívica Feminina (UCF), de São Paulo. Formadas em geral por devotas católicas, esposas de militares e empresários (em especial aqueles associados ao IPES/ IBAD), pertencentes às elites e famílias tradicionais, elas desenvolveram um ativismo muito peculiar que incluía o envio de telegramas e cartas às mães de família e a distribuição de material de propaganda anticomunista em igrejas, rádios, clubes. Faziam valer suas redes pessoais e exortavam as mulheres, via rádio, a fazerem o mesmo para defender suas famílias do comunismo. Esta mobilização integrava uma campanha de desestabilização do governo articulada e promovida por expressiva parcela do empresariado e das forças armadas para preparar um golpe e derrubar João Goulart, um movimento que vinha sendo gestado há anos.
Já em 2 de abril, a Marcha que desfilou pelo centro do Rio de Janeiro e aglutinou meio milhão de pessoas havia sido organizada como reivindicatória mas, por ter se realizado após o golpe, acabou se tornar uma comemoração do mesmo. Faixas saudando os militares, defensores da democracia e da família brasileiras, ocuparam as avenidas do centro da cidade. Ironicamente, foi uma das últimas manifestações de rua livres que o país veria, pois a partir daí a ditadura militar passaria a reprimir impiedosamente as passeatas e qualquer demonstração de insatisfação com o governo.
Sob o pretexto de defender a legalidade e a democracia, que alegavam estar ameaçadas pelo comunismo promovido pelo governo de Jango, as mulheres “de bem” foram às ruas e levaram consigo milhões de pessoas, que acabaram por contribuir para o estabelecimento de uma longa e insidiosa ditadura militar. A maioria delas continuou a apoiar o regime mesmo depois que as mortes e torturas passaram a ser denunciadas, acreditando que a violência, a censura, o autoritarismo eram preços a se pagar para manter a “verdadeira” democracia, a ordem, o desenvolvimento, a moral e os valores da família brasileira.
Mais uma vez nos perguntamos acerca das concepções de democracia e liberdade defendida por aqueles que organizaram as marchas e arregimentavam pessoas comuns para nelas se envolverem. Também nos perguntamos hoje, na terceira década do século XXI, décadas depois dos eventos aqui relatados, se ainda persistem as manifestações autoritárias disfarçadas de apelo às liberdades.
E se persistem, de onde vêm e como operam? E principalmente, porque persistem?
São perguntas fundamentais se quisermos entender os limites da nossa democracia hoje.
Os recortes de jornal foram retirados do fundo Campanha da Mulher pela Democracia, dossiê BR_RJANRIO_PE_0_0_0041