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Uma das formas de limitar o poder do Estado – e dos governos – sobre os cidadãos consiste em um mecanismo conhecido por sistema de freios e contrapesos. Base de regimes constitucionais, caro às democracias, o sistema descende diretamente da teoria da separação de poderes como expressa por Montesquieu na obra “O Espírito das Leis,”(1748) segundo a qual haveria uma separação e autonomia de poderes (de legislar, de executar, de interpretar as leis), exercidos por diferentes agentes (rei, parlamento, tribunais) que limitariam mutuamente seus excessos. A teoria se desdobou ao longo dos séculos, mas percebe-se nitidamente que o arcabouço permanece vigente nos regimes constitucionais e democráticos atualmente.

Um regime constitucional segue um arcabouço legislativo cuja lei maior encontra-se na Constituição, que resulta do poder constituinte em ação, e o povo é legitimamente seu detentor e faz-se representar através das escolhas que faz via eleições diretas.

“A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma”.

O preâmbulo do primeiro Ato Institucional, editado poucos dias depois do golpe militar de 1964 deixa bastante claro que o povo havia sido usurpado do seu direito de escolher representantes e de exercer o poder constituinte. Em uma manobra semântica comum a grupos que se auto intitulam revolucionários quando estes alcançam o poder pela via das armas, o novo governo tomou para si a “responsabilidade” – e a prerrogativa – de exercer o poder constituinte.

Foram 17 atos entre 1964 e 1969. Estes “atos” – instrumentos regulatórios do executivo federal, exercido por militares entre 1964 e 1985 – estabeleciam, quando necessário, normas que iam contra a Constituição em vigor. Ou seja, aos poucos, paulatinamente, os governos ditatoriais do período impuseram uma crescente centralização de poder e a diminuição das garantias básicas do cidadão, culminando no AI-5 – o instrumento mais draconiano da nossa República.

O primeiro ato concedia ao comando revolucionário as prerrogativas de cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos e deliberar sobre a demissão, a disponibilidade ou a aposentadoria dos que tivessem ‘atentado’ contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública. Também determinava em seu artigo 2º que dentro de dois dias seriam realizadas eleições indiretas (pelo Congresso Nacional) para a presidência e vice-presidência da República. Também permitia a cassação de direitos políticos. O presidente indiretamente eleito exerceria seu mandato até 31 de janeiro de 1966, data em que expiraria a vigência do próprio ato. Amplas parcelas da sociedade civil esperavam que na data mencionada tudo voltasse à normalidade democrática.

Mas – sabemos todos – não foi isso que aconteceu.

As cassações e demissões resultantes do primeiro dos Atos Institucionais atingiram milhares de pessoas. De imediato, no dia seguinte à sua edição, foram cassados os mandatos de 41 deputados federais e suspensos os direitos políticos dos ex-presidentes João Goulart e Jânio Quadros. Sindicalistas, jornalistas e militares, inclusive muitos oficiais, que não coadunavam com as ações golpistas das forças armadas também foram alvo do AI-1.

A ditadura militar que comandou o país durante mais de 20 anos sempre tentou estabelecer um verniz de democracia ao regime implacável que impunha. Eleições locais (com várias limitações) e uma nova constituição (elaborada por uma comissão de notáveis e acatada pelo Congresso Nacional em 1967) são exemplos dessa busca por legitimidade diante de um país que vira ser instaurada um longo regime de exceção em nome da “democracia.”

BR DFANBSB AAJ.0.IPM.22 Situação da aplicação do artigo 10 do Ato Institucional: versa sobre operação de aplicação do artigo 10 do Ato Institucional em vários Estados brasileiros, referindo-se sobretudo à cassação de mandatos políticos. Brasília, 23/5/1964. Comissão geral de inquérito policial-militar.

BR DFANBSB V8.MIC, GNC.EEE.80002860  Publicação“ATOS DA REVOLUÇÃO DE 1964 VOLUMES I E II.” Brasília, 1969. SNI

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