A Revolta dos Marinheiros em março de 1964 ficou conhecida como um dos estopins para o golpe que instalou uma ditadura no Brasil. Para os militares, o presidente João Goulart teria incentivado ou contribuído para a quebra de hierarquia ao anistiar os marinheiros que haviam entrado em confronto com seus comandantes. Vamos conhecer um pouco mais sobre essa história, bastante presente nos documentos do Arquivo Nacional, alguns dos quais mostraremos abaixo.
A situação dos marinheiros que levou à fundação de sua associação
Para compreendermos melhor a situação dos marinheiros, cabe destacar que a maioria vinha das regiões Norte e Nordeste e, quando desembarcavam no Rio de Janeiro, então sede da Marinha, eram submetidos a uma rotina desgastante e pesada de trabalho, não tinham o apoio de suas famílias e nem podiam se casar. O cotidiano árduo, imersos em uma realidade hostil e incerta, muitas vezes os levava a envolvimento em pequenos crimes, dependência química e até envolvimento com prostituição. O pesquisador Anderson da Silva Almeida afirma que eles não eram bem-vistos pela sociedade e que acabavam morando em bairros pobres e de alta periculosidade.
O descontentamento e a busca por melhores condições de vida levou a marujada a fundar a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil em 25 de março de 1962. Desde então a entidade passou a ser acompanhada com preocupação pela alta cúpula da Marinha, atenção que não se repetia em relação a outras entidades de sargentos e oficiais que já existiam anteriormente. Logo a nova entidade cresceu muito, atingindo grande número de adesões. Mesmo assim, não era reconhecida pelo ministério da Marinha.
O primeiro grande fato que levou à ação da Marinha contra a associação foi a participação de membros do grupo na Revolta dos Sargentos, que ocorreu em setembro de 1963, contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal pela inelegibilidade do sargento Aymoré Zoch Cavalheiro, então deputado estadual no rio Grande do Sul eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). A questão foi vista como uma quebra de hierarquia e intromissão indevida em questões políticas, impróprias aos militares de baixa patente - embora o país já tivesse experiências passadas nesse sentido no movimento tenentista dos anos 1920 e na Revolta da Chibata liderada por João Cândido em 1910, entre outros eventos.
Em setembro de 1963, outro fato também marcante: o Ministro da Marinha, Sylvio Motta, ordenou a prisão do presidente e do 2º vice-presidente da entidade em virtude de discursos considerados subversivos de ambos durante a cerimônia de posse da nova diretoria da Associação dos Motoristas do Serviço Público. Na assembleia da entidade dos marinheiros, quinze membros protestaram contra as prisões, e o ministro mais uma vez agiu energicamente, ordenando investigação sobre a conduta dessas quinze pessoas.
O caso ganhou a imprensa e, consequentemente, grande repercussão, a ponto de o presidente João Goulart indicar o general Assis Brasil e o almirante Aragão para intermediarem a relação entre o ministro e seus comandados, o que não deu certo. Terminada a investigação, em janeiro de 1964 foram presos seis dirigentes da entidade dos marinheiros. A situação se agravou em fevereiro quando, em ato, cabos e marinheiros cobraram a anulação do processo em andamento, a liberdade de expor o pensamento sem censura, o direito de votar e ser votado, entre outros pontos. O ministério não apenas não aceitou o pedido como mandou abrir novo inquérito para avaliar o que havia se passado no ato. Enquanto o ministro entrava em confronto com cabos e marinheiros, Goulart insistia por um acordo e Brizola os apoiava flagrantemente. Na chamada para o famoso Comício das Reformas, que seria realizado em 13 de março de 1964, entre as pautas citadas estava a extensão de voto aos cabos e marinheiros.
25 de março de 1964 – o início da revolta
Após uma série de prisões, processos e do aumento progressivo das tensões, no dia 25 de março foi realizado um grande evento, no sindicato dos metalúrgicos, para a comemoração dos 2 anos da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, com a participação de diversas figuras políticas. Ao saber da grandiosidade do evento, do teor radical dos discursos e da participação massiva de lideranças de esquerda, o ministro Sylvio Motta decretou "Regime de Prontidão", de forma a forçar os seus comandados a retornarem a seus postos, abandonando o evento. Porém, o atendimento a essa ordem foi condicionado pelos cabos e marinheiros, que afirmaram que só a obedeceriam caso o ministro reconhecesse a entidade e anistiasse seus membros presos e processados.
O ministério negou tais exigências e acusou os subalternos de "crime de insubordinação", dando ordem para que o local fosse cercado e os participantes do evento fossem presos. O almirante Aragão se negou a tomar tal atitude e entregou seu cargo. A crise se aprofundava e parecia sem solução. E, simbolicamente, João Cândido participava do evento: o líder da revolta de 1910 havia sido encontrado pelos marinheiros vivendo em condições ruins na cidade de São João de Meriti, sendo então convidado para ser homenageado. Na presença do Almirante Negro se cruzavam dois fatos históricos da história do Brasil: 1910 e 1964.
Por fim, os fuzileiros navais foram convocados para cercarem o lugar. Porém, fortalecendo ainda mais o movimento, vinte e seis desses fuzileiros desistiram de combater seus colegas, largaram seus fuzis e se juntaram à comemoração que ocorria dentro do sindicato dos metalúrgicos. No evento, ao presenciarem tal atitude, houve euforia entre os presentes e o aumento da certeza de que lutavam juntos por ideais compartilhados por seus pares. E o apoio também chegou de cerca de 200 marinheiros que vieram a pé, entoando o hino nacional, da Praça Mauá em direção ao local. Houve conflito contra as tropas do governo e o grupo acabou retornando, com feridos e presos.
Anistia... e suas consequências terríveis
O evento, iniciado em 25 de março, só terminou no dia 27. João Goulart nomeou novo ministro - Paulo Mário da Cunha Rodrigues - para a Marinha e anistiou os revoltosos, que celebraram com grande entusiasmo o que consideraram uma vitória gigantesca. Porém, o evento significou para a alta cúpula militar uma grande quebra de disciplina e de hierarquia dentro das Forças Armadas, chancelada pelo presidente Jango, o que fez crescer as motivações pela sua retirada do poder. Não é errado afirmar que o ocorrido foi um dos pilares do golpismo militar que forçou a saída do presidente eleito em prol da tomada do poder pelos golpistas, iniciando mais de 20 anos de uma perversa e violenta ditadura.
O curioso é que um dos líderes da revolta e então presidente da associação, José Anselmo dos Santos, conhecido como "Cabo Anselmo", viria a se tornar agente duplo durante a ditadura, delatando companheiros que acabaram torturados e mortos. Tornou-se um traidor e inimigo daqueles com os quais havia lutado junto.
As imagens foram retiradas da revista Manchete de abril de 1964. Em uma delas, o infame cabo Anselmo, então líder dos marinheiros, discursa para seus companheiros. RJANRIO_RH_0_0_0090. Fundo Luís Viana Filho.
Sugestão bibliográfica:
Almeida, Anderson da Silva. "Herdeiros do dragão: a rebelião dos marinheiros de 1964". Revista "Perseu - memória, história e política", n. 5 (2010)