Apenas uma imagem na parede: as remoções de favelas nos anos 1960 e 1970 nas fotografias do Correio da Manhã.
Mauro Amoroso
Prof. adjunto da FEBF/UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Comunicação e Cultura em Periferias Urbanas e membro do INCT Proprietas
Este texto fará uma curta reflexão sobre a remoção de favelas no Rio de Janeiro nos anos 1960 e 1970, a partir de um olhar sobre os moradores afetados por essa política. Mas não um olhar qualquer. E sim, aquele feito pelos repórteres fotográficos que trabalharam no Correio da Manhã nesse período, e cujas fotografias compõem um dos mais ricos e vastos acervos sob a guarda do Arquivo Nacional. O Correio da Manhã circulou entre os anos de 1901 e 1974. Como muitos jornais, em um primeiro momento apoiou o golpe de 1964, depois se convertendo em um dos principais críticos da ditadura na imprensa.
As favelas, por sua vez, fazem parte da história do Rio de Janeiro há mais de um século. O Morro da Providência, localizado na zona central da cidade, foi o primeiro lugar no qual este tipo de moradia popular baseado na autoconstrução ganhou esse nome, a despeito de construções semelhantes existirem na cidade desde meados do século XIX. “Favela” não designa apenas moradia, mas um tipo de planta que era comum no arraial de Belo Monte. Do palco da Guerra de Canudos para a então capital da República, seu nome trouxe para essa forma de habitação todo um significado de desafio à recente ordem republicana. A Providência passou a ser conhecida como “Morro da Favella”, depois apenas como “favella”, e tal denominação passou a ser utilizada como referência para esses espaços.
A Guerra de Canudos esteve presente na história da moradia popular carioca através de outro conhecido morro, o de Santo Antônio e da favela que lá também se localizava. Alguns dos primeiros habitantes desta foram ex-combatentes que negociaram com o Exército a permissão para a construção de suas casas ali. Dizia-se, igualmente, sobre a possibilidade de pessoas que combateram em Canudos terem se instalado na Providência.
Além da relação direta com a conhecida batalha, outro paralelo deve ser estabelecido: os discípulos do Conselheiro foram vistos como membros de um movimento que contestou a jovem República brasileira, chegando a serem vistos como uma negação de seus valores. Desse modo, associar esse tipo de construção a esse levante também seria uma forma de chama-lo de um desafio à ordem urbana e seus valores em plena capital do Brasil republicano.
E ao longo do século XX, a sociedade carioca terá uma difícil e complexa relação com suas favelas. É possível notar a valorização, nem sempre constante, de alguns elementos culturais a elas relacionados, como o samba. Porém, na maior parte das situações o que se vê é a caracterização dessa moradia popular como se fosse o “outro” da cidade, concentrando suas mazelas, irradiando problemas, lugar da falta de moral e da criminalidade que ameaça o espaço urbano. A despeito disso, devemos questionar essas representações e compreender o quanto seus moradores participam da vida social da cidade de diferentes formas, e como eles se articulam a fim de consolidar-se como um ator que também deve se beneficiar dos direitos legalmente estabelecidos.
Um reflexo dessa abordagem negativa pode ser visto nos programas de remoção comandados pelo poder público. A construção em alvenaria nas favelas foi proibida na maior parte do século XX, por mais que fosse possível burlar a vigilância em alguns casos. Além dessa proibição, nos anos 1960 e 1970 foi o período em que mais se removeu favelas no Rio de Janeiro, chegando a alterar completamente a configuração de alguns bairros. Leblon e Lagoa, por exemplo, dois dos bairros mais valorizados do Rio, possuíam algumas das mais conhecidas favelas da época, como a Praia do Pinto [veja algumas imagens: PH.FOT.260.8; PH.FOT.260.22; PH.FOT.260.20; PH.FOT.4440.28] e a Catacumba [veja algumas imagens: PH.FOT.1671.1; PH.FOT.1671.51 e PH.FOT.1671.58].
Podemos dividir a remoção em duas fases. A primeira, durante a administração de Carlos Lacerda (1960-1965) no estado da Guanabara, nova condição que o Rio de Janeiro passou a ter com a transferência da capital para Brasília. Nesse período, foram removidas 27 favelas e aproximadamente 42 mil pessoas. Data deste período a criação de conjuntos habitacionais icônicos, que depois também passariam ser considerados favelas, como Vila Kennedy e Cidade de Deus (veja o filme da TV Tupi sobre a desocupação da favela Getúlio Vargas na matéria Remoções). A segunda fase vai do final dos anos 1960 até meados dos anos 1970, quando o programa de remoções passa a ser administrado pelo governo federal, ainda que contando com o governo estadual da Guanabara. Nessa época, foram removidas mais de 60 favelas e cerca de 100 mil pessoas. Desse período resultaram a construção de outros conjuntos que depois seriam considerados favelas, como Cidade Alta, além de acontecimentos que marcaram a memória da cidade, como o trágico incêndio da Praia do Pinto.
É preciso atentar que havia uma concepção sobre as favelas e seus moradores que embasavam a política de remoções. É notório como parte desses lugares possuía uma grande precariedade, parte dela responsável por proibições do poder público, como a já mencionada proibição de construção em alvenaria. No entanto, os técnicos desses programas acreditavam que a índole e apatia dos moradores dessas áreas deviam ser comparadas à situação desses espaços. Com isso, essas pessoas não teriam condições de decidir sobre suas próprias vidas, ou até o local onde deveriam residir.
E por mais que o Correio da Manhã tenha sido um jornal crítico à ditadura, é possível notar que o mesmo compartilhava com tal visão. Para isso, devemos nos atentar a essas duas imagens (PH.FOT.236.10 e PH.FOT.236.10v). Trata-se de uma fotografia de Pimentel publicada em 22 de setembro de 1965 e seu verso com as anotações do editor e a manchete com a qual foi publicada. Na imagem, vemos uma mulher e duas crianças pequenas em frente a ruínas e restos de tijolos e materiais de alvenaria espalhados, oriundos de um incêndio, conforme a manchete “polícia investiga se foi criminoso incêndio na favela”. Os três estão próximos à sacola e parados, com as ruínas ao fundo. As crianças olham para o lado e a mulher leva uma das mãos à boca, em uma imagem que pode provocar interpretações ambíguas de inércia perante a situação adversa, ou de reflexão, esperando-se qual será o “próximo passo” a ser realizado.
Esse tipo de imagem, mulheres ou crianças, quando não ambas, em situações de dificuldade denotando fraqueza e incapacidade de superação de obstáculos compõe grande parte das fotografias do Correio da Manhã sobre favelas e remoções dos anos 1960 e 1970. Isso pode ser visto como uma forma de estigmatizar seus moradores com as características anteriormente citadas. Essa caracterização desses indivíduos não reflete a riqueza de suas personalidades e da rotina de seu dia a dia. Não se tratam de santos ou super-heróis. Mas igualmente não se tratam de pessoas marcadas pela fraqueza e pela falta de capacidade de reação. E devemos notar o comentário final do editor que mostra a predileção por esse tipo de imagem: “ótimo!’.
Também vemos uma imagem que, embora não mostre mulheres ou crianças, atenta para uma caracterização de fragilidade que beira o caricatural na capa do Correio da Manhã com a cobertura do incêndio da Praia do Pinto (PH.FOT.4440.29). Na foto, feita por Milton, vemos um homem andando por entre escombros do incêndio segurando seu instrumento, um cavaquinho (veja também a matéria Em meio ao caos). Pela seriedade do incidente ocorrido, tal figuração acaba assumindo um tom pitoresco e surreal, reforçado pela legenda da foto de capa publicada em 12/05/1969: “Instrumento do fogo: depois de perder tudo que tinha, o favelado sente-se satisfeito de encontrar seu velho amigo, o cavaquinho”. Assim, mais uma vez reforça-se a imagem de fragilidade remetente a completa incapacidade de superação dessa adversidade por iniciativa própria. Afinal, segundo o juízo de valor realizado pelo conjunto formado por fotografia e legenda, o cavaco satisfaria a perda da casa e a quase perda da vida.
A Praia do Pinto foi uma das mais conhecidas favelas de sua época. Próxima à Lagoa Rodrigo de Freitas e ao Clube de Regatas do Flamengo, surgiu no início da década de 1940, com o arrendamento do terreno da Chácara do Céu, na Gávea. Com esse arrendamento, os moradores desse local migraram para o núcleo que se tornaria a favela, que chegou a ser uma das maiores do Rio de Janeiro, até seu fim em 1969. Ela já tinha sofrido tentativas anteriores de remoção. Passava, inclusive, por uma, marcada por grande resistência de seus moradores. Seu fim é sacramentado com o incêndio de causas até hoje desconhecidas e de proporção suficiente para lhe dar fim. Em seu local, foi construído um conjunto de apartamentos popularmente conhecido como “selva de pedra”.
Para finalizar, gostaria de falar sobre um caso que teve alguma repercussão à época, mas de uma favela pouco conhecida. Trata-se de Ilha das Dragas (PH.FOT.246.5; PH.FOT.246.7; PH.FOT.246.11), que era uma pequena faixa de areia localizada ao lado do Clube Caiçaras. Por volta da década de 1930, começou a sofrer um processo de alargamento por meio de aterros realizados por iniciativa própria de seus futuros moradores. Muitos desses trabalhavam nos clubes da região. Sua remoção ocorreu em fevereiro de 1969. A fotografia da reportagem do Correio da Manhã sobre, feita por Luiz Pinto e publicada em 2/2/1969 com o título “Mudança de favelados foi até de manhã e as reações não foram ao despejo”, remete mais uma vez à imagem da criança em situação de precariedade (PH.FOT.246.6).
Porém, outro fato marcou a remoção de Ilha das Dragas. Como em outros casos, houve uma grande mobilização de seus moradores capitaneada pelos que militavam pela associação de moradores local. Quem a presidia foi Carlos Santos de Jesus. O Brasil estava começando a fase mais autoritária de sua ditadura, pouco após a decretação do Ao Institucional nº 5 (AI-5). Sendo assim, suas principais lideranças, incluindo seu presidente, foram perseguidas e entraram para o hall dos “desaparecidos políticos” da ditadura.
O Correio da Manhã chegou a realizar reportagens sobre o desaparecimento dos militantes de Ilha das Dragas. Nesse mérito, devemos chamar atenção para esta fotografia, de autoria de Luiz Pinto de 11/02/1969 (PH.FOT.246.1), que não foi publicada. Como podemos observar, a imagem é uma carteira de membro da Confederação Espírita Umbandista, possuindo a assinatura e a foto do seu presidente, Carlos Santos de Jesus. Essa fotografia é importantíssima, uma vez que não se soube o paradeiro dessas pessoas, nem o que ocorreu com ela. E, tirando esforços nos últimos anos da Comissão da Verdade, sobretudo a seção do Rio de Janeiro, os militantes políticos que foram perseguidos, presos, torturados e até “desaparecidos” durante a ditadura nunca foram objeto de amplo debate.
Ou seja, trata-se de um grupo social cuja participação na resistência contra o governo ditatorial dos militares acabou sendo praticamente silenciada. Nesse sentido, este documento é de grande importância por guardar o rosto e o nome de uma das vítimas do regime instaurado pelo golpe de 1964.
Como dito anteriormente, o Correio da Manhã acaba dando uma guinada em sua linha editorial após 1964, se tornando um dos veículos mais críticos aos militares. Tal fato não passou incólume. O jornal perdeu, sobretudo, verbas de publicidade governamental, até hoje um diferencial para a sobrevivência dos meios de comunicação. Em 1969, em um quadro de endividamento agudo, o periódico é arrendado por um grupo de empreiteiros. Ligados ao governo, as páginas que outrora portavam críticas, passaram a fazer propaganda visando a obtenção de contratos e favores políticos. O jornal perde público. Sua última edição sai em 9/7/1974. Seu fim é decretado no ano seguinte.
Sobre os moradores de favelas, após o acontecido em Ilha das Dragas, em conjunto com o amplo quadro de repressão, prisão, desaparecimentos e torturas, a militância se torna menos combativa. No entanto, isso não significa o sucesso do programa de remoção. Pelo contrário. Os problemas se multiplicam. Muitos vão parar em conjuntos habitacionais longe de seus locais de trabalho, e acabam “passando” suas casas para irem para outra favela. O grau de inadimplência aumenta. Esses e outros fatores acabam levando ao abandono do programa em meados dos anos 1970. Os conjuntos habitacionais construídos nesse período existem até hoje. Muitos acabaram se tornando favelas, com o estigma da denominação que a sociedade e o poder público apregoam a essa palavra. Além deles, ficou uma memória de resistência que, embora não muito celebrada ou sequer circulada, serve como ferramenta para pensarmos o que a volta do autoritarismo governamental não significaria não apenas para grupos específicos da sociedade, mas sim para toda a população.