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Terras Indígenas e Desenvolvimento: um falso impasse

Maria Elizabeth Brêa Monteiro

Mestre em História (UERJ) | Pesquisadora do Arquivo Nacional

 

Muitos dos problemas e pendências existentes no tocante ao reconhecimento dos direitos indígenas decorrem de uma visão distorcida dos índios e do papel das terras indígenas o que, não raro, beneficia grupos e interesses que não partilham do entendimento de que o verdadeiro processo civilizatório é aquele que assegura a diversidade social e ambiental. Via de regra, os conflitos estão diretamente relacionados às práticas sistemáticas de violação dos direitos territoriais dos índios.

As terras indígenas somam cerca de 12% do território nacional, a quase totalidade composta de ecossistemas relativamente conservados, abrigando expressiva biodiversidade, especialmente na floresta amazônica e no cerrado. Imagens de satélite demonstram que hoje, na Amazônia, as áreas de florestas mais preservadas estão dentro dos limites de terras indígenas. (Carneiro e Souza, 2009)

Para as nações indígenas a terra se apresenta como um bem coletivo e indivisível, ainda que possam estar distinguidas áreas de atividades próprias a uma unidade de produção, seja ela familial, clânica, de metades, etc. A relação povos indígenas-terra se consubstancia não somente na sua sobrevivência física, mas em níveis mitológico e cosmológico, o que implica que qualquer transformação neste ambiente, nesta paisagem, em seu solo e subsolo, poderá ocasionar efeitos danosos, independente do nível de adaptação às mudanças ambientais que essas sociedades são capazes de suportar. Depreende-se, então, que essas terras possuem uma função ambiental de assegurar vida digna aos índios segundo seus costumes e tradições e preservar os recursos naturais (biodiversidade). 

As terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas foram reconhecidas pela Constituição Federal de 1988 como sendo de posse permanente desses povos, com direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais nelas existentes. Constitucionalmente, este é um direito inalienável, indisponível e imprescritível. Ao tratar de terras de ocupação tradicional necessárias à sua reprodução física e cultural, ampliou-se a compreensão, antes limitada às terras habitadas (no sentido de local de moradia) pelos indígenas. Desta maneira, ao se realizar a identificação e a delimitação de uma terra indígena, são observados os espaços necessários para a habitação e reprodução econômica de um povo, mas também aqueles locais de relevância para a sua cultura, religião e organização social.

A Amazônia, onde se concentra maior número de povos indígenas, desempenha papel especial como grande território de rica diversidade étnica e ambiental e como campo de conflitos por disputas de terra envolvendo indígenas e não indígenas, corporações nacionais e transnacionais e os próprios interesses do Estado brasileiro.

Desde o início da década de 1970, a região tem sido palco de experiências desenvolvimentistas e de litígios historicamente movidos pela especulação, pela ilegalidade, pela corrupção e pela violência. As decisões estratégicas para a região relativas aos grandes projetos de infraestrutura ocorrem de forma a remover ou tentar limitar o poder das populações e movimentos sociais locais e regionais.

Com a construção da rodovia Transamazônica, no início da década de 1970, foram contatados os Asuriní, que trinta anos antes já haviam abandonado as margens do rio Bacajá, empurrados por tribos Kayapó e Araweté, em direção ao rio Xingu, vítimas todos de ataques de regionais. Entre os inimigos, de quem levavam desvantagem nos últimos tempos antes do contato, e os brancos, que, agora, deixavam ferramentas e pareciam não pretenderem atacá-los, os Asuriní não tiveram outra saída senão aceitar a convivência com estes. A transmissão de doenças pelos brancos, entretanto, ocasionou o desaparecimento de quase metade da população, que contava, aproximadamente, 100 indivíduos em 1971 e chegou a 52, em 1982. (Müller, 2004)

De acordo com o antropólogo Antonio Carlos Magalhães (1990), os Parakanã podem ser considerados um caso exemplar de um povo atingido por grandes projetos econômicos. Em 1971, face à abertura da Transamazônica; a partir de 1976 com a Usina Hidrelétrica de Tucuruí e, desde 1982/83 com o Projeto Ferro-Carajás como atesta este o artigo.

Em Roraima, na Terra Indígena (T.I) Raposa Serra do Sol, até sua homologação em 2005, fazendeiros praticavam a monocultura do arroz usando agrotóxicos que envenenam os rios e os solos e provocam a mortandade dos pássaros. O impacto deletério dos agrotóxicos mesmo fora das terras indígenas ocasiona efeitos nefastos para estes povos e para toda a biodiversidade de seus territórios, lembrando que, desde 2008, o Brasil é um dos principais consumidores de agrotóxico. (Faria, Fassa, Facchini, 2007)

Também durante os anos de 1970, uma série de garimpos surgiu, sendo o mais célebre o de Serra Pelada, no Estado do Pará, maior garimpo de ouro a céu aberto. Cabe lembrar que tanto a atividade de mineração como o garimpo possuem elevado impacto ambiental, sendo um dos três crimes mais comuns nas áreas protegidas da Amazônia. Foi amplamente noticiada a invasão das terras e o massacre dos Yanomami entre 1987 e 1990, quando cerca de 40 mil garimpeiros invadiram suas terras em busca de ouro. Mesmo depois da homologação da T.I. Yanomami, em 1992, e de diversas operações policiais e militares para desintrusão, os problemas continuaram, sendo que, entre 2008 e 2009, lideranças Yanomami voltaram a denunciar o aumento da presença dos invasores em suas terras. Em 2004, outro massacre, dessa vez de 29 garimpeiros, ocorreu na TI Roosevelt (Rondônia), habitada pelos índios Cinta-Larga. O crime foi o clímax de uma espiral de violência iniciada em 1999, quando uma das maiores jazidas de diamante do mundo foi descoberta na área. Quase cinco mil garimpeiros chegaram a trabalhar no local.

Os Waimiri Atroari, povo indígena autodenominado Kiña, que habitam a região situada à margem esquerda do baixo rio Negro, nas bacias dos rios Jauaperi e Camanaú e seus afluentes os rios Alalaú, Curiaú, Pardo e Santo Antonio do Abonari, foram atingidos, desde meados do século passado, por vigorosos projetos desenvolvimentistas, como a construção da BR 174, a construção das hidrelétricas de Balbina e Pitinga e a instalação da mineradora Taboca, do grupo Paranapanema, que lhes custaram quase que a extinção como etnia, decorrente do uso de dinamite, armas de fogo, granadas e até napalm lançado por helicópteros e aviões que constantemente sobrevoavam as malocas, assim como brinquedos contaminados jogados durante estes voos e que disseminaram os vírus da gripe, varíola, sarampo, tuberculose dentre outras doenças letais para os indígenas.  

Essas violações de direitos aos Waimiri Atroari e a outros povos como os Cinta Larga e Suruí, na região dos rios Aripuanã e Roosevelt, entre Rondônia e Mato Grosso, aos Krenhakarore (Panará) do rio Peixoto de Azevedo, na rodovia Cuiabá-Santarém, aos Kanê ou Beiços-de-Pau do rio Arinos também no Mato Grosso, aos Avá-Canoeiro em Tocantins, Parakanã e Arara no Pará em função dos projetos políticos e econômicos promovidos no período da ditadura militar foram objeto de análise da Comissão Nacional da Verdade e de outras comissões estaduais. 

Como se observa, os modelos de desenvolvimento adotados no país e, em especial, para a região amazônica, vêm sendo conduzidos por uma lógica de exploração econômica que se aparta do respeito aos elementos culturais de um povo ou de uma população regional, sendo estes considerados menos importantes face os indicadores econômicos estabelecidos.

As políticas e obras inerentes a um projeto de desenvolvimento “devem ser capazes de transformar estradas e energia em instrumentos não de depredação, mas de ordenamento do território e levar em conta as lições do passado e a complexidade atual da região.” (BECKER, 2007).

A relação harmoniosa que os povos indígenas mantiveram e mantêm com o seu ambiente responde pela preservação das florestas e de seus recursos, o que pode ser um paradigma para a busca por soluções sustentáveis. As questões das políticas de proteção ambiental global que concebem os povos tradicionais como protetores e inovadores da diversidade biológica do planeta; a diplomacia entre países e seus acordos; as tensões entre esses mecanismos de proteção ambiental e os modelos legais internacionais de comércio; o interesse de empresas biotecnológicas nos conhecimentos de que são detentores os povos indígenas; as dinâmicas dos movimentos indígenas envolvidos e as suas relações com diversas entidades; as políticas e as históricas relações do Estado nacional e os povos tradicionais presentes em seus limites territoriais são pontos que não podem deixar de estar presentes na formulação de políticas públicas para a Amazônia (Ávila, 2006). É preciso, pois, enfatizar que um projeto de desenvolvimento econômico e social deve ser pautado pelo respeito e reconhecimento às diversidades regionais e culturais.

 Referências

 

Documentos:

BR DFANBSB AA3.0.DTI, DTR.137 - Informação quanto à delimitação e demarcação de terra indígena., 1981 

BR_RJANRIO_EH_COC_P_09876 Construção da BR-319

PH_0_FOT_05613_002 Construção da BR-319

BR RJANRIO EH.0.FIL, DCT.45 - Presidente Emílio Garrastazú Médici hasteia bandeira nacional e assiste exposição do Ministro dos Transportes Mário Andreazza, sobre as obras da rodovia Transamazônica; desfile militar do 5º Batalhão do Exército, destacamento que participa da construção da rodovia; aspectos da construção das agrovilas e visita do presidente à primeira vila construída pelo INCRA, em Atamira, PA

(BR DFANBSB V8.TXT, CEX.0.421 - Artigo de “Demain Le Monde)

(BR RJANRIO U3.0.DSO, JBF.36- Discurso de improviso do presidente Figueiredo em Serra Pelada, 11.09.1980)

(BR DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.87061841 - GARIMPO RIO NOVO NA AREA INDIGENA YANOMAMI, TERRITORIO FEDERAL DE RORAIMA. 11/5/1987)

(BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092000401201572 - Relatório Waimiri entregue pelo pesquisador Orlando Calheiros. Desenhos produzidos pelos Waimiri (Kina) sobre a presença de militares em suas terras.)

(BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092000402201517 - Relatório Waimiri entregue pelo pesquisador Orlando Calheiros. Documento produzido pelo CIMI me 1980 intitulado ¿A guerra de Extermínio contra os Waimiri-Atroari¿ )

BR DFANBSB V8.MIC, GNC.MMM.80000851 - MASSACRE DOS INDIOS CINTA LARGA NO RIO ARIPUANÃ

 

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