Telenovela: uma história bem brasileira
Viviane Gouvêa
Mestre em Ciência política
Pesquisadora do Arquivo Nacional
A novela constitui-se em veículo privilegiado do imaginário nacional, capaz de
propiciar a expressão de dramas privados em termos públicos e dramas públicos em
termos privados. [1]
Em 1963, a TV Excelsior estreia a telenovela 25499 Ocupado, com Tarcísio Meira e Glória Menezes, em capítulos diários e no horário nobre, características que se tornaram fundamentais ao gênero nas décadas subsequentes. A partir dos anos 1960 a moda, o linguajar, as ideias discutidas nas telas de TV no horário nobre por personagens fictícias mas verossímeis o suficiente para que parte do público as tratasse de forma quase pessoal passariam a ser um padrão a ser seguido ou contestado por uma boa parte dos brasileiros. Telenovelas: amando-as ou odiando-as, durante muito tempo foi impossível permanecer indiferente a elas, e mesmo hoje em dia, na era da internet, o enraizamento do estilo na vida de várias gerações e a capacidade de adaptação aos novos tempos que o gênero vem demostrando permitem que ainda seja um produto fundamental da industrial cultural nacional.
A emissora Excelsior seria pioneira no investimento em formação e treinamento de profissionais, resultando em uma qualidade maior em suas produções. Outras emissoras seguiram-se a ela na profissionalização e empenho em produções cuidadosas, como a Tupi, Record e a Globo, por exemplo. Ao longo dos anos 1960, o número de aparelhos de tv em lares brasileiros sofreria um aumento, assim como o de emissoras, resultando no crescimento de verbas destinadas a publicidade no novo meio, acarretando maior disponibilidade orçamentária das emissoras. A década também marcou a busca por uma linguagem própria, e a telenovela e o telejornal tornar-se-iam os carros-chefes de um meio de comunicação que em pouco tempo integraria o cotidiano e o imaginário do brasileiro, pautando discussões políticas, mudanças de costumes, moda, consumo.
Muitas das produções da década seguiam o estilo grandiloquente, dramático e fantasioso das tradicionais novelas de rádio e de produções de outros países latino-americanos. Um grande sucesso nesse estilo foi O direito de nascer, de 1964, escrita pelo cubano Félix Caignet para o rádio em 1946. Enredos mirabolantes vividos por princesas e sultões, em florestas ou desertos que nenhum brasileiro jamais vira marcaram os primeiros anos das novelas brasileiras, a exemplo das obras da novelista cubana radicada no Brasil Glória Magadan. Mas em 1968 a TV Tupi lançou uma novidade no gênero: a novela Beto Rockefeller apresentava personagens verossímeis, pessoas comuns vivendo em uma cidade brasileira contemporânea, com um enredo realista. E esta aproximação com seu público e a vida por eles vivida tornou-se uma das chaves do sucesso das telenovelas brasileiras a partir daquele momento e especialmente na década seguinte.
Embora grandes dramas continuassem a encantar um público mais específico (as donas de casa que não trabalhavam fora e pertenciam a uma faixa etária acima de 30 anos), as emissoras passaram a apostar na conquista do público jovem e também masculino, apresentando tramas mais dinâmicas, urbanas, com personagens mais despojados e uma linguagem idem. Beto Rockfeller foi apenas a primeira, e a emissora carioca Globo logo adotou a nova postura e percebeu que as telenovelas representavam um grande filão a ser explorado.
As novelas começaram a ter enorme importância na vida do brasileiro. Irmãos Coragem, de Janete Clair, fez um estrondoso sucesso em 1970, trazendo uma trama dinâmica e personagens marcantes que expressavam o modelo de masculinidade tradicional aceita pelo brasileiro, o que contribuiu para atrair uma boa parcela do público masculino. Não era um história urbana (passava-se no interior de Goiás) mas os dilemas e problemas enfrentados pelos personagens eram suficientemente realistas para atrair um público amplo, e também a atenção da censura. Em 1970, sob o governo do general Médici, os dispositivos de censura funcionavam a todo vapor, vigiando e limitando tudo o que o brasileiro poderia ler, ouvir, assistir, falar e escrever. Irmãos Coragem falava da luta contra a opressão, contra o poder econômico do grande garimpo, de políticos de esquerda e de direita, o que incomodava o governo. A partir daí, os temas trazidos pelas novelas ganharam maior amplitude, assim como seu estilo formal (rurais ou urbanas, folclóricas ou realistas, engraçadas ou dramáticas, de época ou contemporâneas), o que acarretou tanto grande adesão do público como uma vigilância cerrada por parte da censura.
Por ser um produto facilmente acessível a qualquer um que tenha um aparelho de televisão, as novelas foram alvo de vigilância intensa não só quando havia temáticas politicamente sensíveis a ditadura militar envolvidas. Todas as questões morais relacionadas a romances, divórcio (a lei do divórcio só foi editada no Brasil em 1977), sexo (fora do casamento, especificamente), corrupção, e mesmo relacionamentos familiares ruins ou atitudes pessimistas diante da vida estariam sob a mira dos censores.
Um dos casos mais famosos da década de 1970 opôs Dias Gomes e a TV Globo ao governo e seus censores (no caso da TV, exercida especialmente pelo DCDP - Divisão de censura e diversões públicas). A história da viúva sem nunca ter sido Porcina, seu amante Sinhozinho Malta e Roque Santeiro na fictícia cidadezinha nordestina de Asa Branca falava de mitos, corrupção, ganância generalizada entre o poder público e privado, uma igreja hipócrita e venal, fazendeiros ultra-poderosos que se auto-intitulavam “coronéis”. Pior: baseava-se em uma peça do próprio Dias Gomes chamada o Berço do Heroi, anteriormente proibida pela própria censura. Ao perceber a artimanha, revelada por escutas do DOPS, o governo ordenou a suspensão da telenovela, que já contava com dezenas de capítulos gravados. Dez anos depois, ela seria regravada e, liberada em um momento de transição para a democracia (depois do início de um governo civil e antes da nova constituição), faria estrondoso sucesso em 1985.
Mesmo histórias consagradas sofriam com o zelo dos censores. A novela Escrava Isaura, baseada no livro escrito por Bernardo Guimarães em 1875, sofreu com a vigilância por parte de uma ditadura que não admitia discussões em torno de movimentos de libertação, mesmo no contexto do sistema escravista do século XIX. As revoltas contra o sistema escravista e as crueldades sem fim do inesquecível vilão Leôncio (Rubens de Falco) contra a romântica e sofredora Isaura (Lucélia Santos) incomodavam a censura e deram dores de cabeça para o autor da novela, Gilberto Braga.
Na década de 1980 – ocaso da ditadura militar inaugurada em 1964 – a orientação moralista ainda interferiria no produto de maior sucesso da televisão brasileira. A medida que as emissoras buscavam acompanhar as drásticas mudanças que ocorriam na sociedade brasileira, em termos de consumo, comportamento e expectativas, a Censura Federal tentava conter as manifestações que consideravam transgressoras em telenovelas. Relações extra-conjugais, sexo sem compromisso, drogas, divórcio (que fora legalizado no Brasil menos de uma década antes e ainda alvo de preconceito), homossexualidade e mesmo o mero mau-caratismo para citarmos apenas alguns exemplos, eram alvos constantes dos censores, que dedicavam atenção especial aos programas televisivos, principalmente às novelas, uma vez que tinham ampla penetração e influência entre o público brasileiro, ditando modas e padrões de comportamento.
Em fevereiro de 1980, estreava no horário nobre da rede Globo a novela Água Viva, escrita por Gilberto Braga e Manoel Carlos. Urbana, moderna, carioca, Água Viva trouxe para as telas brasileiras (ricas, pobres, urbanas, rurais) o Rio de Janeiro das praias, de uma juventude que não se comportava de acordo com os padrões conservadores (maconha e topless são alguns exemplos de comportamento transgressor a aparecer na novela), da alta sociedade esbanjadora, ainda que falida, das famílias desestruturadas e relacionamentos instáveis. Obviamente, a novela sofreu com a censura desde o início.
Um dos eixos centrais da história envolvia Nelson Fragonard (Reginaldo Faria), Suely (Ângela Leal) e Maria Helena (Isabela Garcia). Assistente social responsável pela órfã Maria Helena, Suely deduz, através de depoimentos de amigos da mãe da menina e da própria antes de morrer, que a criança é filha de Nelson. Entretanto, os dois nunca haviam sido casados, sequer noivos ou namorados, e a superficialidade do seu relacionamento é evidenciada no primeiro capítulo da novela, em que Nelson afirma: “Eu saí com essa garota duas, três vezes... dançarina de boate!”. Este trecho, juntamente com boa parte do diálogo que integra, foi cortado pela censura, assim como diversas referências a relações sexuais fora do casamento (adultério ou não), separações/ desquites/ divórcios, desentendimentos entre membros de uma mesma família, rebelião juvenil. No entanto, a menina Maria Helena encontrava-se no centro da trama, e era fundamental que o telespectador tivesse ciência do relacionamento “ilegítimo” entre Nelson e a mãe da menina para que a história fizesse sentido.
Em determinadas situações, a história sofria com inconsistência e incongruência. Muitas vezes os censores barravam determinadas palavras e expressões, por razões políticas ou morais. Na novela Escrava Isaura, por exemplo, a partir de determinado momento a censura passou a vetar a palavra “escravo,” em uma novela que girava em torno da escravidão... Assim como Água Viva, Guerra dos Sexos de 1983 correu sério risco de tornar-se incompreensível, embora não em sua trama central, como no caso da obra anterior. Um dos exemplos é o romance extraconjugal entre Juliana (Maitê Proença) e Fábio (Herson Capri). Durante um bom tempo, o telespectador ficou sem saber com quem a jovem mantinha um relacionamento tão conturbado, já que as referências ao personagem adúltero eram cortadas. A pressão foi tão intensa que o autor acabou tendo que “matar” a esposa de Fábio, Manuela (Ada Chaseliov) para que a trama fluísse. Outra personagem extremamente polêmica era Vânia, que manteve vários relacionamentos sexuais ao longo da trama, sem nenhum envolvimento mais sério, e em vários momentos defendeu a liberdade sexual feminina.
A novela Guerra dos sexos, no horário das 19 horas, fez um estrondoso sucesso e elevou a comédia televisiva a um novo patamar. Tendo como protagonista dois grandes atores com sólida carreira no teatro (Fernanda Montenegro como “Charlô” Alcântara, e Paulo Autran como Otávio Alcântara), a novela de Sílvio de Abreu ousou desde a temática central, o enfrentamento entre homens e mulheres, em igualdade de condições, no ambiente de trabalho, expondo de forma crua o machismo arraigado na sociedade sob suas mais diversas formas, e o mau-caratismo muitas vezes a ele atrelado.
Embora ao longo dos anos 1980 os meios de comunicação conquistassem maior espaço para as críticas políticas e a atuação direta dos censores sobre jornais e telejornais tenha arrefecido, filmes, músicas e programas de televisão continuariam, até pelo menos o final da década, a sofrer uma incansável vigilância moralista. Em muitos casos, a atuação de autores e funcionários de gravadoras e emissoras permitiu a suspensão de restrições impostas. Embora ao longo dos anos a tolerância dos censores aumentasse (em especial depois de 1985), as restrições só cairiam definitivamente com a Constituição de 1988.
A despeito dos problemas com a censura nos anos 70 e 80, as novelas brasileiras conquistaram enorme popularidade e tornaram-se produto de exportação. A novela Escrava Isaura foi vista até na China – literalmente. Principalmente em Portugal e em outros países da América Latina, o modo brasileiro de se fazer novela fez escola e tornou algumas atrizes e atores famosos além das nossas fronteiras.
A televisão mostrou-se desde seu início um fator fundamental na formação da identidade nacional contemporânea. De forma similar ao rádio, alcançando com facilidade os sentidos de milhões de pessoas, mas encantando e fascinando muito mais do que este, a televisão busca mostrar ao brasileiro aquilo que ele é, gostaria de ser ou deveria ser. Partindo de um repertório comum pré-existente, as empresas de comunicação selecionam, recombinam, ressignificam elementos para construir e difundir uma imagem de si reconhecível por cada brasileiro. Pauta discussões, cria agendas e encaminha soluções possíveis, assim como tenta vetar em sua origem caminhos que não são considerados convenientes pelo empresariado nacional do qual as corporações televisivas fazem parte. Longe de ser um bloco coeso e monolítico, contudo, as grandes corporações midiáticas incorporam valores muitas vezes conflitantes.
A paixão do brasileiro pela telenovela consolidou-se nos anos 1970, época em que o projeto de modernização desigual e dependente imposto pelos governos militares estava em seu auge. Uma nova classe média, urbana e que se pretendia cosmopolita surgiu, convivendo ainda com a classe média tradicional, mais conservadora, com outras tradições arraigadas. Novos padrões de consumo e comportamento surgiram, vindos de outros países, nascidos no seio da própria sociedade brasileira ou reinventados e incorporados pela TV. Segundo Lopes, “a novela dá visibilidade a certos prognósticos feitos acerca de assuntos, comportamentos, produtos e não a outros; ela define uma pauta [...] Vendo a telenovela a partir dessas categorias podemos dizer que, durante o período de 70 e 80, ela se estruturou em torno de representações que compunham uma matriz capaz de sintetizar a formação social brasileira em seu movimento modernizante.”
As telenovelas nunca deixaram de acompanhar seus espectadores, e é essa a razão pela qual continuam vivas e relevantes para um público amplo, influenciando modos de vida e orientando o debate público acerca de comportamento, política, questões sociais. A penetração e a potência da televisão foram atestadas várias vezes nas últimas décadas: a influência que as novelas da Globo como Vale Tudo e Salvador da Pátria tiveram nas primeiras eleições presidenciais após a ditadura militar em 1989 (no contexto da “Nova República” de José Sarney, novelas que abusavam de uma narrativa calcada na fragmentação social, corrupção invencível das instituições e necessidade de se buscar uma salvação para nossas mazelas “fora” da política convencional alimentaram o desejo de se encontrar um redentor desconhecido que se auto-proclamasse um caçador de corruptos); e posteriormente a discussão em torno de temas até então desconhecidos do público em novelas como O Clone e Barriga de Aluguel (anos 1990) são exemplos desta penetração. Já a novela Pantanal (1990), da Manchete levantou com sucesso a bandeira da defesa do ecossistema pantaneiro, na região central do país, denunciando a ação de caçadores ilegais na região.
Aproximar a realidade da ficção vem se mostrando também uma técnica extremamente eficaz de atrair o público e reforçar seu comprometimento com as representações colocadas nas telas – não apenas nas telenovelas, mas em vários gêneros televisivos. No caso específico das telenovelas, as campanhas públicas por crianças desaparecidas (Explode Coração), ou por doação de órgãos (Laços de família), ambos os casos nos anos 1990 e na Globo, são exemplos de formas de se buscar o engajamento do telespectador e de demonstrar um compromisso com a realidade deste por parte da emissora.
Orientando a agenda de debates públicos, delimitando formas aceitáveis e não-aceitáveis de comportamento, vendendo imagem ao mesmo tempo em que vende bens de consumo, as telenovelas produziram e também incorporaram temas circulantes entre o público em geral, e ainda hoje desempenham um papel crucial na formação dos desejos e identidades de milhões de brasileiros.
[1] Lopes, M. I. V. de. (2003). Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Comunicação & Educação, (26), 17-34. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9125.v0i26p17-34
Arquivos vinculados ao longo do texto:
Dossiê televisão, 1963-1972. PH.0.FOT.00880 Correio da Manhã.
Dossiê lançamento de novelas, 1965. SG.0.JIN.99 Mayrink Veiga.
Infiltração comunista na TV, 1971 V8.MIC, GNC.AAA.71053330. SNI
Sumários Políticos do Departamento de Polícia Federal, 1969-1971. TT.0.MCP.PRO.0188. DSI-MJ.
MATERIAL DE DIVULGAÇÃO DA NOVELA Roque Santeiro, 1975. ML.0.PIN.TXT.0038 Mário Lago
Correspondência da Divisão de censura e diversões públicas para a TV Globo sobre a novela Roque Santeiro e Gabriela, 1975. NS.AGR.COF.MSC.62. Divisão de censura e diversões públicas
Ofício da Divisão de censura e diversões públicas acerca da novela Escrava Isaura, 1976. NS.AGR.COF.CSO.0083BR. Divisão de censura e diversões públicas.
Roteiro de novela submetidos ao Serviço de censura e diversões públicas – anos 1980 -BR_RJANRIO_SCDP_CX185. Serviço de censura e diversões públicas
Ofício enviado e Rede Globo de Televisão, 1986. Parte de dossiê. br_dfanbsb_ns_agr_cof_msc_0279. Divisão de censura e diversões públicas
Roteiro de novela submetidos ao Serviço de censura e diversões públicas – anos 1980 -BR_RJANRIO_SCDP_CX244_CAP81. Serviço de censura e diversões públicas
Roteiro de novela submetidos ao Serviço de censura e diversões públicas – anos 1980 -BR_RJANRIO_SCDP_CX185. Serviço de censura e diversões públicas
Roteiro de novela submetidos ao Serviço de censura e diversões públicas – anos 1980 -BR_RJANRIO_SCDP_CX185. Serviço de censura e diversões públicas
Roteiro de novela submetidos ao Serviço de censura e diversões públicas – anos 1980 -BR_RJANRIO_SCDP_CX185. Serviço de censura e diversões públicas
Roteiro de novela submetidos ao Serviço de censura e diversões públicas – anos 1980 -BR_RJANRIO_SCDP_CX244_CAP88. Serviço de censura e diversões públicas
Roteiro de novela submetidos ao Serviço de censura e diversões públicas – anos 1980 -BR_RJANRIO_SCDP_CX244_CAP73. Serviço de censura e diversões públicas
Viagem de Lucélia Santos a Nicarágua, 1985. V8.MIC, GNC.AAA.85051975. SNI
Bastidores da novela O Salvador da Pátria, 1989. ML.0.APR.FOT.0050. Mário Lago
Cena da novela Barriga de Aluguel, 1990. ML.0.APR.FOT.0051. Mário Lago.
Entrevista com ator da novela Pantanal, 1990. HA.0.DSO, PNB.84. IBASE