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O desenvolvimento da aviação brasileira no governo Vargas

André Fraga

Doutor em história pela Universidade Federal Fluminense

As décadas de 1910 a 1940 foram marcadas pela estruturação do campo aéreo mundial, o qual ganhou os principais contornos apresentados até hoje. Nesse período, os aviões, empregados com sucesso tanto no uso militar quanto civil, consolidaram-se enquanto parte do cotidiano da população, alcançando um rápido protagonismo na vida social, ao servirem como meios facilitadores da comunicação, do comércio e da defesa. Esse desenvolvimento vertiginoso da navegação aérea foi fruto dos avanços tecnológicos decorrentes de um contexto impactado pelas duas guerras mundiais, no qual houve uma disputa política e bélica para ver qual país se mostraria mais avançado e melhor preparado tecnologicamente no setor.

Após o uso bem-sucedido do avião na Primeira Guerra Mundial, os principais países europeus aproveitaram o chamado período entreguerras (1918-1939) a fim de reestruturarem as suas forças aéreas militares, criando ministérios exclusivos para administrá-las, quando, então, elas deixaram, parcial ou totalmente, de fazer parte da Marinha e do Exército. Pouco a pouco, o Ministério do Ar, o qual passou a se responsabilizar tanto pela aeronáutica militar quanto pela civil, foi instituído em países como Inglaterra, em 1918, França, em 1928, e Itália, em 1929.

No Brasil, o setor aéreo havia sido estruturado dividido sob o controle de três ministérios distintos: o da Marinha administrava a aviação naval, após a instalação da Escola de Aviação Naval, em 23 de agosto de 1916; o da Guerra, a aviação do Exército, com a criação da Escola de Aviação Militar, em 15 de janeiro de 1919; e o da Viação e Obras Públicas, a navegação aérea civil, conforme regulamento de 22 de julho de 1925. Após a adoção de Ministérios do Ar pelas potências europeias, surgiram discussões aqui no país para, da mesma forma, organizar a nossa aviação em torno de um único órgão, de maneira independente e centralizada.

Campanhas com esse objetivo intensificaram-se na década de 1930, tendo seus adeptos apresentado principalmente a seguinte justificativa para a criação de um ministério exclusivo de controle do setor aéreo: dar uniformidade e trazer economia às atividades exercidas. No entanto, somente depois da eclosão da Segunda Guerra e da constatação, no início do conflito, do emprego bem-sucedido e vitorioso das aviações alemães e italianas na conquista de territórios, o governo brasileiro passou a cogitar efetivamente uma mudança estrutural na área.

Diante disso, Getúlio Vargas, em 1940, decidiu consultar os representantes dos ministérios que controlavam setores civis ou militares da aviação, solicitando a produção de pareceres informando serem favoráveis ou não à unificação. O Estado Maior da Armada, em nome da Marinha, apresentou-se contrário à medida, em memorando remetido ao Conselho de Segurança Nacional. Por sua vez, tanto o Exército, por decisão de seu Estado Maior e do ministro da Guerra  Eurico Gaspar Dutra, quanto o Ministério da Viação e Obras Públicas, por intermédio do Departamento de Aeronáutica Civil e do Conselho Nacional de Aeronáutica, demonstraram-se favoráveis à iniciativa. 

Além de ter acesso à posição dos órgãos institucionais atingidos pela centralização, o presidente da República quis conhecer a opinião individual daqueles que compunham o setor aéreo militar. Para isso, pediu ao seu piloto particular, o capitão Nero Moura, que consultasse colegas aviadores das Forças Armadas sobre a questão. A posição predominante foi a do consentimento à fusão.

Reunindo essas informações, Getúlio Vargas, no segundo semestre de 1940, decidiu-se favoravelmente pelo novo ministério, estruturado no modelo italiano de junção completa das aviações militares e civis existentes no país. Com isso, o Ministério da Aeronáutica foi criado em 20 de janeiro de 1941, juntamente com as Forças Aéreas Nacionais, as quais, quatro meses depois, passaram a se chamar Força Aérea Brasileira (FAB). Para presidir a pasta recém-inaugurada, não provocando atritos desnecessários entre o Exército e a Marinha, o chefe de Estado escolheu um civil: o gaúcho Joaquim Pedro Salgado Filho.

O novo ministro divulgou, em outubro de 1941, durante a “Semana da Asa”, a frase cunhada por ele e inserida na programação impressa do evento, que resumia os objetivos a serem alcançados pela sua pasta: “Pilotos para o Brasil, aviões para os pilotos e técnicos para os aviões. Esta é a flâmula aeronáutica”. Com ela, Salgado Filho demonstrou que seu intuito era investir no crescimento do número de pilotos, de aeronaves disponíveis para treinamento e de engenheiros e mecânicos capazes de projetar e de fazer a manutenção dos aparelhos aéreos. As ações do ministro revelam a estruturação de um projeto voltado à construção de uma “mentalidade aeronáutica”, expressão empregada na época que consistia na tentativa de se generalizarem a compreensão e o interesse da população pelo desenvolvimento da navegação aérea, despertando em cada brasileiro o desejo de colaborar com a causa.

Em relação à face civil do desenvolvimento dessa mentalidade aeronáutica, começando pela formação de pilotos e pela ampliação de seus quadros, o novo ministério investiu nos jovens, para estimulá-los a se interessarem pelo setor da aviação, formando uma reserva aérea. A estratégia nessa direção foi a de fundar organizações de ensino pré-aeronáutico, como a Federação Brasileira de Escoteiros do Ar (FBE-Ar), em 19 de abril de 1944. Além disso, Salgado Filho incentivou o crescimento do número de escolas de aviação civil e de aeroclubes, ao conceder subvenções que permitiam a redução do custo das horas de voo dos cursos de pilotagem. Com isso, essas unidades de capacitação passaram de 20, antes de 1941, para 202, em 1943. Da mesma forma, a quantidade de pilotos brevetados saiu de 145, em 1930, para 1.100, em 1942. Devido a isso, o detentor da pasta recebeu títulos honoríficos de diversos aeroclubes, reconhecimento de suas ações em prol da aviação desportiva.

Já no que diz respeito à iniciativa do Ministério da Aeronáutica para aumentar o número de aviões de treinamento dos civis, Salgado Filho desenvolveu, a partir de 1941, a Campanha Nacional de Aviação (CNA), com o objetivo de pedir, à população em geral e aos empresários em particular, a doação de dinheiro que seria revertida na compra de aviões doados aos aeroclubes do Brasil. Por exemplo, em 9 de janeiro de 1942, Salgado Filho recebeu, com essa finalidade, um cheque de representantes de uma companhia de petróleo. Para a entrega de cada avião, estruturou-se um ritual de batismo, buscando evidenciar a iniciativa. Tal cerimônia incluía um religioso, o batismo da aeronave doada, momento em que ela ganhava um nome, e o padrinho convidado, que fazia um discurso. Por fim, a celebração era encerrada após o aparelho aéreo ser batizado com champanhe. O resultado da campanha foi significativo, obtendo-se, até 1945, aproximadamente 600 aviões. 

Fechando as estratégias de construção da mentalidade aeronáutica civil, Salgado Filho incentivou o interesse das crianças e dos jovens pelas profissões técnicas, utilizando para isso o aeromodelismo, prática de construção de aviões em miniatura, atividade que estimularia o aprendizado de conhecimentos técnicos e práticos. Com isso, em agosto de 1941, lançou uma campanha almejando instalar em cada escola do Brasil um “Aeromodelo Clube”. Em outubro do mesmo ano, criou o Primeiro Campeonato Nacional de Aeromodelismo, disputado entre menores de 21 anos, o qual distribuiu prêmios em dinheiro. Nos anos seguintes, ampliou o número anual dessas competições, como, por exemplo, a ocorrida em julho de 1944. Somando-se a essas medidas, concedeu subvenções às Escolas de Aviação Civil e aos aeroclubes, de modo a reduzirem os custos da matrícula nos cursos de formação de mecânico de aviação e de radiotelegrafista de voo.

Já em relação à face militar do desenvolvimento dessa mentalidade aeronáutica, no que diz respeito à formação de pilotos, Salgado Filho, com o fim das Escolas de aviação da Marinha e do Exército, criou a Escola de Aeronáutica, em 25 de março de 1941, localizada no Campo dos Afonsos. O curso de formação dos pilotos tinha duração de três anos e o intuito era o de formar mais e melhor, em comparação às antigas escolas. Segundo a projeção estruturada pelo Ministério da Aeronáutica, os números deveriam saltar de 145 alunos matriculados e 24 efetivamente diplomados, em 1941, para 1.100 matriculados e 256 diplomados, em 1946. Aumento expressivo, uma vez que a antiga Escola de Aviação Militar, por exemplo, formava uma média de vinte pilotos por ano.

Por sua vez, no que se refere à oferta de aeronaves, o ministro da Aeronáutica procurou tomar medidas de fortalecimento do setor industrial e nacional de aviação, permitindo ao Brasil, consequentemente, dispor de autonomia na produção de aeronaves e de seus componentes, obtendo menor dependência de outras nações. Nesse sentido, a principal estratégia empregada por Salgado Filho com esse objetivo foi a de concluir os dois empreendimentos considerados pelo governo Vargas capazes de fazer do país uma potência aérea: a Fábrica Nacional de Aviões, instalada em Lagoa Santa, Minas Gerais, e a Fábrica Nacional de Motores, erguida em Xerém, distrito do município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro.

Já com o intuito de fortalecer a formação dos técnicos, o ministério recém-fundado criou, em 25 de março de 1941, a Escola de Especialistas de Aeronáutica, instalada no Galeão. Coube a ela formar, entre outros, quem ingressava no curso de Oficial Mecânico, destinado aos suboficiais e primeiros-sargentos mecânicos de Avião, Rádio, Armamento e Fotógrafos. Caberia aos concluintes conservar e reparar toda a aparelhagem envolvida na aviação militar. Registraram-se, até setembro de 1944, mais de trezentos sargentos formados, entre mecânicos de avião, radiotelegrafistas de voo e de terra, fotógrafos aéreos e mecânicos de armamento, em seis turmas.

Muitas dessas ações estruturadas por Salgado Filho acabaram sendo fortalecidas pela aproximação do Brasil com os Estados Unidos em decorrência da participação de ambos na Segunda Guerra Mundial. Declarando guerra ao Eixo, em 1941, e buscando a mesma atitude do nosso país, os norte-americanos passaram a negociar o rompimento do Brasil com Alemanha, Itália e Japão. O acordo envolvia, entre outros pontos, a cessão de bases militares no Nordeste e de matérias-primas estratégicas, em troca do investimento necessário à instalação de uma usina siderúrgica e ao reaparelhamento das Forças Armadas brasileiras. A parceria entre os dois governos permitiu aportes significativos de recursos financeiros provenientes dos estadunidenses, empregados, por exemplo, na compra do maquinário necessário à instalação da Fábrica Nacional de Aviões e da Fábrica Nacional de Motores e na aquisição de contratos de cessão de tecnologia com empresas dos Estados Unidos.

Para concluir, é importante destacar que, nesse projeto governamental de construção de uma mentalidade aeronáutica, a história foi considerada uma dimensão fundamental e, portanto, intensamente mobilizada na década de 1940. Com o intuito de legitimar a necessidade de investimentos nessa área, o governo procurou, no passado, brasileiros considerados pioneiros do desenvolvimento da navegação aérea mundial, utilizando-os para confirmar a existência no país de uma herança vocacional ao voo, a qual, por sua longevidade, já faria parte da identidade do povo.

Para tanto, o Ministério da Aeronáutica mapeou essas figuras precursoras, destacando quatro, provenientes do Brasil colonial, imperial e republicano: Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724), Júlio Cesar Ribeiro de Souza (1843-1887), Augusto Severo (1864-1902) e Alberto Santos Dumont (1873-1932). No entanto, apesar de o governo Vargas passar a enaltecer, de um modo geral, todos esses personagens considerados pioneiros da navegação aérea, Santos Dumont, em especial, ocupou lugar central nessa política de valorização. Do ponto de vista do desenvolvimento da navegação aérea, os feitos do inventor brasileiro na dirigibilidade dos balões e na criação do aeroplano foram considerados os mais significativos para dar sustentação à afirmação de que o Brasil foi o berço da navegação aérea mundial.

Para fortalecê-la, o governo Vargas, a partir de 1940, investiu em inúmeras ações buscando inserir o inventor no panteão dos heróis nacionais, principalmente após a contestação internacional da primazia de Santos Dumont no primeiro voo de avião. Nesse ano, o governo dos Estados Unidos procurou difundir, em toda a América, a comemoração do que chamou de “Dia da Aviação Pan-americana”, cuja celebração se daria em 17 de dezembro. Segundo os norte-americanos, tal data remetia aos feitos dos irmãos Wilbur e Orville Wright, os quais, em 1903, teriam realizado o voo inaugural da história em aparelho mais pesado do que o ar, provido de motor.

Essa disputa ocasionou uma batalha entre o Brasil e os Estados Unidos, ainda que restrita ao campo da memória e, consequentemente, estimulou a ditadura varguista a proteger a interpretação que considerava 23 de outubro de 1906, data em que Santos Dumont contornou a Torre Eiffel abordo de seu avião 14 Bis, como a do primeiro voo de um aeroplano na história. Para isso, o governo investiu, na década de 1940, em inúmeras políticas culturais de glorificação do inventor, sendo três as principais:

1ª) A construção de uma estátua em homenagem a Santos Dumont, erigida no aeroporto que leva seu nome, na cidade do Rio de Janeiro. O projeto escolhido foi de autoria do escultor Amadeu Zani, cuja maquete trazia, na parte superior do monumento, a figura mitológica de Ícaro e, na base, efígies humanas caídas, vítimas da tentativa malsucedida de voar, bem como uma representação do inventor brasileiro sentado, imaginando uma forma de tornar possível o voo humano. A inauguração ocorreu em 23 de outubro de 1942, momento no qual a escultura foi revelada ao público, com a presença de civis e militares, de Getúlio Vargas e do ministro Salgado Filho;

2ª) A transformação em lugar de memória da residência de veraneio de Santos Dumont, situada na encosta do antigo morro do Encantado, no centro da cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Uma parceria entre a prefeitura de Petrópolis e o Ministério da Aeronáutica permitiu que tal propriedade fosse transformada no Museu Casa de Santos Dumont. A inauguração dele ocorreu em 21 de março de 1943, com a presença de Salgado Filho;

 3ª) A cerimônia de entrega ao governo do coração atribuído a Santos Dumont. O inventor brasileiro havia morrido em São Paulo, em meio à instabilidade causada pela chamada Revolução Constitucionalista de 1932. Diante da guerra civil em andamento no Brasil, a família do “Pai da Aviação” e autoridades públicas optaram por embalsamar o corpo, preservando-o até que este pudesse ser enterrado no Rio de Janeiro. O Dr. Walther Harberfeld, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, foi contratado para isso. Ao executar o procedimento, ele retirou o coração e o conservou em um globo de cristal, guardado em seu gabinete. Em 1944, o médico concordou em doá-lo à nação, quando o órgão vital foi acondicionado em um recipiente mais pomposo. Em 24 de outubro de 1944, na sede do Aeroclube do Brasil, no Rio de Janeiro, deu-se a solenidade, com a entrega a Salgado Filho do invólucro contendo o coração de Santos Dumont.

Neste ano de 2021, em que se completam 80 anos da criação do Ministério da Aeronáutica, mostrou-se bastante oportuno relembrar a história do desenvolvimento da aviação no Brasil, na qual as ações de Salgado Filho representaram um importante capítulo. Nos quase cinco anos em que ele esteve à frente da pasta da Aeronáutica, procurou estruturar o projeto de construção de uma mentalidade aeronáutica, o qual vislumbrou transformar o país em uma potência aérea. Para tanto, investiu, no âmbito civil e militar, na formação de um número expressivo de pilotos e de técnicos e na aquisição de uma quantidade significativa de aviões.

 

 Bibliografia aqui

Imagens:

Fundo Salgado Filho, R0, caixa 6, pacote 15, dossiê 12. Arquivo Nacional

Fundo Salgado Filho, R0, caixa 6, pacote 15, dossiê 13. Arquivo Nacional

Fundo Salgado Filho, R0, caixa 6, pacote 15, dossiê 14. Arquivo Nacional

Fundo Salgado Filho, R0, caixa 6, pacote 15, dossiê 15. Arquivo Nacional

Fundo Salgado Filho BR_RJANRIO_R0. 0FOT026

Fundo Salgado Filho, R0, caixa 13, doc. 25. Arquivo Nacional

Fundo Agência Nacional. BR RJANRIO EH.0.FOT, EVE.2835 (02)

Fundo Salgado Filho, R0, caixa 64, doc. 7. Arquivo Nacional

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Fundo Agência Nacional. BR RJANRIO EH.0.FOT, AEO.92 (03)

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Fundo Agência Nacional. BR RJANRIO EH.0.FOT, AEO.110 (03)

Fundo Salgado Filho, BR AN RIO R0, caixa 15, doc. 84

Fundo Agência Nacional. BR RJANRIO EH.0.FOT, EVE.6168 (02)

Fundo Agência Nacional. BR RJANRIO EH.0.FOT, PRP.1612 (07)

Fundo Agência Nacional. BR RJANRIO EH.0.FOT, PPU.2898 (01).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

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