O Estado de Sítio e seu uso na Primeira República
Thiago Mourelle - doutor em História, pesquisador do Arquivo Nacional
O Estado de Direito se consolidou na História Moderna em oposição ao Estado Absolutista. Ou seja, se no Antigo Regime a vontade do rei era soberana e cabia a ele tomar as decisões sem o amparo de nenhuma norma além de seu próprio desejo e alguns costumes de época, no mundo ocidental que se constituiu após a Revolução Francesa, aos poucos, as leis no papel, em especial o surgimento das constituições, significou um passo importante na tentativa de que todos tivessem direitos iguais.
Já o Estado de Sítio, quando decretado, configura um regime jurídico excepcional, de caráter temporário, em razão da ocorrência de algum fato que represente perigo para a ordem pública constituída. Ele pode ter formas mais ou menos amplas, ou seja, desde medidas meramente policiais até a suspensão de garantias constitucionais. Em geral, para se colocar o Estado de Sítio em vigor, verifica-se a existência de duas circunstâncias: se há, de fato, perigo para a ordem pública e se não é possível resolver tal problema sem o uso de medidas excepcionais.
Logo, o Sítio seria um mecanismo legal de suspensão da ordem legal. Sua primeira utilização, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, teria ocorrido em 1791, durante a Revolução Francesa. Mas como definir o que é exceção? Termos como “ordem pública”, “comoção interna”, “bons costumes” são subjetivos, não deixando claro como e quando podemos julgar que é, de fato, essencial que o Estado de Sítio seja decretado.
O Direito tende por buscar ideias gerais para serem objeto das leis escritas. Mas isso passa a ser um problema no caso de algo que precisa ser bem definido, de modo a diminuir ao máximo a possibilidade de suspensão indevida, pelo Estado, dos direitos individuais e coletivos. Esse é um problema que se refletiu em várias ocasiões em que o mecanismo do Estado de Sítio foi decretado. E persiste esse questionamento, em relação a diversos momentos históricos, sobre se seu uso realmente foi necessário ou se sua utilização foi apenas uma forma do governante se proteger de críticas e reagir contra opositores.
A teoria: o Estado de Sítio na Constituição de 1891
No Brasil, país de raízes autoritárias e elitistas, o Estado de Sítio foi utilizado não como um mecanismo de uso pontual, mas de forma constante e frequente, como um meio encontrado por presidentes que, diante de qualquer crise ou possibilidade de enfraquecimento de seu poder, buscaram usá-lo para agirem quase que ditatorialmente. Assim, agrediram a democracia e governaram com “mão de ferro”, perseguindo adversários, prendendo indiscriminadamente e expulsando pessoas do país.
A Constituição de 1891, primeira de nossa república, dava poderes ao Congresso Nacional para a declaração do Estado de Sítio no título V, especificamente nos institutos jurídicos de exceção, salvo no caso em que deputados e senadores não estiverem reunidos ou na iminência de perigo à pátria. Nesses dois casos, o presidente poderia tomar a iniciativa unilateralmente. Do contrário, haveria todo um trâmite em que o Sítio deveria ser aprovado pelos parlamentares.
Além disso, a constituição previa que tal mecanismo fosse aplicado apenas nos casos de agressão estrangeira ou insurreição interna e sempre por um tempo previamente determinado. É importante ainda destacar que o Estado de Sítio previsto na lei estabelecia tão somente a prisão e deportação de indivíduos, não afetando a inviolabilidade do lar nem a liberdade de imprensa, por exemplo – o que mudaria apenas com a Constituição de 1934, já no governo de Getúlio Vargas.
Porém, em várias ocasiões, governos manipularam tal dispositivo, em maior ou menor grau, para se livrarem de crises políticas, aumentarem o próprio poder ou obter a prerrogativa de perseguir opositores. Na Primeira República, especialmente, o uso do Sítio se tornou uma forma de se governar, hipertrofiando o Poder Executivo e, consequentemente, enfraquecendo o Judiciário e o Legislativo.
Na prática: o uso do Estado de Sítio pelos primeiros presidentes
Segundo pesquisa publicada na Revista de Informação Legislativa, resultado de um levantamento feito pelo Senado Federal, o Brasil ficou 2.365 dias sob o Estado de Sítio no período de 1889 a 1930. Para detalhar mais: o recurso foi aplicado onze vezes durante os 41 anos da Primeira República (1891, 1892, 1893, 1897, 1904, 1910, 1914, 1917/1918, 1922/1923, 1924/1926, 1930). Ou seja, mais de seis anos no somatório, pouco mais de 15% do tempo dos mandatos presidenciais estiveram sob esta condição, que deveria ser utilizada somente em momentos muito ocasionais e excepcionais. Destaque para o governo Artur Bernardes, em que a normalidade democrática esteve em vigor por menos de dois meses de uma administração que durou quatro anos. Um acinte aos direitos individuais e coletivos.
A primeira vez em que o Estado de Sítio foi decretado ocorreu já pelo primeiro presidente republicano, Deodoro da Fonseca, que fechou o Congresso e impôs um Estado de Sítio preventivo, que foi imediatamente revogado após sua saída. Floriano Peixoto, que o substituiu, também utilizou o dispositivo. Inicialmente, ainda no contexto de perseguição aos governadores que haviam apoiado a tentativa de golpe de seu antecessor. O “marechal de Ferro” prendeu e expulsou do país opositores, inclusive senadores e deputados, ignorando por completo as garantias da imunidade parlamentar, ferindo um preceito legal.
Rui Barbosa, grande jurista e político brasileiro, mostrou aos florianistas que o Estado de Sítio não suspendia as imunidades parlamentares nem todas as garantias constitucionais. E que, também, não tinha efeito preventivo e sim repressivo. Eram necessários fatos, eventos, algum ocorrido que demandasse rápida ação do Poder Executivo para que fosse permitida sua utilização. Barbosa concluiu que, no caso de Floriano Peixoto, o Estado de Sítio estava sendo confundido com o Estado de Guerra, este sim com um tom acima e que previa ainda maiores prerrogativas de ação para o governo.
Rui Barbosa chegou a entrar com um recurso no Supremo Tribunal Federal (STF), que acabou decidindo favoravelmente a Floriano. Isso mostra que, muitas vezes, as próprias autoridades judiciárias decidem de forma contrária à letra fria da lei, em virtude de pressões políticas ou mesmo convicções ideológicas, diante da efervescência do contexto e da conjuntura vivida. Tal prática está longe de ser considerada uma exceção na história brasileira, muito pelo contrário.
Porém, apesar da decisão, o STF era visto pelos situacionistas com muita desconfiança. Pois a aposta dos políticos conservadores, desde o início da República, foi num presidencialismo forte, que se mostrou característico da Primeira República. Assim, Judiciário e até o Legislativo se dobravam à figura do presidente. Nos anos seguintes isso fica evidente pela forma como o Estado de Sítio continuou a ser usado.
O uso ao longo do século XX e o “exagero” no governo Bernardes
No final do século XIX, o governo de Prudente de Morais utilizou o recurso por duas ocasiões, em especial: após um atentado contra a vida do presidente e no contexto do combate ao arraial de Canudos. Seu sucessor, Rodrigues Alves, usou o Sítio na conjuntura da Revolta da Vacina, a fim de se dotar de maiores poderes de repressão ao movimento que gerou um quebra-quebra nas ruas do Rio de Janeiro e um confronto direto entre revoltosos e as forças legais.
Hermes da Fonseca, em 1910, utilizou o método como salvo-conduto para um verdadeiro terrorismo de Estado movido contra os participantes da Revolta da Chibata, bem como contra outras pessoas que nada tinham a ver com a rebelião, mas que foram atingidas pela política excludente, elitista e violenta do governo federal. Alguns anos depois, no governo Wencleslau Brás, o Sítio foi decretado em 17 de novembro de 1917, em razão da Primeira Guerra Mundial. Porém, seus efeitos se aplicaram basicamente contra movimentos de trabalhadores que lutavam em favor de melhores salários, contra o aumento dos aluguéis e que protestavam em prol de melhores condições de vida. O curioso é a manobra, feita num curto período entre fevereiro e março de 1918, quando o Estado de Sítio foi suspenso por cerca de duas semanas, a fim de que os cidadãos recuperassem seus direitos políticos e, assim, pudessem votar nas eleições presidenciais que estavam em curso.
Essas manobras também não seriam uma exceção na história brasileira. Depois das revoltas de novembro de 1935, por exemplo, Getúlio Vargas conseguiu a aprovação do Estado de Sítio, que foi sendo renovado por quase dois anos. Porém, em dezembro de 1935, tal dispositivo foi suspenso apenas para tornar legal a reforma da Constituição, de modo a dar mais poderes ao Poder Executivo. Isso foi realizado porque uma reforma constitucional não poderia ocorrer com o Estado de Sítio vigente, conforme previa a Constituição de 1934.
Mas, voltando à Primeira República, vemos que Epitácio Pessoa, em 1922, evocou o Estado de Sítio após o movimento dos 18 do Forte, em julho daquele ano. Mesmo após o evento ter sido dominado e encerrado, a medida foi mantida por seis meses, até o final daquele ano, novamente em caráter preventivo, enquanto se dava andamento na investigação e no processo judicial do caso.
Já seu sucessor, Arthur Bernardes, foi o presidente que governou a maior parte de seu mandato com o Sítio em vigor. O fato de sua vitória eleitoral ter sido apertada, além do enfrentamento dos protestos tenentistas, convenceram Bernardes de que necessitava de amplo poder para perseguir, prender e reprimir adversários políticos.
Publicamente, Bernardes se defendia dizendo que utilizava com parcimônia os poderes que o mecanismo lhe dotava e afirmava que o Brasil, sob o Estado de Sítio, possuía ainda assim condições de liberdade para seu povo que muitos países sob vigência plena constitucional não garantiam aos seus cidadãos. Uma afirmação cercada de certo cinismo.
E assim, o país rasgava leis, constituições e passava por cima de direitos coletivos e individuais sob a justificativa de defender uma ordem maior, de acordo com manobras jurídicas e argumentos elásticos dos defensores do aumento indiscriminado do poder do presidente da República. O objetivo: reprimir manifestações de contestação da ordem vigente, calar protestos dos trabalhadores e atacar políticos opositores.
Para os governantes, o Estado de Sítio interessou para que pudessem maximizar seu poder e agir sem ter que responder a quem questionava ou criticava suas ações. E, quanto mais pobre, mais violado era o brasileiro em seus direitos, diante da mentalidade autoritária que iniciava nossa República... Como se os presidentes quisessem herdar o Poder Moderador da época do Império. Em pleno governo formalmente democrático, o autoritarismo dava as cartas.
Legendas para os documentos (na ordem em que aparecem no texto):
BR_RJANRIO_PH_0_FOT_21886_034 Deodoro da Fonseca, proclamador da República e primeiro presidente do Brasil
BR_RJANRIO_Q6_GLE_COR_TEL_0059_d0001de0001 Telegramas parabenizando Floriano Peixoto pelas atitudes do governo diante de revoltas; informando sobre o início de novo bombardeio em Niterói; agradecendo nomeação; declarando Estado de Sítio na capital.
BR RJANRIO SF.0.DAV, PRR.1433 Mensagem de Prudente de Morais, em 1898, ao Congresso Nacional, sobre o Estado de Sítio declarado após tentativa de atentado contra a sua pessoa.
BR_RJANRIO_O2_0_FOT_0431 Hermes da Fonseca, ao centro, ao lado do homem que segura um guarda sol.
BR_RJANRIO_O2_0_FOT_0226_d0001de0001 Wenceslau Brás, o segundo sentado da direita para a esquerda
BR_RJANRIO_PH_0_FOT_38683_003 Epitacio Pessoa, presidente da República
BR_RJANRIO_PH_0_FOT_11593_020 Arthur Bernardes, ao centro, de bigode, chapéu, terno claro e sapatos pretos e brancos.
BR RJANRIO SA.0.COR, ANV.41 Carta de Góis Monteiro para Artur Bernardes, presidente da República, justificando sua atuação no interior da Bahia, por ocasião do combate à Coluna Prestes, e tecendo considerações sobre a falta de estrutura militar frente à situação.