O filme aqui apresentado exibe imagens da VIII Assembleia Interamericana de Mulheres, realizada em julho de 1952, no palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. Criada em 1928, a Comissão Interamericana de Mulheres (CIM) foi o primeiro organismo intergovernamental a tratar especificamente do tema dos direitos da mulher, promovendo a inserção da perspectiva de gênero em todos os debates e áreas da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em seu oitavo congresso, reuniu representantes de 21 países do continente e contou com a presença do então presidente Getúlio Vargas que discursou em prol de reformas institucionais que ampliassem os direitos das mulheres no país.
As imagens foram produzidas pela Agência Nacional – agência de notícias estatal criada com o objetivo de divulgar os atos da administração federal e outras notícias de interesse público –, para seu Cinejornal Informativo, exibido nas salas de cinema, com larga escala de circulação no país. A cobertura que imprensa fez do evento contribuiu para o fomento das discussões acerca dos direitos civis das mulheres, sobretudo a respeito da tutela do marido sobre a mulher casada, que se desenrolaram no Congresso brasileiro durante toda década de 1950.
O Código Civil de 1916 estabelecia os direitos e deveres do homem e da mulher no casamento, com grande diferença entre eles: enquanto ao homem caberia o controle da sociedade conjugal, limitando os atos da mulher; à esposa, em troca da “proteção” do casamento, era vetado a prática de diversos atos civis de forma independente, sempre necessitando da anuência da figura masculina. O marido era o representante legal da família e, de acordo com o código, estavam entre seus deveres: administrar os bens comuns e particulares da mulher; determinar o local de residência da família; autorizar ou não sua esposa a exercer atividade remunerada fora do lar, viajar ou receber heranças, entre outros. Já a mulher, era tratada como relativamente incapaz, assim como os índios, os pródigos e os menores entre 16 e 21 anos.
A construção de uma opinião pública favorável às mudanças na condição da mulher – a matéria do cinejornal contribuiria para isso – e a pressão de diplomatas brasileiras durante os fóruns internacionais, dos quais o país fazia parte, foram de fundamental importância para a luta pelos direitos civis das mulheres no Brasil. As décadas de 1940 e 1950 ficariam marcadas pela inclusão da igualdade de gênero em tratados internacionais, abrindo caminho para o questionamento das leis nacionais. A Carta da ONU, de 1945, e a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948[1], foram os principais pilares para a construção de futuros documentos internacionais acerca dos direitos das mulheres, pois garantia em seus artigos a igualdade entre os sexos.
Exemplo disso, foi a Convenção Americana sobre a Concessão de Direitos Civis à Mulher, assinada em Bogotá (Colômbia), também em 1948, que contou com representantes do Brasil. Em suas resoluções, declara expressamente: "Que a mulher tem direito igual ao do homem na ordem civil". Mas, apenas quatro anos mais tarde, o Congresso brasileiro promulgaria seus artigos por meio do decreto no 31.643, de 23 de outubro de 1952, mesmo ano do Congresso da CIM e período de acaloradas discussões no parlamento pela alforria civil da mulher e o fim do domínio masculino sobre a família.
Thereza Cristina Marques e Hildete Pereira de Melo, em seu artigo Os direitos civis das mulheres casadas no Brasil entre 1916 e 1962. Ou como são feitas as leis (2008), buscam compreender as estratégias políticas de Bertha Lutz e outras feministas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) pelos direitos civis das mulheres, durante o seu curto mandato como deputada federal (1936-37) e a forma como essa mesma questão tramitou no Congresso pelas mãos de outros atores nos anos 1950.
Segundo as autoras, após a conquista do voto feminino no início do século XX – principal bandeira do movimento feminista – a luta da FBPF aglutinou pautas políticas em defesa dos direitos civis e trabalhistas das mulheres. Em 1937, Bertha Lutz apresentou uma ampla reforma do estatuto legal da mulher, que pretendia encerrar quaisquer restrições jurídicas baseadas no sexo ou no estado civil (projeto de lei n. 736/1937). O projeto não chegou a ser votado em razão da dissolução do Congresso em 1937.
As discussões em torno da reforma das leis civis foram retomadas no final da década de 1940, como dito anteriormente, e contou com o protagonismo das advogadas e feministas Romy Martins Medeiros da Fonseca e Ormida Ribeiro, encarregadas da elaboração do anteprojeto revogando as restrições legais em razão do gênero ou do matrimônio (projeto de lei 59/1952)[2]. Uma primeira proposta foi entregue oficialmente ao senador Mozart Lago durante a VIII Conferência Interamericana de Mulheres e, em julho de 1952, foi apresentado ao poder legislativo pelo congressista.
O projeto de lei sofreu forte oposição de setores conservadores e uma longa tramitação na Câmara, cerca de 10 anos, o que contribuiu para a alteração de várias das propostas iniciais. O resultado foi a aprovação, em 1962, de um texto, em sua origem modernizante, mas que ao longo do debate político incorporou uma série de restrições à igualdade civil entre os sexos: o Estatuto Civil da Mulher Casada. A principal alteração na condição jurídica da mulher foi a extinção do inciso II, art.6, do Código de 1916: “São incapazes relativamente a certos atos (...) ou à maneira de os exercer: (...) as mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal (...).” A mulher casada passaria a condição de absolutamente capaz de gerir os atos da vida civil. Já a chefia masculina sobre a sociedade conjugal não foi alterada, mas o estatuto serviu de base para novas conquistas do movimento feminista, sobretudo na luta pela inclusão dos diretos da mulher na Constituição de 1988.
Legenda do filme: Trecho de cinejornal da Agência Nacional que apresenta a 8ª Assembleia Interamericana de Mulheres, realizada no Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro, em 1952. Cinejornal Informativo v. 3 nº 24 (1952). Arquivo Nacional. Fundo Agência Nacional. BR_RJANRIO_EH_0_FIL_CJI_40.
Leia mais em:
CUNHA, Clara de Oliveira. Estatuto da mulher casada: a reforma dos direitos civis das mulheres casadas de 1962. 2014. 52 f. Monografia (Bacharelado e Licenciatura em História)—Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
Gazele, Catarina Cecin. Estatuto da Mulher Casada: uma história dos direitos humanos das mulheres no Brasil. Programa de pós-graduação em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo. Dissertação de mestrado, Vitória, 2005.
Marques, Teresa Cristina de Novais e Melo, Hildete Pereira de. Os direitos civis das mulheres casadas no Brasil entre 1916 e 1962. Ou como são feitas as leis. Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 440, maio-agosto/2008.
[1] A Declaração dos Direitos do Homem posteriormente teve o seu nome alterado para Direitos Humanos devido ao protesto das mulheres por um tratamento igualitário entre os sexos, em direitos e deveres.
[2] O projeto de lei n.59 foi prejudicado, tendo seu teor anexado ao projeto n.374, de autoria de Nelson Carneiro, resultando na PL 1804/ 1952, que deu origem ao Estatuto de 1962.