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Joaquim José da Silva Xavier ganhou a alcunha de Tiradentes ainda em vida, na segunda metade do século XVIII, em Minas Gerais, mas só viria a se tornar um herói nacional depois da independência do Brasil de Portugal e, principalmente, da proclamação da República, já no final do século XIX. Único membro do grupo que concebeu o levante conhecido por Inconfidência ou Conjuração mineira – na então Vila Rica, atual Ouro Preto, região de exploração aurífera - contra a exploração imposta pela Coroa de Portugal a ser executado pelo crime de sedição, Tiradentes tornou-se símbolo de uma nação altiva e independente. Seus atributos, sua imagem, sua iconografia se constituíram aos poucos, e alguns momentos foram marcantes para a construção do mito. A proclamação da República (1889), o centenário da Independência (1922) e a ditadura militar (1964-1985) foram provavelmente os mais relevantes.

A Conjuração Mineira traz consigo ideais de liberdade, orgulho nacional, idealismo, heroísmo, prestando-se assim aos mais variados movimentos que se proponham a disseminar tais ideais entre o povo, identificando-se com eles – de forma coerente e consistente ou não. A apropriação de um passado comum visto como positivo para construir um discurso que sirva para objetivos muito específicos e muitas vezes contrários ao próprio discurso original não é novidade e nem exclusividade do Brasil. Tiradentes encarna o espírito da revolta e por isso, mais do que ela mesma, vem sendo utilizado como símbolo do que a nação brasileira possui de mais elevado.

Alguns aspectos (mais ou menos ficcionalizados) foram agregados ao longo do tempo à figura de Tiradentes: o estoicismo diante da morte inevitável e do perdão real recebido por seus companheiros mas a ele negado; a responsabilidade pelos seus atos, punidos com o enforcamento e o cruel esquartejamento do seu corpo; o patriotismo aguerrido; o perdão cristão concedido ao carrasco por influência dos religiosos com quem partilhou seus últimos momentos. Personagem ideal para inspirar um povo sereno, que aceita seu destino mansamente, ao mesmo tempo em que age com furor patriótico quando chamado a enfrentar o inimigo.

A ditadura militar ampliou os usos da imagem do herói nacional e aprofundou alguns aspectos, como seu suposto cristianismo e o fato de ter raízes militares, posto que era alferes. Em discursos e festividades, os generais transformaram a luta de Tiradentes contra a Coroa portuguesa na sua própria “luta” contra o comunismo soviético. Por ter sido um levante não concretizado, cujos ideais concretos são pouco detalhados e um tanto obscuros, a Inconfidência mineira adequava-se aos propósitos do regime militar pois tais lacunas permitiam o exercício de imaginação ao se preencher o espaço deixado em branco pelos registros históricos. Além do mais, o fato de jamais ter eclodido permitiu a manutenção de uma imagem pacífica dos revoltosos, vítimas da sanha assassina da Coroa portuguesa. À ditadura militar não seria conveniente ressaltar essa face do herói abertamente subversivo e combativo, que seria mais bem apropriada por uma esquerda nacionalista.  

O feriado de Tiradentes (21 de abril, instituído pelo primeiro governo republicano) e sua comemoração em Ouro Preto foram apropriados pela ditadura como uma forma de continuidade entre um passado e um presente de glória e liberdade, dado que o golpe de 1964 sempre foi hipocritamente apresentado pelas Forças Armadas como um movimento para defender a democracia brasileira do ataque dos subversivos comunistas – dentro e fora do país. Segundo Carvalho, “fazer a aproximação destes militares com os que passaram à memória popular como precursores da luta pela liberdade, ajudava a mascarar as características opressoras do regime militar.”

A trajetória de Tiradentes como herói nacional e da Inconfidência Mineira como movimento que deu luz à liberdade brasileira pode ser acompanhada nos marcos instituídos pela legislação: em 1890, o feriado de 21 de abril, aniversário de morte de Tiradentes; em 1936, repatriamento dos restos mortais dos inconfidentes exilados na África; em 1946, as polícias civil e militar passaram a comemorar oficialmente o dia 21 de abril como seu; em 1965, Tiradentes se tornou “Patrono Cívico da Nação Brasileira”.

Fatos e personagens de um passado em comum mostram-se fundamentais para a construção dos imaginários políticos, das identidades presentes. Construídos a partir de eventos e pessoas concretas que deixaram sua marca na comunidade, tais imaginários e identidades no entanto rapidamente ganham um caminho próprio, sendo narrados e construídos ao longo dos anos por diferentes grupos sociais e com diferentes objetivos. A Inconfidência/ Conjuração Mineira e seu herói executado tornaram-se símbolos nacionais a partir da independência, elementos centrais para a construção de uma história e uma identidade em comum.

O filme aqui mostrado é um vídeo institucional do governo federal realizado para marcar o feriado de Tiradentes em 1970.

BR_RJANRIO_U3_0_FIL_FIT_0466. Fundo Secretaria de Imprensa e Divulgação da Presidência da República

 

Leitura recomendada:

Carvalho, A. F. (2006). A conveniência de um legado adequável: representações de Tiradentes e da Inconfidência Mineira durante a Ditadura Militar.

 

https://www.cafehistoria.com.br/comemoracao-do-dia-de-tiradentes-foi-instituida-durante-a-ditadura-militar/arquivo

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