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Ao longo de um trabalho de pesquisa não é incomum que se localizem documentos que não atendam os objetivos e hipóteses da investigação, mas que ainda assim possuam a capacidade de sugerir ao pesquisador novos temas e percursos de estudo. A seção Uma Surpresa mostra ao público justamente esse tipo de documento encontrado durante as pesquisas desenvolvidas para difusão do acervo do Arquivo Nacional.

Os recortes de jornais aqui apresentados integram o fundo Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) e entrelaçam duas questões caras à luta travada por essa instituição em prol dos direitos das mulheres: o emprego e o voto femininos. Com relação ao trabalho feminino, marcam distância das concepções que circulavam à época em que foram publicados, segundo as quais o espaço doméstico era percebido como naturalmente destinado às mulheres. A elas eram também imputadas as características de docilidade, fragilidade, delicadeza e submissão, lógica que se desdobrava na ideia de que cabia aos homens (pais, maridos, irmãos) sustentá-las materialmente.

O casamento consignava à mulher respeitabilidade e garantia de sustento, mesmo nos casos em que esta trabalhava fora da esfera doméstica e contribuía financeiramente para o orçamento familiar. Permanecer solteira ou engajar-se em uma união não amparada pelas leis, evidentemente, não faziam parte do papel que se esperava ver desempenhado pelas mulheres. Caso estas não contraíssem matrimônio, passavam a ser consideradas um peso para a família. O deslustre de “não ter conseguido um marido” poderia ser parcialmente amenizado caso a mulher obtivesse um emprego, preferencialmente em profissões que pudessem ser associadas à esfera doméstica, como as desenvolvidas nas áreas da educação e da saúde. A resposta dada pela entrevistada na matéria intitulada Os homens que ponham as barbas de molho! ilustra bem esse raciocínio: ao ser indagada se gostava da profissão de barbeira, responde que “é sempre um prazer para toda gente fazer alguma coisa pela vida para não ser pesado aos demais”. A entrevistada informa também sobre as “inconveniências” que escuta dos clientes homens e o jornal termina a matéria chamando atenção para a foto tirada da barbeira em atuação, como prova caso algum leitor não acreditasse que uma mulher trabalhava nessa atividade.

 

As ocupações já mencionadas e as desempenhadas no secretariado e comércio pareciam sintetizar a ideia do trabalho feminino nas primeiras décadas do século XX, daí o aparente espanto do jornalista ao descobrir uma mulher na profissão de barbeira, uma “profissão masculina”. Um olhar mais demorado, todavia, permite observar uma pluralidade de ocupações exercidas por mulheres, tanto no meio urbano quanto no rural. As idealizações então correntes a respeito do trabalho feminino desconsideravam inclusive os rigores enfrentados por aquelas que cumpriam atividades no campo, o que inclui etapas que demandavam o emprego de esforço considerável. Colocadas em perspectiva, desde o período colonial as atividades laborais mais exigentes do ponto de vista físico contaram com a decisiva participação das mulheres, sejam as escravizadas que cuidavam da lavoura, seja  a mão de obra feminina absorvida por diferentes empreendimentos fabris a partir da segunda metade do século XIX, para ficarmos apenas em dois exemplos. [1]

É importante assinalar os condicionamentos legais ao trabalho feminino. À época em que os documentos aqui em destaque foram produzidos vigia o Código Civil de 1916. A redação final desse Código foi apoiada em estudos realizados no terceiro quartel do século XIX e seus artigos estavam em sintonia com noções bem particulares de moral e família. Em relação à mulher, previa sua equiparação aos relativamente incapazes. O homem, por sua vez, na qualidade de marido, figurava como chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe o direito não apenas de administrar os bens do casal e os particulares da esposa, mas também de autorizar o exercício profissional da mulher.

O cenário de crise econômica, desenhado entre o final da Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão de 1929, que atingiu de maneira avassaladora diversos países, inclusive o Brasil, contribuiu para que a obrigatoriedade do sustento da mulher pelo homem adquirisse novos contornos. A matéria veiculada no jornal Correio de Notícias, de 8 de fevereiro de 1931, elenca “os desastres econômicos”, o aumento da população e a “dificuldade de encontrar marido devida ao excesso de população feminina em relação ao sexo oposto” entre as razões para que as mulheres “se atirem ao trabalho”, uma vez que “a sociedade não pode mantê-las na tranquilidade da vida doméstica”.

Barbeiras, aviadoras, advogadas, juradas, todas essas atividades desempenhadas por mulheres desafiavam noções  profundamente enraizadas na sociedade brasileira. As novas maneiras de abordar o papel da mulher, informadas pelos movimentos feministas, igualmente favoreceram que o trabalho fora da esfera doméstica passasse a ser percebido por muitas mulheres como um indicador da sua autonomia e por muitos homens como sinal inequívoco de desprestígio derivado da incapacidade de prover sustento.

Outra esfera em que o entendimento de que a mulher era relativamente incapaz produzia impactos era o do pleno exercício dos atos jurídicos. O questionamento sobre a aptidão da mulher para integrar um corpo de jurados pode ser apreciado na mesma matéria do Correio de Notícias. A convocação de professoras para integrar um corpo de jurados no Estado de São Paulo é caracterizada como uma “verdadeira revolução”, em que pese sejam considerados como resultados esperados dessa participação não o rigor e o juízo preciso desejáveis nesses casos, mas uma “maior moralidade e mais preponderância do espírito de família nas decisões” e  a “justa piedade pelos humildes”. Na mesma página, outra matéria trata de duas advogadas brasileiras que atuaram na defesa de um réu acusado de crime de morte. De saída, o leitor é informado de que promotor as tratou com “requintes de amabilidades”. Na sequência, uma discussão busca estabelecer o que seria o feminismo “legítimo”, recorrendo mais uma vez às ideias de docilidade e delicadeza, ali aperfeiçoadas pelo estudo e pela mansidão:

muito diferente é o feminismo que frequenta um curso superior e ganha um diploma científico; o que sobe pelo talento, pelo estudo, pelo trabalho, e tão naturalmente, que as palavras do seu triunfo não ferem suscetibilidades, não suscitam protestos e reações, não desafiam, não ameaçam, não amesquinham...

O sufrágio era  outra frente de ação da FBPF em busca de direitos políticos e civis para as mulheres. Enfrentando forte oposição de variados setores da sociedade, as mulheres que estavam à frente da luta pelo direito ao voto viam-se na contingência de dar respostas às mais diversas alegações baseadas em preconceitos e estereótipos: o baixo grau de instrução da mulher brasileira a impediria de atingir o nível intelectual necessário ao discernimento para votar; o fato de serem suscetíveis a paixões lhes turbaria o raciocínio; o exercício de direitos políticos traria consigo o perigo da masculinização da mulher. [2]

Os recortes de jornais reunidos e aqui apresentados  foram extraídos de edições do Diário da Bahia, O Jornal e Correio de Notícias, publicadas em 1931, apenas alguns meses após a subcomissão legislativa encarregada de elaborar um novo Código Eleitoral ter divulgado os primeiros resultados de seu trabalho. A colagem das matérias desses três  jornais fornece ao menos uma pista: a correlação entre trabalho feminino e voto. Em meio às discussões ocorridas em âmbito nacional a respeito do voto feminino, algumas controvérsias restavam por resolver. Uma delas, como bem salienta a coluna do jornal Diário da Bahia, datada de 28 de novembro de 1931 e intitulada Cinco minutos feministas, é se seria indispensável para o alistamento que mulher alegasse e provasse “que tem escritório, consultório ou estabelecimento ‘próprio’”. A coluna, redigida pela engenheira e vice-presidente da FBPF Carmen Velasco Portinho, resume a preocupação de que tal medida, se levada adiante, limitaria o direito de voto da mulher. Carmen encerra seu texto afirmando que a distinção entre os dois sexos, prevista para o novo Código Eleitoral, era inconstitucional.

Notas:

[1] NADER, Maria Beatriz. Mudanças econômicas, mulher e casamento em Vitória (1970-2000). In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 13., 2002, Ouro Preto. Anais [...]. Ouro Preto: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2002. p. 1-26.

[2] CARDOSO, Elizângela Barbosa. Sufrágio, educação e trabalho: o feminismo na imprensa em Teresina nas décadas de 1920 e 1930. História Revista, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 103-128, 2014.

Sugestões de leitura:

FACCHINETTI, Cristiana; CARVALHO, Carolina. Loucas ou modernas? Mulheres em revista (1920-1940). Cadernos Pagu, Campinas, n. 57, p.1-33, 2019.

SINGER, Paul I.; MADEIRA, Felícia R. Estrutura do Emprego e Trabalho feminino no Brasil: 1920-1970. Caderno CEBRAP, São Paulo, n. 13, p. 1-45, 1973.

Notações:

BR RJANRIO Q0.ADM, EOR.CDI, RJR.58 - Clipping de recortes de jornais e revistas sobre voto feminino e trabalho feminino. Fundo Federação Brasileira para o Progresso Feminino.

 

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