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Em 13 de março de 1964 o então Presidente da República João Belchior Marques Goulart – o Jango – pronunciava um histórico discurso para cerca de 200 mil pessoas em frente a estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, que é considerado por muitos cientistas sociais como a gota d’água no processo de polarização política que culminou com sua deposição em 1º de abril do mesmo ano. O objetivo do comício convocado pelo Presidente era marcar o início de uma campanha de mobilização popular em todo o Brasil para pressionar o Congresso Nacional a discutir e aprovar as chamadas reformas de base, em especial a reforma agrária. No entanto, as forças reacionárias agiram com rapidez; empresários, militares e uma classe média hipnotizada por uma virulenta propaganda anti-comunista disseminada há anos concretizaram um golpe de estado planejado há meses, e instauraram uma ditadura cruel e insidiosa que durou 21 anos e custou a vida de milhares de pessoas.

As reformas de base integravam reivindicações e propostas do Partido Trabalhista Brasileiro – ao qual Jango pertencia – desde a década anterior, organizadas a partir de uma concepção de desenvolvimento mais independente dos países do capitalismo central que também propunha uma distribuição dos ganhos do desenvolvimento mais equitativa, fortalecendo o mercado (consumidor e produtor) interno e reduzindo a desigualdade persistente. Tornou-se bandeira de Jango a partir do momento em que este passou a ocupar o cargo de Presidente da República, a despeito da tentativa de golpe para impedir sua posse em 1961 e da ferrenha oposição da ala à direita no Congresso Nacional, principalmente da UDN de Carlos Lacerda.

Jango já havia, sem sucesso, tentado passar algumas destas reformas pelo Congresso, mas a reforma agrária por exemplo esbarrava em impedimentos constitucionais: a Constituição então vigente permitia a expropriação apenas de terras não-ocupadas e mediante pagamento em dinheiro. O Presidente não tinha número suficiente para aprovar uma emenda constitucional, e a estratégia de mobilizar o povo e os movimentos sociais em 1964 visava pressionar deputados e senadores para que alterassem a Constituição.

Em linhas gerais, as reformas de base reuniam propostas de alteração estrutural em alguns pontos chave para a sociedade e a economia:

  1. Reforma bancária: subordinação da rede bancária privada ao Banco Central de uma forma ampla, já que o Bacen centralizaria decisões de crédito e juros; a reforma permitiria, em tese, maior controle sobre o processo inflacionário além de estimular a indústria e o consumo internos, através da democratização do crédito.
  2. Reforma tributária: visava transformar a receita federal em instrumento de desenvolvimento e fonte de recursos previsíveis, estimulando a produção e consumo internos através da diminuição de impostos indiretos e maior taxação a pessoas físicas de maior poder aquisitivo, além de criar mecanismos para evitar sonegação fiscal e evasão de divisas.
  3. Reforma administrativa: propunha modernizar a máquina pública e torna-la mais eficiente, racionalizando processos e tornando-os impessoais e refratários aos apadrinhamentos, capacitando os funcionários e transformando a administração pública em instrumento de desenvolvimento.
  4. Reforma universitária: a intenção era democratizar o acesso e transformar as instituições de ensino superior em universidades de fato e direito, centros de pesquisa e ensino.
  5. Reforma eleitoral: o ponto principal desta reforma residia na extensão de voto aos analfabetos e militares de baixa patente.
  6. Reforma urbana: buscava implementar alterações no uso de solo urbano, controlar aluguéis e acabar com o problema de moradia nas cidades.
  7. Reforma agrária: talvez a reforma que despertava maior resistência, a reforma agrária proposta por Jango e que dependia de alteração constitucional dispensava o pagamento prévio de terras desapropriadas em dinheiro e previa uma avaliação diferente das propriedades rurais para fins de reforma, o que levaria de fato a uma alteração na estrutura fundiária nacional. Se realizada da forma proposta, a reforma baixaria o custo dos alimentos no mercado interno, criaria no campo um grupo de pequenos proprietários com poder aquisitivo capaz de contribuir com o fortalecimento do mercado consumidor, e principalmente, apaziguaria os conflitos no campo e diminuiria a miséria.

As propostas de João Goulart, segundo o próprio e seus aliados, visavam abrir caminho para uma sociedade em que a concentração de renda e propriedade (rural e urbana) não estivesse entre as mais altas do mundo. Em tempo: depois de 60 anos, o Brasil continua sendo um dos países mais excludentes do mundo, com níveis de desigualdade comparáveis aos países mais pobres e autoritários do planeta. Na época, “as propriedades brasileiras com mais de mil hectares de área – latifúndios –, embora absorvessem 47,3% das terras apropriadas do país, cultivavam, tão-somente, 2,3% das mesmas contribuindo seus cultivos com apenas 11,5% do total das lavouras do país” (SILVA, João Goulart e as reformas de base). Com o fortalecimento do mercado interno e incentivos a indústria nacional, pensava-se também na concretização de um modelo mais autônomo de desenvolvimento. Por fim, em uma sociedade menos desigual, com a paz estabelecida no campo e aumento de produtividade da propriedade rural, e uma democracia de fato e direito esperava-se uma sociedade menos conflituosa, com maior apego às suas conquistas e menos ameaçada pelo “canto da sereia” do comunismo.

Não é difícil perceber que as propostas de Jango, as reformas de base, ao contrário de comunistas, visavam apenas quebrar o monopólio histórico das elites sobre o processo político e, consequentemente, sobre as decisões relativas à apropriação da riqueza produzida no país, além de promover melhor distribuição de renda. A pecha de “comunista” foi usada, não pela primeira vez e nem pela última, como forma de grupos reacionários e conservadores convencerem a população brasileira que a manutenção de uma estrutura injusta e desfavorável à grande maioria justificava-se diante de uma suposta ameaça maior. Desnecessário dizer que esta nefasta campanha de desmoralização do governo, acusado de comunista e baderneiro, serviu apenas como cortina de fumaça para as elites de sempre _ empresários associados ao capital internacional, militares, classes médias conservadoras, latifundiários (que atualmente chamamos agronegócio) _ além de representantes de interesses políticos e econômicos estrangeiros (em especial os Estados Unidos, maior interessado em manter o Brasil em um processo de desenvolvimento dependente do capital e da tecnologia norte-americanas) implantarem seu próprio projeto de Brasil: sem democracia, sem participação popular, sem movimentos sociais, sem redistribuição de renda.

O Brasil sofre até hoje com intensa desigualdade, e na prática a Constituição de 1988 deixou a realização da reforma agrária para a legislação ordinária – e ela nunca ocorreu. Esta mesma Constituição estendeu o voto aos analfabetos, e abriu caminho para a implantação de mecanismos democráticos em várias esferas da vida pública, incluindo orçamento participativo de prefeituras e órgãos colegiados em todas as esferas de governo. Atualmente contamos com centros universitários de excelência, e o Bacen funciona de fato como centro de decisão do setor financeiro.

A despeito de mais de 3 décadas de democracia, o persistente autoritarismo da sociedade brasileira e a intransigência longeva das nossas elites – que se recusam terminantemente a conviver com a diferença e a abrir mão da prerrogativa de decidirem sozinhas os destinos políticos e econômicos da nação – continuam a representar uma ameaça para as nossas instituições: apesar da nova roupagem virtual, que tende a ser muito mais perigosa por permitir alcance inimaginável até poucos anos atrás, elas fazem uso das mesmas mentiras e das mesmas campanhas de medo e ódio, e vimos recentemente com estarrecimento a palavra “comunista” ser novamente utilizada sem absolutamente nenhum conhecimento de causa.

O documento aqui publicado pertence ao fundo João Goulart, e tem notação BR_RJANRIO_D7_0_DCO_TXT_0001_0005. Clique na imagem para acessá-lo.

Leitura recomendada:

Costa, C., de Souza, A., & Carvalho, L. (2007). As reformas de base e o golpe de 64. Em Debate, (3), 1-9.

de Vasconcelos Silva, A. (2019). João Goulart e as reformas de base. Textos e Debates1(32).

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