Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), de janeiro de 2020, que documenta as catástrofes climáticas ocorridas durante as últimas duas décadas na América Latina e Caribe, as inundações foram o tipo de desastre natural mais comum registrado na região. Ainda de acordo com o relatório, o Brasil está entre os 15 países do mundo com maiores números absolutos de pessoas expostas ao risco de enchentes.
As inundações, provocadas nos períodos de chuva intensa, tornaram-se um problema comum para a população de muitas cidades do país, mas não são uma novidade na história do Brasil. Apesar de cada vez mais frequentes, devido a intensificação do processo de urbanização, relatos de enchentes em áreas urbanas foram descritos ainda no século XVII.
Processo social e ambiental, os grandes alagamentos são provocados por condições do ecossistema – umidade, clima, bacias hidrográficas –, mas também fazem parte dessa equação, as transformações sociais sobre esse ecossistema: aterros, canalização de rios, estruturas que acumulam ou dispersam as águas em pontos críticos da cidade.
Fato é que as grandes enchentes fazem parte do cotidiano dos habitantes de diversas cidades brasileiras, como registrou a imagem acima produzida pelo Sistema Nacional de Informações. Sua região sofre com inundações periódicas? Você sabe quando e onde esse fotografia foi tirada? O que você saberia dizer sobre essa imagem?
As enchentes no Nordeste
Estereótipos discursivos e imagéticos acerca da região Nordeste do país nos remetem a cenários de praias paradisíacas em dias de sol ou ainda, e talvez mais recorrente, às áridas paisagens da caatinga e a ausência de água, como se o todo fosse a seca do interior. Embora a estiagem seja o desastre natural de maior ocorrência no Nordeste do país, a região caracteriza-se não apenas pela falta de chuvas, mas também por eventos pluviais extremos – dois fenômenos climáticos dependentes e periódicos.
O fenômeno da seca é resultado, dentre outros fatores, da extrema variabilidade espacial e temporal das chuvas: enquanto os valores de precipitação no litoral ultrapassam 1.600mm anuais, no interior, determinadas áreas não alcançam 400mm; já o índice pluviométrico médio anual concentra-se em um período de 3 a 5 meses, podendo ocorrer chuvas isoladas ao longo dessa estação mais úmida, ou concentrar todo volume anual em apenas um único mês. Temos, portanto, a alternância de anos de estiagens catastróficas seguidos de outros chuvosos, com inundações calamitosas no Nordeste brasileiro.
Essa dicotomia secas X alagamentos é característica fisio-climática da região, no entanto, o comportamento humano e o processo de uso e ocupação desse espaço geográfico agravam seus efeitos[1]. A impermeabilização do solo nas cidades, o desmatamento e ocupação das áreas de várzeas dos rios, o descarte inadequado de lixo urbano-industrial são exemplos de práticas sociais que podem intensificar sobremaneira os efeitos catastróficos de um fenômeno natural. As chuvas fazem parte do ciclo natural das águas, é o escoamento desse volume de água precipitado, prejudicado por um processo de urbanização desordenado, que determina a ocorrência de enchentes (Maia; Sedrez, 2011).
Segundo o professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Osvaldo Girão, relatos de estragos causados por fortes chuvas que afetam as cidades nordestinas datam do século XVII, sobretudo no litoral setentrional e oriental, porção regional mais acometida pela alta pluviosidade durante a estação chuvosa. Inundações sempre foram uma preocupação das autoridades regionais e causa de inúmeros transtornos e prejuízos materiais para os moradores dessas áreas urbanas. Analisando o histórico de enchentes no Recife, por exemplo, o autor aponta a construção de diques e canais para represamento e escoamento das águas ainda durante a administração do holandês Maurício de Nassau (1637-1643) e a enchente de 1854, considerada a maior do século XIX, documentada nas páginas do periódico Diário de Pernambuco.
A partir da segunda metade do século XIX, os desastres ambientais ocorridos na região ganham mais espaço nos meios de comunicação e nos discursos dos representantes políticos do Nordeste, sobretudo a seca, que se institui como o problema regional e todas as demais questões são interpretadas a partir de sua influência[2]. Mas as enchentes e todos os impactos sociais, ambientais e econômicos também serão registradas periodicamente, agravadas pelo crescimento das cidades e pela elevada concentração populacional no meio urbano.
Apesar da previsibilidade desses eventos, as esferas governamentais responsáveis pelo planejamento urbano e crescimento das cidades não conseguiram conter a ação antrópica sobre o meio ambiente e garantir o adequado planejamento da ocupação territorial controlando, assim, os impactos das enchentes, com destaque para as áreas próximas aos cursos d’água, naturalmente inundáveis. Em artigo para o dossiê Enchentes, da Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio, o historiador Kamillo Karol Ribeiro e Silva, ilustra bem esse fato ao analisar os relatos orais de trabalhadores da cidade de Jaguaruana, no Ceará, durante o processo de saída de casa no momento inicial das enchentes ocorridas na região nos anos de 1960, 1974 e 1985:
“As narrativas sobre os momentos de uma enchente seguem sempre um denotado fio condutor. A ação de observar as águas do rio, que por ocasião das chuvas, sobem sem cessar, é contada, respeitando a seguinte ordem: acompanhar o nível das águas, preparar-se para deixar a casa, mudar-se temporariamente – ou em definitivo, nunca se sabe – e retornar para as coisas que a cheia não levou.”
A ocupação desordenada das áreas próximas ao rio Jaguaribe, a previsibilidade das cheias durante os períodos de chuva, as perdas materiais e ambientais provocadas pelas enchentes e a reocupação das mesmas áreas de risco, preparando o terreno para novas catástrofes, são os caminhos relatados pelos moradores. E é a população de mais baixa renda a mais atingida por tais catástrofes, pois é ela quem habita os terrenos urbanos próximos aos leitos fluviais, que apresentam maiores riscos de enchentes (FEITOSA, 2014).
As fotografias aqui apresentadas fazem parte de um dossiê do Serviço Nacional de Informações (SNI) sobre as enchentes que atingiram cidades nordestina no ano de 1985, logo após um longo período de estiagem (1979-1984) que, segundo o documento, estimulou a população a aproximar-se dos cursos de água na construção de suas moradias. Destaca ainda que, a maioria das autoridades estaduais “demonstrou desconhecimentos primários das prioridades a serem estabelecidas e das reais necessidades para execução de obras”. Daí a importância de documentos acerca desses fenômenos climáticos e seus reflexos sobre determinados grupos sociais. O que se assiste, ao longo de décadas, é o uso eleitoreiro das catástrofes naturais que atingiram a região, utilizando-se as secas e enchentes para solicitar recursos e investimentos, que nem sempre são investidos de maneira eficaz. Especialistas defendem atualmente, é um novo modo de desenvolvimento que se apoie em base socioeconômica e ambiental mais sustentável, o que ainda está longe de acontecer.
O estudo da climatologia histórica, campo de estudos novo e vasto, pode auxiliar no entendimento das dinâmicas climáticas ao longo do tempo e suas consequências para a sociedade. O reconhecimento, a inventariação e caracterização desses eventos meteorológicos podem fornecer importantes subsídios para políticas públicas de planejamento e gestão desses espaços (GIRÃO,2012).
[1] A água precipitada escoa através do leito principal de uma rede de drenagem, conforme a quantidade de água aumente, o nível do leito do rio começa a subir, ultrapassando o leito principal, ocupando áreas adjacentes, denominadas de várzea. Este é o processo natural de formação da enchente, entretanto, ao adentrar no ambiente urbano, as águas das enchentes encontrando suas áreas ocupadas pela população, poderão atingi-la e vitimá-la pelos efeitos do extravasamento da cota máxima do canal, e transforma-se em desastre natural (FEITOSA, 2014).
[2] Em 1859, foi criada a Imperial Comissão Científica de Exploração das Províncias do Norte, tratava-se de uma primeira comissão nacional a produzir descobertas e relatos científicos sobre a região. A Grande Seca de 1877-1879 e toda colocaram o Nordeste no centro dos debates do Instituto Politécnico e, anos depois, já durante o governo republicano, seria instituída a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS, 1909).
LEIA MAIS EM:
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Nos destinos de fronteira: história, espaço e identidade regional. Recife: Bagaço, 2007.
ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de JANEIRO. Número 8. Dossiê Enchentes. Rio de Janeiro, 2014.
FEITOSA, Maria Suzete Sousa. Enchentes no Rio Poti e vulnerabilidades socioambientais na cidade de Teresina-PI. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Recife, 2014.
GIRÃO, Oswaldo. Reconstrução do clima no Nordeste Brasileiro. Secas e enchentes do século XIX. Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia. Lisboa, 2012.
SEDREZ, Lise. Fernanda; MAIA, Andrea Casa Nova. Narrativas de um Dilúvio Carioca: memória e natureza na Grande Enchente de 1966. História Oral (Rio de Janeiro), v. 2, p. 221-254, 2011.