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Uma sociedade democrática não pode alegar essa qualidade sem que a liberdade de crenças seja presente, estabelecida em lei e respeitada pelos cidadãos e pelos agentes de segurança e de justiça. Longe de ser comum, ainda hoje milhões de pessoas em todo o mundo sofrem perseguição em função das suas crenças. Mesmo onde protegidos por lei, praticantes de determinadas religiões se vêm perseguidos por preconceitos e ofensas abertas oriundas de pessoas comuns, de figuras midiáticas, de personalidades políticas e ocupantes de cargos oficiais. Como muitos outros aspectos da democracia, a liberdade religiosa é uma conquista, e uma conquista que precisa ser defendida dia a dia.

A perseguição religiosa pode ser velada - assim como a censura, aliás. Sob o manto das "boas intenções" relacionadas à proteção do povo de vigaristas comuns, muitas práticas populares foram vedadas no Brasil até a segunda metade do século passado. Aqui exibimos um pequeno trecho de um auto de apreensão; você consegue perceber do que se trata?  Pesquise, converse com amigos e colegas, e aguarde a resposta na próxima semana.

 

 

O Brasil abriga diversas práticas religiosas que resultam de combinações e recombinações de tradições de várias origens étnicas e geográficas, resultando em amálgamas originais e peculiares ao nosso sistema de crenças. A influência das religiões de matriz africana é provavelmente a mais marcante entre elas, tendo sido vinculado às tradições católicas – por exemplo, na identificação de santos com orixás – e ao espiritismo kardecista cristão de origem europeia, com grande influência na umbanda.

A umbanda e o candomblé são as duas religiões afro-brasileiras de maior popularidade. Enquanto a primeira nasceu no Brasil, influenciada pelo espiritismo kardecista no início do século XX, a segunda aproxima-se mais fielmente das religiões africanas ancestrais cujas deidades maiores são os orixás. A despeito da liberdade de culto garantida por todas as Constituições republicanas, estas religiões sempre enfrentaram o preconceito, a perseguição oficial e a intolerância letal associadas ao racismo endêmico da sociedade brasileira. Na falta de uma legislação mais clara acerca de cultos e religiões, a atuação das polícias e do sistema judiciário pautava-se pelo discernimento (ou falta dele) de agentes públicos de segurança e juristas. As religiões populares, de origem africana, as práticas tradicionais europeias como leituras oraculares e usos de ervas (também uma prática nativa) acabavam categorizadas como mistificação e charlatanismo, enquanto apenas as grandes tradições institucionalizadas (as vertentes cristãs, o judaísmo), eram vistas como religiões de fato e direito.

As práticas populares costumavam ser enquadradas nos artigos 157 e 158 do código penal de 1890, sobre curandeirismo e charlatanismo; a consolidação das leis penais realizada pelo jurista Vicente Piragibe não alterou a essência da lei. Nem mesmo o Código de 1940 estabeleceu a liberdade religiosa consoante as especificidades das diversas práticas brasileiras, e a perseguição policial aos praticantes começou a ter fim com o ativismo dos mesmos e a luta contra a intolerância e o preconceito. Este processo de aceitação não foi uniforme em todo o país, e se durante o Estado Novo em alguns lugares começou a haver a tolerância para com tais religiões em função da busca por uma “brasilidade” original, em outros o autoritarismo do regime acirrou a repressão.

Diferentes estratégias foram utilizadas nessa luta. Enquanto os terreiros de candomblé, suas mães e pais de santo defendiam seu direito às práticas ancestrais diante da fúria higienista e racista da polícia – que encampava as concepções evolucionistas das elites europeizadas segundo quem tais religiões eram resquícios obscurantistas de um passado selvagem, que além de tudo incorporavam práticas consideradas “anti-higiênicas” –, os praticantes da jovem umbanda buscavam esclarecer a sociedade quanto ao seu caráter progressista e científico, herdado do kardecismo, capaz de guiar o povo por um processo evolutivo próprio.

Muitos juristas e advogados foram fundamentais no processo de aceitação oficial de práticas religiosas populares estranhas às chamadas grandes tradições institucionalizadas. No documento aqui apresentado, trecho de um processo, a polícia apresenta “provas” de práticas de curandeirismo e charlatanismo. O advogado da acusada, o notório Magarino Torres, rebate de forma ousada, afirmando categoricamente que tais práticas não dependem do sistema de crenças mas sim, do objetivo monetário subjacente a elas. Compara o recebimento de dinheiro por parte da acusada às doações realizadas para a Igreja Católica, afirmando que ambas são igualmente legítimas.

Se as perseguições oficiais e processos judiciais cessaram, não cessou a intolerância diante das religiões de matriz africana. O número de agressões contra praticantes de tais religiões e seus templos só faz aumentar, e os discursos de ódio contra eles são impunemente veiculados por figuras públicas e ocupantes de cargos oficiais.

Documento: Processo criminal - Consolidação das Leis Penais de 1932, artigo 157 contra Iracema Magalhães da Silva. Rio de Janeiro, outubro de 1938. Vara Criminal. BR RJANRIO CS.0.PCR.8207

OLIVEIRA, I. D. M. (2014). Perseguição aos cultos de origem africana no brasil: o direito e o sistema de justiça como agentes da (in) tolerância. Anais do XXIII Encontro Nacional do CONPEDI/UFSC, 308-332.

Oliveira, J. H. M. (2006). As estratégias de legitimação da umbanda durante o Estado Novo: institucionalização e evolucionismo. HORIZONTE - Revista De Estudos De Teologia E Ciências Da Religião, 4(8), 133-143. Recuperado de http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/520

 

 

 

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