Art.68 aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (Constituição Federal, 1988)
A garantia do direito à propriedade definitiva do território no qual comunidades negras desenvolvem seus modos de fazer e viver foi reconhecido pela Constituição Cidadã de 1988, exatos cem anos após a abolição formal da escravidão. O artigo 68 resultou na titulação pelo Estado brasileiro das primeiras terras quilombolas no país. Essa conquista, contudo, foi fruto de lutas travadas pelos movimentos sociais negros e da resistência quilombola ao longo da história.
As primeiras definições formuladas pelas autoridades luso-brasileiras, ainda no período colonial, caracterizavam os quilombos como toda "habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”[1]. Formulado no contexto de repressão da coroa portuguesa aos movimentos de resistência de negros escravizados, o termo perpetuou-se ao longo dos anos sem nenhuma atualização, tomando como perspectiva esse referencial histórico e arqueológico dos antigos quilombos.
Mais do que garantir, na forma da lei, o direito à propriedade da terra as comunidades quilombolas, a Constituição possibilitou o avanço nas discussões a respeito da conceituação desses territórios na atualidade. Aspectos mais amplos foram adotados pelo movimento quilombola, numa compreensão além de histórica, antropológica, étnica, cultural e de autoidentificação desses grupos, com costumes, tradições, práticas e trajetórias próprias que os distinguem dos demais.
O decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, aponta que: “consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”[2].
Uma ampla diversidade de processos deu origem aos territórios quilombolas, que não pode mais ser entendido apenas na ótica da insurreição como nos tempos coloniais. Aquilombar-se, segundo a antropóloga Bárbara Oliveira Souza, reside nas inúmeras estratégias e mobilizações impetradas pelos escravizados e seus descendentes, ao longo da história, para resistir e preservar seus usos e costumes. E, dentro desse contexto, a formação de territórios autônomos e de identidade étnica, em oposição a platation escravagista e, depois de 1850, da propriedade privada, está no cerne do movimento de aquilombar-se[3].
Não se sabe ao certo quantos quilombos existem no Brasil atualmente. Em 2019, o IBGE[4] mapeou 5972 localidades quilombolas espalhadas por 24 estados do país. No entanto, menos de 10% desses territórios foram titulados, o que gera um sentimento de insegurança e incerteza nas comunidades em relação ao seu futuro.
Se, mesmo com o direito de propriedade garantido pela Constituição, episódios de grilagem e invasões dessas terras são rotineiros, antes desse marco jurídico, a situação de quilombolas ainda era mais delicada. É o caso do quilombo Independência, retratado na década de 1970 no caderno B do Jornal do Brasil, o recorte de jornal faz parte do acervo do Arquivo Nacional. Para o autor da matéria, “as 40 famílias do que resta do quilombo Independência só têm uma saída, um lento, talvez, mas implacável desaparecimento” e “o maior medo das 40 famílias negras (...) é serem expulsas da localidade e conduzidas à força para trabalharem na Transamazônica”.
Cinquenta anos depois, a realidade da comunidade é completamente diferente daquela narrada pelo jornal. Distante cerca de 20km da cidade de Paraty, no Rio de Janeiro, o quilombo Campinho da Independência, segundo a própria comunidade, teve sua origem no final do século XIX, quando terras no sertão da fazenda Independência foram doadas por seu proprietário a três escravas, num acordo “de boca”, informal. Seus descendentes se fixaram no local e viveram isolados até a abertura da estrada Rio-Santos em meados da década de 1970 e a consequente especulação imobiliária.
Os conflitos pela posse das terras da localidade cresceram, sobretudo com o desenvolvimento do empreendedorismo turístico na região. A antropóloga Neuza Gusmão, que fez pesquisas na comunidade durante o período, conta que, através do envolvimento em movimentos sociais rurais e da formação de uma etnicidade específica a comunidade pôde fazer frente aos contínuos processos de expropriação de suas terras.
Mas a posse definitiva só veio em 1999. Campinho da Independência foi a primeira comunidade quilombola do Estado do Rio de Janeiro a ter suas terras tituladas, baseada no artigo 68 da Constituição Federal. Isso foi possível a partir da identificação da comunidade como quilombo, da construção de identidades relacionadas a um passado cultural afro-brasileiro, da valorização das tradições, de sua trajetória histórica e relações territoriais especificas.
A comunidade, que tinha um estigma social negativo, associada a altos níveis de discriminação e exclusão, como podemos ver na própria matéria do jornal, atualmente abre suas fronteiras, orgulhosa de seu passado e futuro. O fluxo com o exterior intensifica-se sobretudo com a chegada do turismo étnico de base comunitária, importante atividade econômica que faz com que os moradores possam permanecer no território. O quilombo recebe muitos turistas e alunos interessados no roteiro etno-ecológico proposto: além do restaurante, que serve pratos elaborados pela comunidade com produtos locais, o projeto dialoga com o artesanato, os núcleos familiares, as roças tradicionais, a agrofloresta, o jongo, as contações de histórias e oficinas. Todas as ações estão integradas e geridas pelos quilombolas, que trabalham na construção desse modelo coletivo. A mudança da percepção do Estado sobre os quilombos foi um grande responsável por quebrar a barreira discriminatória.
[1] ALMEIDA, Alfredo Wagner Berto de et al. (Orgs). Territórios Quilombolas e Conflitos. Caderno de Debates Nova Cartografia Social. Vol1, No. 2. Manaus: UEA Edições, 2010.
[2] Decreto que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ato de disposições constitucionais transitórias.
(https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm)
[3] Houve uma multiplicidade de formas de acesso à terra por essas comunidades. Segundo o CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos), em seu Manifesto pelos Direitos Quilombolas, esse acesso se deu através de doações de terras realizadas a partir da desagregação da lavoura de monoculturas; compra de terras pelos próprios sujeitos; bem como de terras que foram conquistadas pelos negros por meio da prestação de serviço de guerra; há, também, as chamadas terras de preto, terras de santo ou terras de santíssima, que indicam uma territorialidade derivada da propriedade detida em mãos de ordens religiosas, da doação de terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviços religiosos prestados a senhores de escravos por negros(as) sacerdotes de cultos religiosos afro-brasileiros. (https://www.revistamissoes.org.br/2009/04/manifesto-pelos-direitos-quilombolas/)
[4] Pela 1ª vez em 150 anos o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou, em 2022, o recenseamento da população quilombola como grupo étnico populacional.
Saiba mais em:
Lívia Ribeiro Lima. Quilombos e política de reconhecimento: o caso do Campinho da Independência. Dissertação apresentada do Programa de pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, para a obtenção de mestre na área de Antropologia Social. São Paulo, 2008.
Neuza Maria de Gusmão. Campinho da independência: um caso de proletarização "caiçara". Dissertação de mestrado apresentado ao Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, 1979.
Thaís Rosa Pinheiro. Processo de turisficação no quilombo: O caso do Campinho da Independência. Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.