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Hoje não são tantos os que ainda dizem que o Brasil foi “descoberto” em 1500; esta data marca tão somente a invasão sistemática das terras que hoje constituem nosso país por uma horda de indivíduos armados e dispostos a tomar quaisquer riquezas móveis e imóveis que aqui encontrassem, oriundos do continente europeu. Os invasores se depararam com uma terra desconhecida por eles e povos igualmente desconhecidos, que ao longo dos anos e por razões religiosas, culturais e econômicas tiveram sua humanidade questionada e suas vidas ceifadas aos milhões. Aos olhos dos invasores, pouco acostumados com a liberdade com que boa parte dos povos nativos viviam suas vidas, estas “tribos” pareciam mais um selvagem agrupamento de seres quase irracionais, sem ordem social, sem capacidade de reflexão ou debate. 

Ainda há quem pense que os povos originários das Américas – e, por sinal, qualquer povo que não viva sob padrões ocidentalizados – eram (e, em grande medida, ainda são) pouco mais que “selvagens”. Mesmo a visão romantizada, que os descreve como puros, inocentes, reserva a eles um lugar à parte de uma humanidade “racional,” “progressista,” “moderna,” apesar de todos os seus males. 

Ao longo do século XX as ciências sociais, em especial, a antropologia desempenharam um papel crucial para a paulatina desmistificação de povos considerados “primitivos.” Esta foto tem íntima relação com este processo. Você sabe de quem se trata?

 

O genocídio dos povos originários nas Américas exterminou povos inteiros ao longo dos últimos quinhentos anos e reduziu boa parte daqueles que restaram à mais aviltante miséria. Apesar de difícil quantificação, o tamanho da tragédia não pode ser minimizado por ninguém, já que a cifra consensual aponta para cerca de 70 milhões de indivíduos, representando o maior genocídio da história humana, perpetrado pelas nações europeias. No Brasil do século XX – e XXI – o extermínio sistemático desses povos deu-se através da ocupação de territórios indígenas ou a eles adjacentes por atividades nocivas ao meio ambiente, invasões descaradas dos seus territórios tradicionais, missões de “limpeza” realizadas por agentes privados com a tácita anuência do poder público. Projetos desenvolvimentistas, atividades predatórias, grandes latifundiários – todos desempenharam um papel na destruição dos povos originários.

As agências governamentais criadas para dedicação à “questão do índio” atuaram de forma conturbada, sendo muitas vezes instrumentalizadas por indivíduos que serviam aos próprios interesses ou interesses de outros agentes privados. O SPI, Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910 como Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, foi extinto em 1967 em meio a denúncias escabrosas de torturas, assassinatos e esbulho generalizado, crimes cometidos por servidores contra os indígenas. A FUNAI, criada no mesmo ano para substituir a antiga agência, tinha por missão garantir os direitos dos povos originários, inclusive resguardar suas terras dos avanços ilegais de agentes privados; mas muitas vezes se tornou inoperante diante de concepções inadequadas das “necessidades” dos povos indígenas.

De políticas de extermínio aberto (até o século XIX), disfarçadas de guerras contra povos indóceis, a atuação oficial passou para a condescendente “pacificação e integração”, já no século XX, na figura do Marechal Cândido Rondon, que integrou expedições de exploração do interior e expansão de infraestrutura (telégrafos, ferrovias), demarcação de limites, expansão do conhecimento científico. Sua abordagem caracterizava-se pelo pacifismo mas também por tentativas de inserir o indígena no Estado nacional, torna-lo um cidadão brasileiro trabalhador.

Os irmãos Villas-Boas (Orlando, Cláudio e Leonardo) desenvolveram o trabalho no interior do Brasil a partir da década de 1940, quando se juntaram a Expedição Roncador Xingu em 1944. Parte da Marcha para Oeste de Getúlio Vargas, a expedição adentra a região central do Brasil para explorar, conhecer as potencialidades – econômicas -, planejar a ocupação – oficial -, instalar vias de comunicação e transporte até a região amazônica, passando pelo planalto onde estaria a futura capital do Brasil.

Nesse contexto, os irmãos – admitidos na expedição como trabalhadores comuns – avançam na burocracia e passam a liderar ações que envolviam as populações indígenas. Com uma abordagem diferente de Rondon, eles buscavam entender estes povos em sua especificidade, concebendo ações para protegê-los do “mundo exterior” e da ação predatória de indivíduos “civilizados.” Paradoxalmente, o contato e o reconhecimento destes povos seriam a sua ruína: além das doenças mortais para os povos nativos, a sua inserção em uma estrutura oficial que os deixava a mercê da atenção oficial contribuiriam para a desagregação do seu modo de vida e sua miséria material.

Foi também neste contexto que os irmãos Villas Boas começaram a fazer uma campanha ferrenha em defesa da criação do Parque Nacional do Xingu – atualmente, Parque Indígena. Com o apoio de Marechal Rondon, do sanitarista Noel Nutels e do antropólogo Darcy Ribeiro, enfrentado a oposição de latifundiários e de governos pós-Vargas ao longo da década de 1950, os irmãos Villas Boas acabaram se tornando peça chave na inauguração do maior Parque Indígena do Brasil, em 1961.

A despeito do seu respeito manifesto pelas culturas ancestrais e das tentativas de preservá-los da predação do mundo civilizado, as iniciativas envolvendo a criação do Parque e, posteriormente, outras reservas expressavam um desconhecimento cabal das reais necessidades e histórias daqueles povos. Grupos inimigos sendo obrigados a conviver lado a lado, terras impróprias e insuficientes para o manejo tradicional, intervenção estatal excessiva são os problemas inerentes a concepção de política indigenista da época e que ainda hoje ocorrem. Os mais devastadores problemas para os povos indígenas, no entanto, são os avanços ilegais de madeireiros, garimpeiros e latifundiários nas terras que são suas por direito, além de tentativas incansáveis de representantes destes – atualmente, maioria no Congresso Nacional – de alterar leis e decisões do Supremo Tribunal Federal, guardião da nossa Constituição.

Entre erros e acertos, a atuação de “sertanistas” como os irmãos Villas Boas e o próprio Cândido Rondon contribuiu para que houvesse uma mudança na forma com que os povos nativos são vistos – infelizmente, não de forma tão ampla como gostaríamos. Ao abraçar a humanidade e a particularidade cultural de cada nação indígena, estes indivíduos abriram caminho para outras formas, mais democráticas, de realmente enfrentar questões complexas (e perigosas) que surgem no encontro conflituoso entre duas culturas.

Na foto, Orlando Villas Boas, Francisco Cordeiro, seringueiro Manuel Salazar, indígena Coá – nov, 1957 em expedição para encontrar o tenente Fernando Gomes de Oliveira, desaparecido na floresta desde 1945. Seringal Abacateiro. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_12084_011, Correio da Manhã

Leitura recomendada:

Galvão, M. E. C. G. (2014). A Expedição Roncador-Xingu e a tarefa de ocupar, civilizar e urbanizar o Brasil Central (Doctoral dissertation).

Ramos, A. R. (1998). Uma crítica da desrazão indigenista (pp. 1-10). Departamento de Antropologia, Universidade de Barasília.

 

 

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