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Denomina-se código penal o conjunto de leis que determina quais são os crimes e contravenções e suas respectivas punições. O Código Penal de 1890 - publicado no ano seguinte a proclamação da República - vigorou até o ano de 1940, data da edição do novo código por Getúlio Vargas. Neste primeiro código republicano, em que se percebe em alguns momentos a influência do positivismo, determinava-se por exemplo que indivíduos a partir de 14 anos já eram penalmente imputáveis. Também abolia as penas consideradas cruéis, tipicas de regimes escravistas (pena de morte, açoitamento), e estabelecia a universalidade da lei penal.

O código de 1890 desde o início foi alvo de muitas críticas e acusado de inconsistente e insuficiente pelos próprios políticos republicanos que haviam se batido pelo novo regime. Em muitos casos, por não seguir a risca as diretrizes de Cesare Lombroso, médico e criminologista italiano cujas teorias - já há muito em descrédito - afirmavam que o crime era inato, hereditário e que o criminoso poderia ser apontado através do estudo dos seus traços físicos. O código foi julgado incapaz de dar conta dos novos desafios colocados pelas transformações sociais e políticas do período republicano (ver críticas do jurista Aurelino Leal e do senador Paulo Egídio). Afirma Alcântara Machado durante a sessão de fundação da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo: "Tudo se resume nisto: parte da idéia da responsabilidade moral do delinqüente em vez de partir da idéia da defesa coletiva.” (...) A reforma completa do Código de 90, a reforma completa das leis de processo, a reforma completa das leis de organização judiciária, de modo a assegurar a especialização dos juízes e a moralização do júri são pontos de honra para os que têm consciência dos grandes interesses coletivos.”. Preocupado com a massa urbana que era vista como perigosa e indolente, o código criminalizou uma série de comportamentos típicos das classes populares: a capoeira, o jogo de azar, o consumo de álcool em locais públicos.

O código só seria substituído mais de meio século depois, apesar das críticas e também dos adendos - a consolidação das leis penais de 1932, realizada por Vicente Piragibe, buscou unificar o antigo código e as novas leis. 

Na matéria de hoje, apresentamos um processo de 1936 com base no artigo 157 do código penal. Você sabe de qual crime este homem é acusado?

 

No código penal de 1890 – o primeiro da República - , no capítulo II do título IV, determina-se que “perseguir alguem por motivo religioso ou politico” resultaria em “pena - de prisão cellular por um a seis mezes”. O capítulo seguinte do mesmo título é todo dedicado aos crimes contra o exercício livre dos cultos, dos artigos 185 até 188: “Ultrajar qualquer confissão religiosa vilipendiando acto ou objecto de seu culto, desacatando ou profanando os seus symbolos publicamente; Impedir, por qualquer modo, a celebração de ceremonias religiosas, solemnidades e ritos de qualquer confissão religiosa, ou perturbal-a no exercicio de seu culto; Usar de ameaças, ou injurias, contra os ministros de qualquer confissão religiosa, no exercício de suas funcções.” Estas determinações coadunavam-se com a liberdade religiosa que a Carta de 1891 garantiria em lei, reafirmando a laicidade do Estado brasileiro, em contraponto a monarquia católica que antecedera a República.

No entanto, esta liberdade religiosa não era para todos. A perseguição sistemática a praticantes de outros cultos que não os reconhecidos pela tradição das elites internacionais (em especial, a judaico-cristã) continuou ainda por algumas décadas, vitimizando em especial os praticantes de religiões afro-brasileiras. No acervo do arquivo nacional, em especial as varas e pretorias criminais, percebemos que a defesa dos acusados muitas vezes buscava identificar estas religiões com o espiritismo kardecista, relativamente bem aceito pela elite branca brasileira, como uma forma de escapar a perseguição e legitimar suas práticas.

 

O Capítulo III do título III do código penal de 1890 tratava especificamente dos crimes contra a saúde pública. Integrante deste capítulo, o artigo 157 determinava penas por “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica” que variavam de “prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.” Este foi o dispositivo que permitiu que a polícia prendesse mães e pais de santo, e praticantes de religiões de matriz africana em geral, cujos rituais envolviam práticas mágicas excluídas das religiões aceitas pela elite dominante. Outros artigos (como o 158, que versava sobre curandeirismo) igualmente permitiam “enquadrar as religiões dos negros, geralmente tidas como feitiçaria, bem como manifestações da religiosidade das camadas populares, agora potencialmente mais perigosas, por que engrossadas por milhões de negros livres” (DANTAS, 1984, citado por CAMPOS, 2015). Ao longo das décadas seguintes, o embate entre os praticantes destas religiões e as forças policiais e legais continuaria, com estas últimas incessantemente buscando desmoralizar e deslegitimar as práticas religiosas de origem africana, ora colocando-as no mesmo nível que manifestações folclóricas ou mero entretenimento, ora acusando-as abertamente de perigosas e ameaçadoras. Apenas na segunda metade do século XX as perseguições oficiais arrefeceriam, apesar da manutenção de preconceito e violência contra estas religiões por parte de parcelas da população brasileira.

O processo que ilustra esta matéria tem por notação BR_RJANRIO_CS_0_PCR_7845.

Referências:

CAMPOS, Zuleica Dantas Pereira; KOURYH, Jussara Rocha. RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS: PERSEGUIÇÕES ANTIGAS E NOVAS. Revista de Teologia e Ciências da Religião da UNICAP (Descontinuada), [S.l.], v. 5, n. 1, p. 161-177, dez. 2015. ISSN 2237-907X. Disponível em: <http://www.unicap.br/ojs/index.php/theo/article/view/609>. Acesso em: 26 set. 2019.

 SANSI, Roger. “Feitiço e Fetiche No Atlântico Moderno.” Revista De Antropologia, vol. 51, no. 1, 2008, pp. 123–153. JSTOR, www.jstor.org/stable/41616674.

 

 

 

Referência: ALVAREZ, M. C; SALLA, F. A; SOUZA, L. A. F. A sociedade e a Lei: o Código Penal de 1890 e as novas tendências penais na primeira República. In: Justiça e História, v. 3, n. 6. Porto Alegre: 2003. 

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