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Crimes violentos tradicionalmente ocupam um triste local de destaque na imprensa, em qualquer veículo que seja. A infâmia que recai sobre os criminosos só se compara ao nível com que são esmiuçadas as vidas das vítimas. No caso dos crimes anteriormente chamados “passionais” (denominação que vem caindo em desuso), a atenção que recai sobre os crimes aumenta, já que suas personagens centrais são pessoas comuns envolvidas em eventos macabros.

Se os crimes cometidos recebem intensa atenção da mídia, assim como a subsequente investigação e perseguição aos criminosos, o momento em que a justiça se faz presente raramente atrai a mesma cobertura. Há várias exceções, no entanto, motivadas por diferentes aspectos _ quando a vítima é uma criança ou parente próximo do perpetrador, por exemplo; ou em consequência da crueldade desmedida do ato, entre outras razões.

A foto aqui mostrada refere-se a cobertura do julgamento dos acusados de um crime notório, ocorrido nos anos 1950 no Rio de Janeiro, que atraiu a atenção de muitas pessoas. Dois dos acusados eram jovens da classe média, tidos como “rapazes de boa família.” Você já ouviu falar de crimes famosos desta época?

 

 

 

Dados comparativos entre os anos de 2016 e 2018 revelam que o número de casos de feminicídio a chegar ao Poder Judiciário aumentou 34%. O mesmo ocorreu com os processos envolvendo violência doméstica, que tiveram um aumento de 13% no mesmo período, ultrapassando a marca de um milhão de processos. 

O feminicídio não se trata apenas do assassinato de uma pessoa do sexo feminino; é caracterizado como crime de ódio e envolve a motivação relacionada a condição da mulher na sociedade. Por exemplo, um homem assassinar sua companheira em função de uma herança a ser recebida não caracteriza feminicídio, pois trata-se de crime com motivação pecuniária. Mas um homem assassinar a esposa por ciúme, ou durante uma tentativa de estupro, por exemplo, são crimes passíveis de caracterização como feminicídio.

O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres - por serem mulheres - no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. O país só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. Segundo o Monitor da Violência, em 2016 o Brasil apresentou 763 casos de feminicídio. No ano seguinte, foram 1047; em 2018, um salto para 1225 e em 2019, novo aumento: 1314.

A tipificação do crime feminicídio ocorreu em 2015, com a lei 13.104, que reconhece o assassinato de uma mulher em função do gênero, resultando em penas mais severas para o criminoso. Contudo, a coleta de dados ainda é complexa, pois a caracterização do assassinato de uma mulher como feminicídio depende da atuação da polícia e do poder judiciário que podem ou não fazê-lo. Antes da Lei de 2015, desde a Lei Maria da Penha (lei 11340), aprovada em 2006, “cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. 

Ao longo de séculos de história, no Brasil e em grande parte do mundo, as mulheres estiveram vulneráveis e expostas a violência das suas famílias, tanto pais quanto maridos. Até a primeira metade do século XX, um homem poderia proibir sua esposa de viajar e de trabalhar. O código civil de 1916, aliás, considerava as mulheres casadas “incapazes”.  O voto feminino só foi conquistado na década de 1930. No início do século passado, agressões físicas eram permitidas por lei, e era comum que homens justificassem o assassinato de suas esposas com a defesa baseada na legítima defesa da honra. Embora jamais tenha constado em nenhum código criminal brasileiro, esta tese foi muitas vezes apresentada com sucesso pelos advogados de defesa para absolver homens que haviam assassinado suas esposas por ciúmes. Por incrível que pareça, esse argumento ainda é utilizado em alguns casos até os dias de hoje.

A Constituição promulgada em 1988  determinou a igualdade jurídica entre os gêneros, mas o fim dessa persistente desigualdade na vida cotidiana e na política vem sendo objeto de uma luta incessante há décadas. Um dos grandes embates atualmente se refere a necessidade de se regulamentar a chamada esfera privada de forma que a opressão e a violência que marcaram (e marcam) as relações de gênero não se reproduzam indiscriminadamente na vida doméstica. As imagens que ilustram a presente matéria retratam a realidade do feminicídio em décadas anteriores a sua tipificação.

Eliane de Grammond foi assassinada com 5 tiros pelo marido Lindomar Castilho, popular cantor goiano, em 1981, depois de descobrir que sua esposa estava envolvida romanticamente com outro homem.  Na época ainda se aceitava a tese de que os homens agiam dessa forma diante das suas esposas adúlteras porque perdiam a razão e o controle, sob a violenta emoção de ver sua "honra masculina" vilipendiada. O julgamento do homicida suscitou enorme comoção pública, e o movimento feminista conseguiu envolver a opinião pública em uma campanha que refutava ardorosamente a velha tese de "crime passional", afirmando que homens não agiam de forma violenta com suas mulheres por excesso de paixão ou descontrole – era, pura e simplesmente, um ato de vingança fruto de um sentimento de posse e superioridade, muitas vezes, premeditado. O caso marcou de certa forma uma mudança de posicionamento na cobertura e no próprio julgamento desse tipo de crime. Pouco a pouco, esse tipo de criminoso deixou de ser visto com condescendência, e também com a solidariedade que os homens lhes dedicavam. Apesar do machismo e do falso moralismo ainda muito presentes na sociedade brasileira, atualmente homens que cometem feminicídio são condenados como assassinos, e não mais são defendidos como paladinos dos bons costumes e da honra masculina.

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Lindomar foi condenado a 12 anos de prisão.

Ângela Diniz foi assassinada pelo seu companheiro Doca Street em 1976. Inicialmente a tese de legítima defesa da honra – que coloca a culpa do assassinato na própria vítima, que não agiu como seu parceiro determinava – funcionou e o assassino foi condenado a dois anos de prisão, em condicional, quatro anos depois do crime. A vítima, uma jovem bonita, rica, que gostava de se divertir na noite, foi linchada moralmente no julgamento e por parte do público e da imprensa, que por razões que não cabem discutir aqui, tratava o assassino como um homem glamoroso e decente, maltratado em sua honra por uma quase "prostituta libertina".

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No entanto, uma reação visceral de alguns grupos na sociedade e, principalmente, do movimento feminista, cresceu ao longo dos meses seguintes e tornou majoritária a sensação de que a quase absolvição de Doca Street fora um absurdo. O resultado foi um dos estopins da campanha Quem ama não mata, insuflada posteriormente também pelo assassinato de Eliane de Grammond. O julgamento em Cabo Frio (onde o crime foi cometido) foi anulado tempos depois e, em novo julgamento já no ano seguinte, a tese de legítima defesa da honra foi negada (um marco no sistema judicial brasileiro) e Street foi condenado a 15 anos de prisão.

O recorte também faz referência a outro crime cometido contra uma jovem, Cláudia Lessin Rodrigues, violentada e assassinada por um suiço-brasileiro que, com a ajuda da família abastada, conseguiu fugir para a Europa, de onde o governo brasileiro nunca tentou extraditá-lo, apesar de o governo suíço ter prendido Michel Frank, o acusado. Ele acabou solto por absoluta falta de interesse dos órgãos brasileiros em enviar documentação e um pedido formal de detenção e extradição.

Em 1958, em Copacabana, Rio de Janeiro, uma jovem de 18 anos de nome Aída Curi foi jogada do alto de um edifício após ser sexualmente agredida por 3 homens. Após 3 julgamentos (foto ilustrativa principal da matéria), os acusados foram inocentados das acusações de homicídio, sendo condenados apenas por tentativa de estupro e atentado ao pudor. Crimes desse tipo sempre se transformaram em grandes manchetes de jornais e frequentemente ocupam as telas da televisão. A antiga descrição de tais crimes como passionais vem pouco a pouco dando lugar a sua aproximação com os crimes de ódio, ou seja, aqueles em que a ação criminosa ocorre em função da caracterização da vítima como pertencente a um grupo específico (o racismo e a homofobia são crimes de ódio), alvo de perseguição, humilhação e preconceito. Embora ainda não exista de forma unificada na legislação brasileira, esta apresenta dispositivos que permitem punições específicas para este tipo de violência que recai sobre grupos específicos e, em geral, já vulneráveis.

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Referências: 

DE CAMPOS, Carmen Hein. Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-feminista. Sistema Penal & Violência, v. 7, n. 1, p. 103-115, 2015.

GROSSI, Miriam Pillar. De Angela Diniz a Daniela Perez: a trajetória da impunidade. Revista Estudos Feministas, v. 1, n. 1, p. 166, 1993.

RAMOS, Margarita Danielle. Reflexões sobre o processo histórico-discursivo do uso da legítima defesa da honra no Brasil e a construção das mulheres. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 20, n. 1, p. 53-73,  Apr.  2012 .   Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2012000100004&lng=en&nrm=iso>. access on  01  Sept.  2020.

 

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