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Cultura erudita, popular, clássica, de vanguarda, de massas... Para expressar o tempo e o lugar das diferentes manifestações culturais e artísticas, fazemos uso de distinções que buscam localizar tais manifestações de acordo com sua origem.

A chamada cultura ocidental nos últimos séculos vem oscilando entre as dicotomias que opõem, grosso modo, as tradições clássicas às modernas, traço marcante do período Renascentista; e erudita e popular, que se referem respectivamente  à “alta cultura” para fruição das elites, e à “baixa cultura” produzida por e para as classes populares. Destas distinções outras seriam colocadas ao longo do tempo e até o advento da cultura de massas, no século XX, que de certa forma diluiu as fronteiras entre tais categorias.

Já no século XIX a herança clássica foi impiedosamente desconstruída e questionada na literatura, música e artes plásticas por artistas que questionavam cânones considerados já insuficientes para expressar sentimentos e ideias do mundo em que viviam (industrial, capitalista, urbano), o que acabou por introduzir o conceito de vanguarda artística: movimentos inicialmente restritos a especialistas e amantes da arte que introduziam inovações muitas vezes destinadas a se tornar, com o tempo, uma influência dominante no campo da arte e da cultura. A nova era da reprodutibilidade técnica das obras de arte revolucionou a forma com que as pessoas produziam e fruíam as obras de arte, e a divisão entre o popular e o erudito começou a passar por uma profunda mudança.

Atualmente o termo erudito tende a se referir à produção cultural e artística fortemente influenciada por vertentes acadêmicas, expressas através de técnicas complexas e em geral adquiridas através de estudos formais. A cultura popular, que dominou o século XX por ter sido absorvida com grande facilidade pela produção e fruição em massa, atualmente vem definindo toda a produção oriunda e dirigida à qualquer classe social, livre de restrições acadêmicas e regras estabelecidas, orientada para o consumo do maior número possível de indivíduos e objetivando o lucro, demonstrando inequivocamente o caráter de mercadoria da arte e da cultura sob o sistema capitalista.

Contudo, a distinção entre erudito e popular no mundo contemporâneo não é tão clara assim, já que sua caracterização tem relação com a produção e o consumo em escala, e não com algum tipo de padrão técnico. Embora o popular dificilmente possa ser considerado erudito, o contrário pode ser verdade: não há, a princípio, nenhum impedimento para que a música (por exemplo) de origem erudita torne-se popular e seja consumida por um grande número de pessoas, influenciando toda a indústria cultural naquele momento específico. Existem também estilos híbridos, influências da ópera no rock, por exemplo. Como diz Bizzochi, “Até o século XIX, a música popular restringia-se àquilo que hoje chamamos de música folclórica: no Brasil, o lundu, a modinha, o maxixe, etc. Quem quiser conhecer a “verdadeira” música do século XIX deve ouvir Beethoven, Wagner ou Tchaikovsky. Mas quem quiser conhecer a “verdadeira”música do século XX não pode ignorar os Beatles ou Frank Sinatra. No presente, é difícil definir o que é erudito ou popular.”

Muitos artistas considerados eruditos buscaram na cultura popular e nas tradições locais a inspiração  para seus livros, sua música, suas pinturas. O grande maestro Heitor Villa-Lobos, na primeira metade do século XX, trouxe para suas composições eruditas e extremamente refinadas traços marcantes das músicas e do folclore de várias regiões do país. Não foi o único.

Como a imagem que ilustra esta matéria se relaciona com os movimentos que conectam a arte popular e a erudita? O desenho lhe é familiar? 

Filho de um influente político paraibano (João Suassuna, assassinado em 1930 em meio aos confrontos políticos que culminaram no golpe de 1930), Ariano Suassuna nasceu na capital do Estado da Paraíba em 1927. Em 1942 a família se transfere para Recife, onde o jovem inicia a faculdade de direito em 1946. Seu grande talento no entanto, não marcou os tribunais mas sim, as páginas dos livros e jornais, os palcos de teatro.

Jamais se afastando das suas origens nordestinas, Ariano criou peças de teatro, poemas, romances, ensaios. Foi professor, secretário de cultura de Pernambuco, membro da Academia Brasileira de Letras. Sua arte expressou a paixão que devotava à cultura brasileira, destacando-se também como grande pesquisador das nossas manifestações artísticas populares. Sua profunda conexão com as tradições nordestinas refletem-se nos temas das suas peças, como O Auto da Compadecida, lançada em 1955, e A pedra do reino, de 1971, muitas vezes ilustradas com trabalhos de artistas identificados com as litografias da literatura de cordel.

No final dos anos 1960, Ariano articulou-se com outros acadêmicos e artistas nordestinos, em especial de Pernambuco, para criar o Movimento armorial, oficialmente lançado em outubro de 1970. De acordo com Suassuna, principal idealizador do movimento, o seu objetivo era “realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares de nossa cultura”. O movimento baseava-se em intensas pesquisas em torno de manifestações culturais brasileiras, incluindo sua herança lusa e medieval, vestindo-as com uma roupagem erudita, um viés acadêmico. Incluía música, artes plásticas, literatura, dança. Para Suassuna, “a pintura Armorial deveria ter o espírito mágico e poético do romanceiro e das xilogravuras populares do nordeste” [De Castro]. Na música, a criação da Orquestra Armorial e do Quinteto Armorial marcaram o movimento. A dança só veio a ser representada em um momento posterior do movimento, nos anos 1980 e 1990, com a criação do Balé Armorial e do Balé Popular do Recife. Outros artistas que se destacaram no movimento: Francisco Brennand (artista plástico), Gilvan Samico (idem, suas gravuras ilustram a presente matéria), Antônio Madureira (músico), Antônio Nóbrega (músico).

Jarbas Maciel, Clóvis Pereira e Cussy de Almeida (ex-alunos de Guerra Peixe) integraram a Orquestra Armorial, que ganhou grande respeito de crítica e também no meio acadêmico. A utilização ou não de instrumentos da música popular nordestina (pífano, rabeca, zabumba) logo ocasionou um racha na orquestra, que terminou com a saída de Suassuna e a criação do Quinteto Armorial, que adotou os instrumentos de origem popular em suas interpretações. Os  dois grupos continuariam a produzir música ao longo dos anos seguintes.

Na origem do movimento, havia uma preocupação com o que Ariano Suassuna percebia como “descaracterização” e “vulgarização” da cultura brasileira genuína, que segundo ele vinha sofrendo ataques intensos da cultura pop, da indústria cultural em geral, da invasão norte-americana, que não apenas destruíam manifestações tradicionais como importavam o que havia de pior para o consumo do povo.

Segundo Ariano, “A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos "folhetos" do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus "cantares", e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados.” (Jornal de Semana, 20 de maio de 1975)”

Em tempo: a escolha do nome – insólito -, que significa “relativo a heráldica (brasões e escudos)” remetia a presença disseminada de escudos e brasões estilizados em estandartes presentes em manifestações tão variadas quanto grupos de maracatu e escolas de samba.

O grande artista brasileiro faleceu no Recife, em julho de 2014.

 

Imagens

As gravuras e a fotografia de Ariano Suassuna. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_44711. Dossiê Ariano Suassuna.  Correio da Manhã, 1971

Fotografia em palco. BR_RJANRIO_EH_0_FOT_EVE_09843_d0011de0011. Concerto da orquestra armorial de Pernambuco, sala Cecília Meirelles, 1971

 Leitura:

BIZZOCCHI, Aldo. O clássico e o moderno, o erudito e o popular na arte. Líbero. São Paulo, v. 2, n. 3/4, p. 72-76, 1999.

DE CASTRO COIMBRA, Ana Luisa et al. O Movimento Armorial reafirmando as raízes da cultura popular.

 

 

BIZZOCCHI, Aldo. O clássico e o moderno, o erudito e o popular na arte. Líbero. São Paulo, v. 2, n. 3/4, p. 72-76, 1999.

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